sexta-feira, 20 de junho de 2008

Papa: tu és Pedro

por Georges Suffert
Em síntese: O jornalista Georges Suffert publicou um livro que pretende ser uma apologia da Igreja, a qual existe há dois mil anos, apesar de ter atravessado períodos de crise e tormentas. Todavia o estilo do autor é, por vezes, superficial: ao descrever as situações dolorosas por que passou a Igreja, não menciona fatores importantes que as elucidariam. É tendente a certo sarcasmo (moda jornalística). Engana-se quanto à Teologia da Libertação. Além do quê, a tradução deixa a desejar, especialmente quando se trata de nomes próprios, títulos de livros ... - o que todavia não impede a boa compreensão do texto.
***
Georges Suffert é jornalista, não historiador profissional, que escreve uma história da Igreja num volume único de 517 páginas.
1 Professa ser católico:
"O autor deste livro não é verdadeiramente neutro em relação à história que conta. Precisemos então que ele é católico; por isto tenderá a fazer das posições tomadas por Roma o eixo central de sua narrativa" (p. 18).
Todavia o estilo de jornalista, um tanto sumário e por vezes superficial, faz que o autor nem sempre entre no âmago das questões abordadas; omite certos tópicos que poderiam elucidar e amenizar situações dolorosas, tornando-se assim unilateral, mais propenso a pôr em relevo as sombras do que as luzes da história da Igreja.
Apesar disso, G. Suffert julga estar propondo aos leitores uma discreta apologia da Igreja:
'"O ópio do povo', diziam as pessoas avançadas do século XIX. Na verdade, essa longa procissão, essa oração única que continua através do tempo e do espaço, só tem uma razão compreensível: trata-se da luta dos vivos em face da morte. Jesus confiou aos homens o mistério da ressurreição; a sua, a deles...
O que permitiu que a Igreja durasse? Haverá um mistério, quem sabe... um milagre explicando essa sobrevida? Para nos convencermos disto, basta olhar para essa trajetória" (p. 16). 1 Tu és Pedro - Tradução de Adalgisa Campos da Silva - Ed. Objetiva, Rio de Janeiro 2001, 160 x 220 mm, 517 pp.
Analisemos alguns tópicos importantes abordados pelo autor.
Inquisição
O jornalista não trata da temática com a devida profundidade. Fala da "invenção da Inquisição" (p. 210), da "repressão ideológica e doença pavorosa" (p. 211)... Todavia à p. 212 escreve:
"É preciso tentar imaginar o clima intelectual da época (séculos XII a XIV). Ponto de partida: a existência aceita de uma sociedade cristã. Tanto nas instituições políticas como nas regras jurídicas, o universo era naturalmente cristão. Aquele que se afastava da norma parecia um transgressor, um provocador, talvez mesmo um louco. A idéia de que esse indivíduo pudesse, em alguma medida, ter razão não ocorria a ninguém; a idéia de que, recusando as normas da época, ele estivesse no seu direito era impensável. Desconfiava-se da intervenção do diabo" (p. 212).
Estas observações são muito válidas. Todavia o autor podia ter acrescentado que
- em virtude do mencionado regime de cristandade, a Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico. O Estado sendo oficialmente cristão, a lesão de um artigo de fé era lesão da ordem pública, que o Estado julgava ter o dever de reprimir;
- os medievais eram mais dados à metafísica, os homens modernos são mais dados à psicologia. Isto quer dizer que, para o medieval, o erro era sempre erro inescusável, ao passo que, para o cidadão moderno, o erro pode ser desculpável em virtude de falta de responsabilidade do delituoso.
Estas observações complementares são muito importantes para se reconstituir o quadro da Inquisição. Não se pode julgar o passado aplicando-se-lhe categorias do pensamento contemporâneo que os antigos não conheciam.
Indulgências
Às pp. 249s o autor trata das indulgências, que ele não compreendeu. Escreve em estilo jornalístico um tanto sarcástico:
"Os cristãos em geral não gostam de dilapidar seu pecúlio. Para estimulá-los a ser mais generosos, a Igreja anuncia que os doadores vão se beneficiar nos limites razoáveis - da mansuetude de Deus no dia do Juízo. As indulgências acabam de ser inventadas...
A partir do século XV admite-se que as indulgências podem beneficiar as almas do purgatório. O que é bem espantoso: esse lugar indistinto que, como mostrou Lê Goff, tem como função precípua tirar o juízo final da regra terrível do tudo ou do nada - quer dizer, a danação eterna -, o Purgatório é uma invenção relativamente recente. Se o termo inventado parecer chocante, basta substituí-lo pelo de 'tomada de consciência'. A Igreja, em suma, acha que, por intermédio de Cristo, o perdão é possível, como Deus quiser, e quando Ele quiser. O Purgatório traduz, numa fórmula, essa esperança" (p. 250).
O texto é confuso e errôneo, a começar pela afirmação de que o purgatório é um lugar; na verdade é um estado de alma. O purgatório está documentado já na Escritura do Antigo Testamento; cf. 2Mc 12, 38-45, texto que demonstra como os judeus anteriores a Cristo já acreditavam numa purificação póstuma. Os cristãos herdaram essa crença do povo israelita.
Quanto às indulgências, não são esmolas apenas; são boas obras enriquecidas pelos méritos de Cristo; supõem o perdão dos pecados previamente obtido, e contribuem para apagar os resquícios de pecado que ainda ficam após a absolvição sacramental; o amor a Deus e o ódio ao pecado com que alguém pratica uma obra indulgenciada (recitação do Rosário ou do terço, leitura da Bíblia, visita a um santuário, jaculatórias...) fazem que a "ferrugem" deixada pelo pecado (mesmo já absolvido) vá desaparecendo. A propósito ver PR 437/1998, pp. 497 ss; 442/1999, pp. 127 ss.
Donde se vê que a instituição das indulgências nada tem que ver com captação de dinheiro, nem o purgatório é uma invenção. G. Suffert se enganou flagrantemente a respeito.
Lutero e a Reforma
G. Suffert procura respeitar Lutero; apresenta as peripécias de sua obra reformadora.
Todavia o historiador objetivo não esqueceria de enfatizar um pouco mais o envolvimento de Lutero com os príncipes da nação alemã, aos quais escreveu um libelo, excitando o seu nacionalismo contra Roma; tornou-se assim o porta-bandeira de uma atitude política, que muito incentivou o cisma religioso. No fim da vida, em suas alocuções de mesa (de refeições) ou Tischreden, dizia ele: "Há mil anos, Deus a nenhum Bispo concedeu tão grandes dons quanto a mim. É preciso gloriar-se dos dons de Deus (In mille annis Deus nulii episcopo tanta dona dedit ut mihi. Gloriandum est enim de donis Deis)" (Tischreden 5494 V 189).
Seria também pertinente ao quadro apontar a proteção concedida por Frederico da Saxônia ao reformador, em troca da qual Lutero reconheceu a Filipe o direito à bigamia.
Lutero deve ter sido um homem profundamente religioso, mas nem sempre foi feliz em suas opções movidas por fortes paixões e afetos. Ver a propósito PR 437/1998, pp. 439-456; 439/1998, pp. 548-556.
Teologia da Libertação
O autor parece não ter compreendido o que é a Teologia da Libertação, que ele expõe nos seguintes termos (referindo-se à América Latina):
"Muitos padres consideravam que sua atitude, suas orações e seus ritos haviam se tornado totalmente incompreensíveis para essas multidões de marginais concentrados na periferia das cidades ou em zonas agrícolas arruinadas pelo empobrecimento das terras, os preços de custo da produção, etc. Essas massas haviam sido cristãs. Já não eram muito mais. Para se dirigir a elas, para despertá-las, era preciso usar nova linguagem. As mensagens confusas dos revolucionários - havia-os de todos os tipos - costumavam ser ouvidas por esses verdadeiros excluídos. A Igreja deveria agora usar um pouco da sua linguagem. Eis aqui, em linhas gerais, o que era a Teologia da Libertação.
A partir dessa constatação indiscutível é que padres e leigos começaram a elaborar uma nova teologia; sonhava-se enxertar a mensagem evangélica sobre o arbusto da revolução" (p. 482).
Na verdade, a Teologia da Libertação extremada não foi simplesmente "usar um pouco da linguagem do povo". Ela partia da análise marxista da sociedade, segundo a qual o homem é essencialmente carente de bens materiais; estes são disputados; quem deles se apodera passa a oprimir seus semelhantes, de modo que a sociedade consta de
opressores e oprimidos; haja então luta de classes para se chegar a uma sociedade igualitária, sem classes. Em função desta indiscutida premissa, o Evangelho é relido de maneira a se ver em Jesus Cristo o primeiro guerrilheiro e a considerar o pecado como sendo a não participação na luta política.
A questão, portanto, foi muito mais séria do que descreve o jornalista G. Suffert.
5. Outros tópicos
Várias outras imprecisões de linguagem e de julgamento se poderiam apontar na obra em pauta. Talvez o que mais chame a atenção, é o estilo leviano e, por vezes, sarcástico utilizado pelo autor. Sejam indicados ainda os seguintes pontos:
- em 1415 o Papa Gregório XII não "aceitou entregar sua demissão", mas renunciou ao pontificado (p. 233);
- o Concílio de Nicéia l (325) não "inventou" o Credo, mas formulou de maneira clara e definitiva a verdade já contida nas Escrituras, ou seja, a Divindade do Logos ou do Filho; cf. p. 73;
- as heresias não "fabricaram" a fé, mas contribuíram para estimular a reta formulação dessas verdades apregoadas pela tradição anterior; cf. p. 71;
- no fim da Idade Média terá havido "a corrupção generalizada da Igreja". Esta afirmação é leviana e tendenciosa, pois em todas as épocas sempre houve grandes Santos e Santas, que fizeram frente à fragilidade humana; cf. p. 17;
- à p. 161 o autor diz que, após o cisma bizantino (1054), "daí por diante serão duas Igrejas". A expressão é ambígua. Mais adequado é usar a imagem proposta por João Paulo II: a única Igreja de Cristo tem dois pulmões, dos quais um se separou em 1054.
- a centena de anos que vai de 301 a 400 constitui o século IV e não o século III, como está insinuado às pp. 72 e 74.
Em suma, a tradução do francês para o português deixa a desejar, principalmente ao se tratar de nomes próprios. Eis alguns espécimens:
- Godofredo de Bouillons não é Godofredo de Bolonhas; o sobrenome não se traduz; cf. pp. 178s;
- o Patriarca Fócio não escreveu em francês, mas em grego; por isto a tradutora bem poderia ter citado "A Mistologia do Espírito Santo" em vez de guardar a versão francesa "La Mystologie du Saint-Esprit"; cf. p. 158;
- à p. 253 ficaram em francês os nomes Cajetan (Caetano), Jean (João) Eck, Georges (Jorge) de Saxe;
- à p. 207, lê-se Pierre Lombard em vez de Pedro Lombardo;
- à p. 74, Mareei d'Ancyre em vez de Marcelo de Ancira;
- à p. 19, "La guerre juive" de Flávio José não é o título original da obra. Daí a conveniência de traduzir por "A Guerra Judaica".
Em suma, a intenção, do autor, de afirmar que a existência bimilenar da Igreja é algo de singular e portentoso, sinal da ação de Deus, que opera através dos homens, é válida e louvável. Todavia a maneira como G. Suffert apresenta a história é assaz falha; às vezes parece brincar com as coisas sérias mediante suas expressões inoportunas e omitindo muitos tópicos que dariam a compreender melhor o fio condutor ou o espírito que animava os personagens citados pelo autor.
O leitor da obra saberá fazer os descontos que ela exige.
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Papa: o primado de Pedro (I)
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 480/2002)
O PRIMADO DE PEDRO
Em síntese: Em vista de repetidos ataques ao primado do Papa, o presente artigo percorre os fundamentos bíblicos e os testemunhos históricos que comprovam a autenticidade desse primado. A consciência do alcance do ministério petrino foi desabrochando aos poucos na Igreja, estimulada por situações em que aparecia com evidência a necessidade de um Pastor Supremo, "servo dos servos de Deus".
***
A fé católica ensina que ao Bispo de Roma (Papa) toca, na Igreja, a primazia não somente honorífica (sem efeitos de governo) nem apenas presidencial (o presidente recebe da sociedade a que ele preside, os respectivos poderes de governo; o Papa, ao contrário, não recebe dos fiéis nem de algum concílio a sua autoridade), mas uma primazia de jurisdição, a qual implica faculdades supremas e independentes de algum concílio, poderes que fazem do bispo de Roma o Pastor da Santa Igreja inteira.
Quais seriam os fundamentos de doutrina tão importante? É o que se proporá abaixo (5 1), a fim de se tecerem por fim algumas reflexões sobre o título "Igreja Romana" (5 2).
Os fundamentos da doutrina na Revelação cristã
Antes de se examinarem os dados positivos da Revelação, impõe-se importante observação. As verdades cristãs se acham contidas nas fontes da Revelação geralmente sob forma compendiosa, de sorte que algumas delas só no decorrer dos tempos foram sendo explicitadas e formuladas em termos bem definidos. Em geral, foi o surto de heresias que deu ocasião a que as proposições da fé recebessem sua expressão clara e burilada.
Ora o que se dá com vários dogmas, verifica-se de maneira frisante com a doutrina do primado romano. Mais talvez do que se registra com outras verdades de fé, a afirmação desta e de todas as suas conseqüências esteve sujeita à ação do tempo; só aos poucos, segundo as necessidades da Igreja, é que os Papas foram exercendo as faculdades primaciais já expressas, sem dúvida, embrionariamente nos textos evangélicos. "Não seria razoável, portanto, rejeitar o dogma católico sob pretexto de que o primado do bispo de Roma não se exercia nos primeiros séculos com a mesma amplidão e pelos mesmos meios que o caracterizam hoje em dia... Para que o dogma seja válido, bastará que se possam apontar desde as origens do Cristianismo, já nos primeiros documentos da Revelação, os traços essenciais desse primado, ou seja, o grão de mostarda que se tornou grande árvore, a bolota que deu origem ao pujante carvalho, a criança no berço que veio a ser o homem feito de épocas posteriores" (M. Jugie. Lê schisme byzantin 48s).
Feita esta observação, procuremos agora.
Os fundamentos bíblicos do primado
Dentre os textos do S. Evangelhos, vários há que atribuem a Pedro uma posição privilegiada, ao passo que três lhe outorgam autêntico primado de jurisdição; por fim outras passagens indicam o exercício dessa preeminência por parte do Apóstolo.
A posição privilegiada de Pedro
Nas solenes ocasiões da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 37), da Transfiguração (Mt 17, 1-8; Mc 9, 1-8; Lc 9, 28-36) e da agonia no horto das Oliveiras (Mt 26, 37; Mc 4, 23), Jesus admitiu apenas a companhia de três discípulos, dos quais o S. Evangelho menciona em primeiro lugar Pedro.
No catálogo dos Apóstolos, quatro vezes ocorrente no Novo Testamento (Mt 10, 2-4; Mc 3, 16-19; Lc 6, 13-16; At 1, 13), enquanto varia a colocação dos demais, Pedro é sempre nomeado antes dos outros, sendo que S. Mateus sublinha explicitamente: "primeiro Simão, cognominado Pedro". O título de primeiro não parece significar idade mais antiga nem prioridade de vocação (não se poderia provar nem uma nem outra coisa; André tornou-se mesmo discípulo de Jesus antes de Pedro; cf. Jo 1, 40-42), mas indica certamente preeminência ou maior dignidade (cf. Mt 20, 27; Mc 12, 28-31; Lc 15, 22, textos em que a palavra primeiro ocorre abertamente não para indicar cronologia, mas para designar principalmente). É o que o próprio Loisy, apesar do seu liberalismo, não deixa de reconhecer: "Entre os doze, havia um que era o primeiro, não somente pela prioridade de sua conversão ou pelo ardor de seu zelo, mas por uma espécie de designação do Mestre" (LÉvangile et 1'Église 134).
Este desígnio de Jesus se manifesta ainda nas múltiplas provas de deferência que o Senhor mesmo deu a Pedro: Cristo pagou o tributo por Pedro (Mt 17, 24-27); fê-lo caminhar sobre as águas (Mt 14, 27-30); no dia da ressurreição apareceu-lhe em particular (Lc 24, 34); antes de subir aos céus, predisse a Pedro o modo como morreria (Jo 21, 18).
O próprio Pedro manifestou consciência de sua posição peculiar, pois em geral era ele quem falava em nome de todos: Mt 14, 28; 15; 16 16.22; 17, 4; 18, 21; 19, 27; 26, 33; Mc 8, 29; 10, 28; 11, 21; 14, 29; Lc 8,45; 9, 20.33; 12,41; 18, 28; 22, 31; Jo 6, 68; 13,6-10.36.
Não se explicariam os casos de preeminência de Pedro simplesmente pelo caráter impetuoso deste Apóstolo, sempre pronto a tomar a dianteira, pois sabemos que os discípulos protestaram contra as pretensões arrogantes dos filhos de Zebedeu (cf. Mt 20, 24), nunca, porém, contra as atitudes de Pedro; supõe-se, portanto, que estas tinham fundamento objetivo, outorgado pelo Senhor mesmo.
Todavia, contra a concessão de prerrogativas a Pedro, lembram alguns exegetas a maneira forte como Jesus rejeitou as tendências dos Apóstolos à preeminência (cf. Lc 22, 24-27). -
Não há dúvidas; Jesus condenou as discussões dos discípulos concernentes à primazia, inculcando-lhes a humildade; com isto, porém, não condenou a autoridade (como se verá adiante), mas apenas os espíritos autoritários, prepotentes; a autoridade, Jesus a concebeu, sim, como serviço e dedicação (cf. Jo 13, 4-16; Mt 20, 25-28; Mc 10, 41-45; Lc 22, 25-27).
Muito significativa, aliás, é a cena do primeiro encontro de Jesus com Pedro: o Senhor mudou o nome de Simão para Cefas (= Pedro); cf. Jo 1, 42. Ora a história do Antigo Testamento só refere dois casos em que Deus tenha trocado o nome de uma criatura; em ambos, porém, mudou-o para conferir-lhe solene missão (a Abraão, em Gn 17, 5; a Jacó, em Gn 32, 29). Também a Pedro Cristo quis confiar uma missão, que Jesus mesmo formulou em três passagens: Mt 16, 17-19; Lc 22, 30-32; Jo 21, 15-18.
A missão confiada a Pedro
Mt 16,17-19. Os críticos não hesitam sobre a autenticidade desta passagem, que não falta em manuscrito algum nem nas traduções e citações do Evangelho de Mt feitas na antigüidade.
Que quer dizer o Senhor por esses versículos tão saturados de expressões semíticas?
Jesus em primeiro lugar promete construir a Igreja, ou seja, a sociedade dos seus discípulos, sobre um fundamento que será Rocha, fundamento indestrutível. Essa rocha, o Senhor a identifica com Pedro pessoalmente, e não com a confissão de fé de Pedro nem com o grupo dos doze Apóstolos. Com efeito, note-se como todo o contexto versa em torno da pessoa do Apóstolo: é a Pedro diretamente que Jesus dirige as palavras: "Bem-aventurado és tu..., te revelou... Eu te digo...". Foi o nome de Pedro que Cristo mudou e é a esse nome mudado que Ele alude, interpretando-o, consoante o costume bíblico, como sinal de uma tarefa nova que para o futuro incumbiria ao Apóstolo: "Simão, filho de Jonas... Pedro (Pedra)...".
Como o rochedo sustenta todo o edifício, comunicando-lhe sua firmeza, assim no plano moral o que sustenta a sociedade, comunicando-lhe coesão, é a autoridade. Ora tal há de ser o papel de Pedro na Igreja (vê-se que não é função acidental, mas estrutural).
Continuando, diz o Senhor que a Casa ou a Igreja fundada sobre Pedro será continuamente assaltada pelas "portas do inferno". As portas, segundo a linguagem semita, designam no caso o poderio (pois era às portas da cidade que se colocavam a força armada outrora). O inferno (o cheol dos judeus, o Hades dos gregos) significa a Morte ou, conforme o vocabulário judaico contemporâneo a Cristo, o Mal. Por conseguinte, indefectível será a Igreja arquitetada sobre Pedro, pois "o Mal não prevalecerá com todo o seu poderio".
Outra prerrogativa se associa à de "Pedro-Fundamento": o Apostolo terá as chaves do reino, isto é, a administração de todas as coisas no palácio do Rei, na Igreja de Cristo (as chaves são o símbolo da autoridade, conforme Is 22, 22; Ap 3, 7s; 9, 1; 20, 1).
A mesma prerrogativa é expressa pela dupla função de "ligar e desligar" (em nossa linguagem, "proibir e permitir"), função que Pedro exercerá validamente na terra de modo a ser confirmada pelo Pai do Céu ("tudo que ligares na terra...").
Donde se conclui que em Mt 16, 18s Jesus prometeu ao Apóstolo São Pedro o poder de jurisdição sobre toda a Santa Igreja.
Dir-se-á talvez, em contrário, que o Novo Testamento só conhece um fundamento da Igreja: o Cristo Jesus, mencionado em "I Cor 3, 11. -Observe-se contudo que o Senhor que disse ser a luz do mundo (cf. Jo 8, 12; 9, 5; 12, 46), atribuiu o mesmo título aos seus discípulos (cf. Mt 5,14); por meio de Pedro, e mais fundo do que Pedro, Cristo fica sendo a Rocha, o fundamento invisível da Igreja. É esse mesmo Jesus que "possui a chave de Davi; que abre, de modo que ninguém fecha; que fecha, de sorte que ninguém abre" (Ap 3, 7).
Em Cristo e em Pedro, portanto, residem análogos poderes (designados pelas mesmas metáforas); é de Cristo que eles dimanam para o Apóstolo, de sorte que este vem a ser o Vigário ou Representante de Jesus na terra.
Jo 21, 15-17. O primado prometido em Mt 16, 15-19 foi realmente outorgado após a ressurreição, segundo Jo 21. Cristo confiou então a Pedro o pastoreio de todo o seu rebanho, incluindo neste mesmo os demais Apóstolos. A imagem do Pastor é clássica na S. Escritura para designar o Messias e a sua obra (cf. Mt 2, 13; 4, 6s; 5, 3; Sf 3, 19; Jr 23, 3; 31, 10; Is 40, 11; 49, 9s; Ez 24, 7-24; 37, 23-25; Zc 11, 7-9; Mt 18, 12; Lc 15, 4; Jo 10,11-16); ora, confiando a Pedro o encargo de Pastor, Cristo o constituía naturalmente seu Vigário na terra, e Vigário dotado de jurisdição suprema, ostensiva mesmo aos demais ministros e legados de Deus.
Lc 22, 31 s. Um aspecto da suprema função pastoral de Pedro é especialmente realçado por Jesus na véspera de sua Paixão: Cristo então declarou que Satanás estava para assaltar a fé de todos os Apóstolos, mas que Ele, o Senhor, havia orado por Pedro, entendendo beneficiar os demais Apóstolos por meio do primeiro; a este conseqüentemente o Senhor dava logo depois o encargo de corroborar a fé de seus irmãos; o que quer dizer: o papel que Jesus exerceu em relação a Pedro, Pedro o deveria de seu modo exercer em relação a todo o rebanho, mesmo em relação aos demais Apóstolos.
O exercício da preeminência após a Ascensão de Cristo
Logo após a partida definitiva do Senhor, aparece o Apóstolo Pedro na chefia do grupo de discípulos. Foi ele, por exemplo, quem presidiu à eleição do novo Apóstolo, São Matias (cf. At 1, 15-26);... Quem no dia de Pentecostes se encarregou de fazer a primeira proclamação de Cristo (cf. At 2, 14-36); ... Quem, na qualidade de juiz da comunidade cristã, puniu Ananias e Safira (cf. At 5, 1-11. Foi mandado à Samaria com João (cf. At 8,14), porque se julgava que a sua presença de chefe das comunidades cristãs era indispensável para corroborar os fiéis daquela região; a autoridade de Pedro foi decisiva para se admitirem os gentios na Igreja (cf. At 11, 18)...
Os testemunhos se poderiam multiplicar... Limitar-nos-emos a considerar apenas o chamado "incidente de Antioquia" (Gl 2, 11-14). Este episódio ainda vem a ser um testemunho indireto da autoridade do Primaz: Paulo diz ter chamado a atenção de Pedro justamente porque o exemplo deste Apóstolo era de tal modo persuasivo que coagia moralmente os étnico-cristãos a o imitarem ou a observarem a Lei de Moisés: "Se tu, que és judeu, dizia Paulo, vives à maneira dos gentios, e não dos judeus, como forças os gentios a se fazerem judeus?" (Gl 2, 14). A falha de Pedro parece ter consistido em não estar plenamente cônscio da influência que ele exercia ou em não ter percebido que sua condescendência para com amigos, embora fosse legítima, era mal interpretada, perturbando a Igreja inteira. Note-se que, na sua atitude forte, Paulo não disse palavra contra os direitos de S. Pedro a exercer tal influência sobre os fiéis. De tudo isso conclui Loisy que o gesto de S. Paulo "atesta ter sido Simão Pedro o chefe do serviço evangélico, o homem com o qual era preciso entrar em acordo, sob pena de trabalhar em vão" (Lês Évangiles synoptiques 14).
O testemunho da Tradição
O primado de Pedro não podia perecer com a pessoa do Apóstolo, mas devia transmitir-se aos sucessores deste, pois a posição de fundamento outorgada por Cristo a São Pedro toca a estrutura da própria Igreja; se esta deixasse de ter fundamento visível, deixaria de ter um dos traços essenciais que Cristo expressamente lhe quis dar. Por conseguinte, era da vontade de Jesus que a prerrogativa concedida a Pedro se comunicasse perenemente aos sucessores deste.
Ora Pedro morreu como bispo de Roma. Disto se segue que os subseqüentes bispos e Roma são até hoje os detentores da jurisdição universal que o Senhor comunicou ao Apóstolo principal.
Estas proposições dogmáticas são corroboradas por um rápido percurso da história do Cristianismo, a qual ensina que:
De fato, Pedro terminou sua missão como bispo de Roma;
Os sucessores de Pedro sempre manifestaram a consciência de possuir jurisdição sobre a Igreja inteira.
1.2.1. A morte de S. Pedro em Roma
Consideremos primeiramente os testemunhos literários.
a) A estada de Pedro na Cidade Eterna é insinuada já pela primeira carta do Apóstolo, que em 64 foi escrita de Babilônia (5, 13), nome que, conforme o Novo Testamento (cf. Apocalipse), designa a capital pagã do Império Romano.
b) Decênios depois, em 96/98, o bispo de Roma São Clemente escrevia aos Coríntios:
"Lancemos os olhos sobre os excelentes Apóstolos: Pedro, que, por efeito de inveja injusta, sofreu não um ou dois, mas numerosos tormentos, e que, depois de ter dado testemunho, se foi para a glória que lhe era devida. Foi por efeito da inveja e da discórdia que Paulo mostrou o preço da paciência... Depois de ter ensinado a justiça ao mundo inteiro e ter atingido os confins do Ocidente, ele deu testemunho diante daqueles que governavam e assim deixou o mundo, indo-se para o lugar santo... A esses homens... juntou-se grande multidão de eleitos que, em conseqüência da inveja, padeceram muitos ultrajes e torturas, deixando entre nós magnífico exemplo" (5, 3-7; 6, 1).
Conforme a evolução do idioma grego, "dar testemunho" significativa na época de Clemente "atestar com o sangue, sofrer morte violenta". À menção do martírio de S. Pedro e S. Paulo, Clemente acrescenta a de muitos outros mártires, frisando que todos esses justos deixaram entre nós magnífico exemplo; esse entre nós se refere a Roma, onde Clemente escrevia.
c) Por volta de 107, S. Inácio de Antioquia escrevia aos Romanos:
"Não é como Pedro e Paulo que eu vos dou ordens; eles foram Apóstolos; eu não sou senão um condenado" (Rm 4, 3).
"Tais palavras não equivalem literalmente à frase: São Pedro foi a Roma. Mas, suposto que lá tenha ido, S. Inácio não teria falado de outro modo; suposto que não tenha ido, a frase carece de sentido" (Duchesne, Histoire ancienne de 1'Église l).
d) Entre 165 e 170, o bispo Dionísio de Corinto atestava aos Romanos:
"Tendo vindo ambos a Corinto, os dois Apóstolos Pedro e Paulo nos formaram na doutrina evangélica; a seguir, indo-se para a Itália, eles vos transmitiram os mesmos ensinamentos e por fim sofreram o martírio simultaneamente" (em Eusébio, Hist. Ecl. II 25, 8).
e) No início do séc. III era Orígenes quem escrevia:
"Pedro, finalmente tendo ido para Roma, lá foi crucificado com a cabeça para baixo" (em Eusébio, Hist). Ecl. III).
Deixando os testemunhos literários, que se poderiam prolongar, passemos agora aos da Arqueologia.
Por volta de 200, um presbítero romano chamado Gaio dirigia-se nos seguintes termos a um grupo de hereges:
"Posso mostrar-vos os troféus (túmulos) dos Apóstolos. Caso queiras ir ao Vaticano ou à via Ostiense, lá encontrareis os troféus daqueles que fundaram esta Igreja" (em Eusébio, Hist. Ecl. II 25, 7).
Tais dizeres foram ilustrados pelas recentes escavações feitas em Roma durante dez anos no subsolo da basílica de S. Pedro: encontraram-no vestígio de um mausoléu cristão Dosto em meio a túmulos pagãos ao qual dá acesso uma via que parece ter sido muito freqüentada; junto a esse túmulo numerosas inscrições (graffiti) de visitantes fazem menção do Apóstolo Pedro. No sepulcrozinho de 80 x 80 cm, que os arqueólogos cavaram até tocarem o solo virgem, encontraram ossos humanos dispersos e misturados com terra, que foram cuidadosamente recolhidos; além disto, deram com os destroços de uma urna de mármore fino de 77 x 30 cm... Sem descer ao plano das hipóteses minuciosas, meramente conjeturais, julgam os historiadores que o lugar assim descoberto representa o primeiro local onde foram depositados os despojos mortais de S. Pedro. E com razão assim pensam: no ano de 67, quando morreu este Apóstolo, os cristãos ainda não possuíam seus cemitérios próprios, devendo por isto forçosamente usar cemitérios pagãos; se, pois, no Vaticano S. Pedro foi enterrado em uma necrópole pagã, esta deve ter sido realmente a primeira mansão póstuma do Apóstolo, indicada, aliás, explicitamente pelos testemunhos de Gaio e dos graffiti.
Podem-se observar ainda: no início do séc. IV o Imperador Constantino construiu a basílica de S. Pedro em Roma. Podia ter escolhido para isto, ao lado do lugar que ele tomou, uns terrenos livres, planos, aptos para uma ampla construção (no chamado "Circo de Nero"). Não o fez, porém; mandou construir a basílica no lugar mais incomodo e contra-indicado, tomando um terreno de forte declive, terreno com uma diferença de nível de 13m na direção NE-SO, e já ocupado por uma necrópole (coisa que os romanos costumavam respeitar religiosamente)! Se Constantino assim violou todas as leis de construção e de deferência aos mortos, ele deve ter tido motivo muito sério para tanto, motivo que não pode ser senão a presença, em uma parte desse cemitério pagão, de um túmulo caro a todos os cristãos de Roma: o túmulo de Pedro!
Dada a clareza dos testemunhos da história, os autores, mesmo não-católicos, não costumam em nossos dias contestar a morte do Apóstolo São Pedro em Roma (ninguém, porém, saberia dizer quando chegou Pedro pela primeira vez à Cidade Eterna; nem se insiste na tese de S. Jerônimo, segundo a qual o Apóstolo pregou 25 anos em Roma).
1.2.2. O exercício do primado por parte dos sucessores de São Pedro
Como dissemos, não seria razoável crer que nos primeiros séculos o primado romano se tenha manifestado como hoje. De um lado, as comunicações entre os diversos núcleos cristãos eram difíceis; de outro lado, foi o surto de heresias e desordens que deu ocasião a que a Santa Igreja mostrasse aos poucos a sua estrutura petrina. Como se verá adiante, o primado era atribuído aos pontífices romanos não em virtude da preponderância política de Roma, mas por motivo estritamente religioso.
No fim do séc. I, tendo surgido um litígio entre os fiéis de Corinto, o bispo de Roma, São Clemente, lhes escreveu uma carta autoritativa, chamando-os energicamente à ordem:
"Se alguns não obedecem ao que Deus mandou por nosso intermédio, saibam que incorrem em falta e em perigo muito grave" (c. 69).
A carta terminava anunciando o envio de legados romanos a Corinto, os quais, esperava o Pontífice, haveriam de voltar para Roma levando a notícia da restauração da paz entre os discordantes.
É altamente significativo o fato de que o bispo de Roma, e ele só, tenham intervindo em questões internas da comunidade de Corinto, embora em Éfeso ainda vivesse o Apóstolo São João, e outras comunidades que não a de Roma tivessem talvez relações mais freqüentes e fáceis com Corinto. Leve-se em conta também à deferência que a igreja de Corinto (embora fosse, como a de Roma, fundada por um Apóstolo) prestou ao documento de Roma: a admoestação surtiu o almejado efeito, como se depreende do fato de que em 170 aproximadamente a carta de S. Clemente ainda era habitualmente lida nas reuniões dominicais dos fiéis de Corinto (cf. Eusébio, Hist. Ecl. IV 23, 11).
b) No início do séc. II S. Inácio de Antioquia escrevia aos cristãos de Roma, reconhecendo ser a sua comunidade a mestra de outras: “Não invejastes a ninguém; instruístes os outros”. Também eu quero guardar aquilo que ensinais e preceituais(3, 1). Aos Romanos confiava S. Inácio o cuidado das comunidades da Síria: "Somente Jesus Cristo e a vossa caridade (ágape) exerçam para com elas o papel do bispo" (9,1). Ágape vem a ser, para S. Inácio, o sinônimo de "comunidade cristã" ou de "Igreja" (cf. Trai. 13.1; Esmirn. 12,1; Filad. 11, 2); é este o sentido que o santo bispo parece supor quando diz ser a Igreja de Roma "a que preside à caridade (ágape)" e "a que preside na região dos Romanos" (Rom, prol.). Estas expressões, segundo bons historiadores, significam preeminência em relação às demais comunidades cristãs. O testemunho de Inácio torna-se particularmente significativo desde que se leve em conta que era proferido por um bispo de Antioquia, cidade onde Pedro teve uma de suas primeiras sedes episcopais (cf. Eusébio, Hist. ecl. III 36).
c) Na segunda metade do séc. II registrou-se a controvérsia de Páscoa: um grupo de bispos da Ásia Menor, recusando seguir o Calendário e os costumes vigentes em Roma, assim como nas demais regiões cristãs, foi ameaçado de excomunhão pelo Papa S. Vítor (cf. Eusébio, Hist. Ecl. V 24 9-18). E ninguém contestou ao Pontífice o direito de assim proceder; devia parecer claro a todos que nenhum bispo pode estar em comunhão com a Igreja universal sem estar em comunhão com a própria Roma.
d) S. Irineu (+ 202 aproximadamente) deixou-nos um dos mais eloqüentes testemunhos em favor de Roma:
Tendo afirmado que a verdade se encontra nas comunidades fundadas pelos Apóstolos, continua: "Mas, já que seria demasiado longo enumerar os sucessores dos Apóstolos em todas as comunidades, só nos ocuparemos com uma destas: a maior e a mais antiga, conhecida por todos, fundada e constituída pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo. Mostraremos que a tradição apostólica que ela guarda, e a fé que ela comunicou aos homens chegaram a nós através da sucessão regular dos bispos, confundindo assim todos aqueles que... querem procurar a verdade onde não se pode encontrar. Com esta comunidade de fato, dada a sua autoridade superior, é necessário esteja de acordo toda comunidade, isto é, os fiéis do mundo inteiro; nela sempre foi conservada a tradição dos Apóstolos" (Adv. Haer. III 3, 2).
Em uma palavra diz S. Irineu: a conformidade com o ensinamento dos sucessores de Pedro é o critério da ortodoxia.
e) Em meados do séc. III S. Cipriano, bispo de Cartago, chamava a cátedra de Roma “cátedra de Pedro, a Igreja principal, donde se origina a unidade sacerdotal (isto é, a unidade dos bispos)! (epist. 55, 14). Contudo S. Cipriano parece não ter tirado as últimas conseqüências destas palavras, pois recusou submeter-se ao Papa S. Estevão no tocante à validade do batismo conferido por hereges.
À medida que nos adiantamos no decorrer dos séculos, vão aumentando em número e significado os textos e fatos que atestam o primado de Roma. Visando a brevidade, limitar-nos-emos aqui a recordar que, por ocasião dos litígios teológicos verificados do séc. IV em diante, a Sé de Roma foi geralmente tida como supremo tribunal de apelo, donde os teólogos e os simples fiéis, tanto do Ocidente como do Oriente esperavam ouvir a palavra da verdade: os hereges arianos, por exemplo, pediram ao Papa Júlio I (+ 352) aprovasse a deposição do bispo de Alexandria, S. Atanásio, campeão da ortodoxia; o Pontífice então chamou a Roma acusadores e acusados, e fez-lhes justiça. O seu sucessor, o Papa Libério (+ 366), foi exilado pelo Imperador por haver recusado aprovar a condenação de Eustácio de Sebaste, mestre da reta fé. O Imperador Justiniano I mandou buscar o Papa Virgílio (+555) em Roma e submeteu-o a vexames em Constantinopla, porque o Pontífice se recusava a sancionar os éditos dogmáticos de S. Majestade; o mesmo aconteceu ao Papa Martinho I (+ 653) o que bem mostra o valor (diríamos: dirimente) que se atribuía à sentença de Roma, mesmo quando os bizantinos mais e mais se deixavam levar por tendências separatistas e autonomistas.
A esses testemunhos, que ainda poderiam ser acrescidos por outros, aplique-se agora um princípio clássico no Cristianismo: "Quod apud muitos unum invenitur, non est erratum, sed traditum" (Tertuliano), isto é, uma crença uniformemente professada por diversas comunidades não pode provir do erro, mas deriva-se de legítima tradição. Testemunhas numerosas, independentes e rigorosamente unânimes, merecem fé já no plano meramente humano...; Muito mais merecem-na no plano sobre-natural, onde Cristo assiste à sua Igreja.
Concluir-se-á então: o primado que os bispos de Roma desde o séc. I exerceram na Igreja é legítimo, pois não faz senão continuar o primado de Pedro, primado que este Apóstolo recebeu diretamente de Cristo.
Após esta explanação, entende-se que os concílios gerais haja sucessivamente até os tempos modernos inculcado o primado romano. Verdade é que em alguns sínodos do séc. XV se fizeram ouvir vozes "conciliaristas”; tais vozes, porém, não prevaleceram contra o que foi explicitamente declarado nos concílios de Leão II (1274; Denzinger, Enchiridion 466), de Florença (1439; Dz 694), do Vaticano I (1870; Dz 1822-1840), e na profissão de fé tridentina (1564; Dz 999).
O significado do título "Igreja Romana"
Na base de quanto acaba de ser dito, vê-se que o apelativo de Romana é tão característico da Igreja de Cristo quanto às designações de Católica e Apostólica.
O atributo Católico significa que a Igreja de Cristo é aberta a todos os povos, nada tendo de reservado a determinada nação. Apostólica indica que a Igreja está baseada sobre a pregação dos Apóstolos, cuja doutrina vai sendo transmitida ininterruptamente de geração a geração. Em determinadas épocas da história, poder-se-á admitir (ou exigir mesmo) a reforma dos homens da Igreja e dos seus costumes; nunca, porém, se empreenderá a reforma da estrutura essencial e do dogma da S. Igreja; a autenticidade dessa estrutura é garantida pela continuidade, ou seja, pelo contato ininterrupto com a obra dos primeiros Apóstolos.
Romana neste contexto significa que a Igreja de Cristo e dos Apóstolos é, em particular, a Igreja de Pedro, bispo de Roma, pois dentre os seus discípulos Jesus escolheu Simão para ser primaz. É a afinidade existente entre Pedro e o bispado de Roma que explica o título Romano. Como se vê, este não significa preferência nacionalista nem discutível predomínio de alguma nação sobre as demais dentro da Igreja universal de modo a se poder falar equivalentemente de "Igreja Anglicana", "Igreja Bizantina", "Igreja Moscovita", "Igreja Brasileira", "Igreja Católica Popular, Progressista (nos países da Cortina de Ferro)".
Igreja Romana significa Igreja Petrina, e Igreja Petrino significa Igreja onde Pedro e seus sucessores ocupam o lugar primacial que Cristo mesmo lhes assinalou; mais nada...
Pergunta-se agora: o Chefe visível da Igreja terá que ser necessariamente o bispo de Roma?
A este quesito deve-se dar resposta afirmativa por dois motivos:
a) a Arqueologia comprova a estada e a morte do Apóstolo Pedro em Roma; deste fato se segue que os sucessores de Pedro na cátedra romana são os herdeiros dos poderes entregues por Cristo àquele Apóstolo;
b) independentemente do fato arqueológico, fala a Tradição cristã, a qual sempre ensinou que o bispo de Roma é o Chefe visível da Cristandade. Ora essa voz unânime e constante da Tradição, ainda hoje afirmada na Igreja, é por si mesma suficiente fonte da Revelação.
Desta maneira a associação do primado com a sé romana é, para o católico, o que em linguagem técnica se chama "um fato dogmático", não "fato meramente histórico", isto é, fato cuja certeza está baseada em fundamento ainda mais sólido que o dos dados históricos; é, sim, por Revelação divina que o cristão professa tal associação. - Não será necessário, para explicar esse fato dogmático, dizer-se que Cristo mesmo escolheu a sé de Roma para sé principal (opinião de Melquior Cano, Gregório de Valença, S. Roberto Belarmino, nos séc. XVI/XVII), mas bastará admitir que o Espírito Santo tenha guiado S. Pedro para que este, de um modo qualquer, transmitisse aos bispos de Roma sua suprema jurisdição.
Donde se segue que nem ao Papa é lícito dissolver a união entre primado e sé romana. Verdade é que o Chefe visível da Igreja, o bispo de Roma, poderá por um motivo qualquer não residir nesta cidade (foi o que se deu de 1309 a 1376, durante o dito "Exílio de Avinhão"); Roma, por sua vez, poderá ser destruída e, por conseguinte, deixar de ser sede de bispado. Em qualquer hipótese, porém, o Vigário de Cristo será sempre, por direito, bispo de Roma (mesmo que na prática não possa exercer este direito).
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NOTA:
[1] Gn 17, 5s: "Daqui por diante não te chamarás mais Abrão, mas chamar-te-ás Abraão, porque te destinei para ser pai de muitos povos. E farei crescer a tua posteridade infinitamente e te farei chefe das nações, e de ti sairão reis".
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Papa: o primado de Pedro
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 375/1993)
Em síntese: Vai, a seguir, publicada uma Catequese de João Paulo II proferida na quarta-feira 16/12/92 sobre o exercício do primado de Pedro na Igreja nascente. São passados em revista atenta os textos dos Atos dos Apóstolos e das epístolas que evidenciam a função primacial de Pedro desde os primeiros dias da Igreja. Essa função, que tem a promessa da assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14,15-17. 26; 16,12s), é fator de unidade da Igreja.
***
O primado do Apóstolo Pedro e de seus sucessores é sempre um pon­to nevrálgico nas relações entre os católicos e os demais cristãos. É difícil a estes aceitar uma chefia visível para a Igreja, pois as tradições nacionais tendem a dilacerar a unidade da Igreja, unidade que uma chefia visível tem o papel de garantir. - É importante mostrar que está nos próprios desíg­nios do Senhor e nos documentos do Novo Testamento o fundamento do primado do Apóstolo Pedro, Pastor universal do rebanho, destinado a tute­lar a unidade da fé e da Moral dos cristãos sob a assistência do Espírito Santo.
O S. Padre João Paulo II dedicou três de suas Catequeses semanais à explanação dos textos do Novo Testamento relativos às funções de Pedro: aos 2 e 9/12/92, deteve-se sobre os Evangelhos, onde Jesus aparece prometendo e conferindo o primado a Pedro; ver Mt 16,16-19; Lc 22, 31s e Jo 21, 15-17. Aos 16/12 percorreu os textos dos Atos dos Apóstolos e das epístolas que mostram o exercício de autoridade singular por parte de Pe­dro logo nos primeiros anos da Igreja. É esta terceira Catequese que vai abaixo transcrita em tradução portuguesa. Toma-se muito interessante perceber, numa leitura atenta, como de fato Pedro presidia ao Colégio dos Apóstolos desde os inícios do Cristianismo, ficando assim afastada a hipó­tese de uma instauração tardia e usurpativa do primado de Pedro e seus su­cessores.
A palavra do Papa seguir-se-á o depoimento do teólogo protestante Oscar Cullmann sobre o mesmo assunto.
1. A PALAVRA DO PAPA
1. Os textos que expus e expliquei nas catequeses passadas dizem respeito diretamente à missão, de Pedro, de confirmar na fé os irmãos e de apascentar o rebanho dos seguidores de Cristo. São os textos fundamentais sobre o ministério petrino. Contudo, eles devem ser considerados no qua­dro mais completo de todo o discurso neotestamentário sobre Pedro, a co­meçar pelo inserimento da sua missão no conjunto do Novo Testamento. Nas Epístolas de Paulo, ele é recordado como a primeira testemunha da res­surreição (cf. 1Cor. 15, 3ss), e Paulo disse que foi a Jerusalém "para ver Cefas" (cf. Gál. 1, 18). A tradição joanina registra uma grande presença de Pedro, e também são numerosas nos Sinóticos as referências a ele.
O texto neotestamentário diz respeito também à posição de Pedro no grupo dos Doze. Nele sobressai o trio Pedro, Tiago e João: basta pensar, por exemplo, nos episódios da transfiguração, da ressurreição da filha de Jairo, do Getsêmani. Pedro está sempre no primeiro lugar em todas as lis­tas dos Apóstolos (em Mt. 10,2 até com a qualificação de "primeiro"). É ­lhe dado por Jesus um novo nome, Kefa, que é traduzido em grego (era portanto considerado significativo), para designar a tarefa e o lugar que Si­mão terá na Igreja de Cristo.
São elementos que nos servem para compreender melhor o significa­do histórico e eclesiológico da promessa de Jesus, contida no texto de Ma­teus (16,18-19), e o conferimento da missão pastoral narrado por João (21,15-19): o primado de autoridade no colégio apostólico e na Igreja.
2. Trata-se de um dado de fato, narrado pelos evangelistas como ano­tadores da vida e da doutrina de Cristo, mas também como testemunhas da crença e da praxe da primeira comunidade cristã. Nos textos deles resulta que, nos primeiros tempos da Igreja, Pedro exercia a autoridade de modo decisivo ao nível mais elevado. Este exercício, aceito e reconhecido pela comunidade, está em correspondência histórica com as palavras pro­nunciadas por Cristo acerca da missão e do poder de Pedro.
É fácil admitir que as qualidades pessoais de Pedro não teriam sido por si sós suficientes para obter o reconhecimento de uma autoridade su­prema na Igreja. Mesmo se tinha um comportamento de chefe, já demons­trado naquela espécie de associação para a pesca no lago, feita por ele com os "companheiros" João e André (cf. Lc. 5, 10), não teria podido impor se sozinho, dado que tinha limites e defeitos de igual modo conhecidos. E, por outro lado, sabe-se que, durante a vida terrena de Jesus, os Apóstolos tinham discutido sobre quem, de entre eles, teria obtido o primeiro lugar no reino. Portanto, o fato de que a autoridade de Pedro fosse depois reco­nhecida pacificamente na Igreja, é devido exclusivamente à vontade de Cristo, e demonstra que as palavras com as quais Jesus tinha atribuído ao Apóstolo a sua particular autoridade pastoral, tinham sido escutadas e re­cebidas sem dificuldade na comunidade cristã.
3. Façamos uma breve exposição dos fatos. Logo depois da Ascen­são, refere o Livro dos Atos, os Apóstolos reuniram-se: na sua lista, Pe­dro é o primeiro a ser nomeado (cf. At 1,13), como também nas listas dos Doze, que nos são fornecidas pelos Evangelhos e na enumeração dos três privilegiados (cf. Mc 5, 37; 9,2; 13,3; 14, 33 e par.).
É ele, Pedro, que por sua iniciativa toma a palavra: "Naqueles dias, le­vantando-se Pedro no meio dos irmãos" (At. 1,15). Não é a autoridade que o designa. Ele comporta-se como quem possui a autoridade. Naquela reunião Pedro expõe o problema que surgiu da traição e da morte de Judas, que reduz o número dos Apóstolos a onze. Por fidelidade à vontade de Je­sus, cheia de simbolismo sobre a passagem do Antigo Israel ao Novo (doze tribos constitutivas - doze Apóstolos), Pedro indica a solução que se im­põe: designar um substituto que seja, com os onze, "testemunha... da res­surreição" de Cristo (cf. At. 1,21-22). A assembléia aceita e põe em práti­ca esta solução, tirando à sorte, a fim de que a designação viesse do alto: e "a sorte caiu em Matias, o qual foi associado aos onze Apóstolos" (At. 1, 26).
Convém ressaltar que entre as testemunhas da ressurreição, em virtu­de da vontade de Cristo, Pedro tinha o primeiro lugar. O anjo que anuncia­ra às mulheres a ressurreição de Jesus dissera: "Ide, dizei aos seus discípulos e a Pedro..." (Mc. 16, 7). João deixa que seja Pedro o primeiro a entrar no sepulcro (cf. Jo. 20,1-10). Aos discípulos que retornaram de Emaús os outros dizem: "Na verdade o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão" (Lc. 24,34). É uma tradição primitiva, recolhida pela Igreja e referida por São Paulo, que Cristo ressuscitado apareceu primeiro a Pedro: "foi visto por Cefas e depois pelos onze" (1Cor 15, 5).
Esta prioridade corresponde à missão, conferida a Pedro, de confir­mar na fé os seus irmãos, como primeira testemunha da ressurreição.
4. No dia de Pentecostes Pedro age como chefe das testemunhas da ressurreição. É ele quem toma a palavra, com um impulso espontâneo: "Pedro, apresentando-se com os onze, levantou a voz e disse..." (At 2,14). Ao comentar o que tinha acontecido, ele declara: "A este Jesus ressuscitou Deus, do que todos nós somos testemunhas" (At 2,32). Os Doze são teste­munhas deste fato: Pedro proclama isto em nome de todos. Podemos dizer que ele é o porta-voz institucional da primeira comunidade e do grupo dos
Apóstolos. É ele que indica a quem o escuta o que devem fazer: "Fazei pe­nitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo..." (At 2, 38).
É ainda Pedro que realiza o primeiro milagre, causando o entusiasmo da multidão. Segundo a narração dos Atos, ele encontra-se em companhia de João quando se dirige ao coxo que pede esmola. É ele que fala. "Pedro, pondo nele os olhos juntamente com João, disse: olha para nós!". Ele (o coxo) olhava para eles com atenção, esperando receber alguma coisa. Mas Pedro disse: "Não tenho prata nem ouro, mas, o que tenho, isto te dou: em nome de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e anda!". E, tomando­-o pela mão direita, levantou-o, e imediatamente se lhe consolidaram os pés e os tornozelos. Dando um salto, pôs-se em pé, e andava..." (At. 3, 3-8). Portanto Pedro, com as suas palavras e os seus gestos, faz-se instrumento do milagre, convencido de dispor do poder que Jesus lhe tinha conferido também neste campo.
É precisamente neste sentido que ele explica ao povo o milagre, mos­trando que a cura manifesta a potência de Cristo ressuscitado: "Deus res­suscitou-O dos mortos, do que nós somos testemunhas" (At. 3,15). Por conseqüência, ele exorta quem o escuta: "Arrependei-vos, pois, e conver­tei-vos!" (At. 3,19).
No interrogatório do Sinédrio é Pedro, "cheio do Espírito Santo", que fala, para proclamar a salvação trazida por Jesus Cristo (cf. At. 4, 8s), crucificado e ressuscitado (cf. At. 7, 10).
Sucessivamente é Pedro que, "juntamente com os Apóstolos", res­ponde à proibição de ensinar em nome de Jesus: "Deve-se obedecer antes a Deus que aos homens..." (At. 5, 29).
5. Também no caso penoso de Ananias e Safira, Pedro manifesta a sua autoridade como responsável da comunidade. Ao repreender aquele casal cristão pela mentira do lucro da venda de um campo, ele acusa os dois culpados de terem mentido ao Espírito Santo (cf. At. 5, 1-11).
De igual modo o próprio Pedro responde a Simão mago, que tinha oferecido dinheiro aos Apóstolos para obter o Espírito Santo com a imposição das mãos: "O teu dinheiro pereça contigo, visto que julgaste que o dom de Deus se pode adquirir com dinheiro... Faze, pois, penitência desta tua maldade, e roga a Deus que, se é possível, te seja perdoado este pensa­mento" (At 8, 20.22).
Os Atos, além disso, dizem-nos que Pedro é considerado pela multi­dão como aquele que, ainda mais do que os outros Apóstolos, opera mara­vilhas. Certamente não é o único a realizar milagres: "Entretanto eram feitos pelas mãos dos Apóstolos muitos milagres e prodígios entre o povo" (At 5,12). Mas é principalmente d'Ele que esperam as curas: "traziam os doentes para as ruas e punham-nos em leitos e enxergões, a fim de que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos a sua sombra algum deles" (At. 5, 15).
Portanto, nestes primeiros momentos do início da Igreja, sobressai claramente um aspecto: sob a força do Espírito e em coerência com o mandamento de Jesus, Pedro age em comunhão com os Apóstolos, mas toma a iniciativa e decide pessoalmente como Chefe.
6. Explica-se deste modo também o fato de que, no momento da prisão de Pedro por parte de Herodes, se tenha elevado na Igreja uma ora­ção mais ardente por ele: "Pedro, pois, estava assim guardado no cárcere. Entretanto a Igreja fazia sem cessar oração a Deus por ele" (At 12,5). Também esta oração deriva da convicção comum da importância única de Pedro: com ela tem início a cadeia ininterrupta de súplicas que se elevarão na Igreja em todos os tempos pelos sucessores de Pedro.
A intervenção do Anjo e a libertação milagrosa (cf. At 12, 6-17), além disso, manifestam a proteção que lhe permite realizar toda a missão pastoral que lhe foi confiada. Os fiéis pedirão esta proteção e assistência para os Sucessores de Pedro, nas penas e perseguições que encontrarão sempre no seu ministério de "servos dos servos de Deus".
7. Podemos concluir reconhecendo que, verdadeiramente, nos pri­meiros tempos da Igreja, Pedro age como aquele que possui a primeira au­toridade do âmbito do colégio dos Apóstolos, e por este motivo fala em nome dos Doze como testemunha da ressurreição.
Por isso faz milagres que se assemelham aos de Cristo e realiza-os em Seu nome. Por isso assume a responsabilidade do comportamento moral dos membros da primeira comunidade e do seu futuro desenvolvimento. Por isso está no centro do interesse do povo de Deus e da oração dirigida ao Céu a fim de lhe obter a proteção e a libertação.
2. A PALAVRA DE UM PROTESTANTE
O teólogo protestante Oscar Cullmann distingue-se por sua erudição e sua abertura de espírito. Foi observador do Concílio do Vaticano II, a convite do Papa Paulo VI e é bom amigo do Cardeal Joseph Ratzinger; foi agraciado com o prêmio Paulo VI do Instituto do mesmo nome, dada a sua contribuição para o profícuo diálogo católico-protestante.
Autor de vários livros, foi entrevistado por Lúcio Brunelli e Alfred Labhart em nome da revista 30 DIAS, à qual fez significativas declarações sobre o primado de Pedro. Transcrevemo-las a partir do número de março 1993, p. 12, da citada revista (edição brasileira):
R: O senhor atribui a Roma toda a responsabilidade pela ruptura com Lutero?
CULLMANN: Não, a responsabilidade é de ambas as partes, também de Lutero. Ele disse coisas sem propósito sobre o papado ("fundado pelo diabo") e sobre a Eucaristia. Havia reformadores como Martin Butzer, de Estrasburgo, que não queriam a ruptura mas uma reforma interna. Eu tam­bém nasci em Estrasburgo e considero isso um fato providencial para toda a minha vida e a reflexão que fiz. 0 cristianismo alsaciano sempre viveu a unidade na diversidade.
R: Lutero disse também: "Se obtivermos o reconhecimento do fato de que Deus justifica unicamente por pura graça, nós não só levaremos o Papa na palma da mão, mas também beijaremos os seus pés". Que espaço existe para o ministério de Pedro na sua proposta?
CULLMANN: Eu considero o serviço de Pedro um carisma da Igreja católica, com a qual nós, protestantes, também temos que aprender. Eu o vejo à luz dos problemas que a secularização traz para as denominações protestantes. Não concordo com tudo o que o Papa diz, mas pelo menos existem diretrizes. No mundo protestante elas não existem. Nós também precisaríamos de uma forma de magistério. 0 Papa é o bispo de Roma e, enquanto tal, ele poderia ter a presidência da "comunidade das Igrejas" de que falei. Pessoalmente, vejo o papel dele como de quem garante a unidade. Ele poderia ser aceito, se não tivesse jurisdição sobre todos os cristãos, mas um primado de honra. 0 serviço de Pedro seria necessário, em uma forma nova, inclusive como reação contra possíveis erros coleti­vos. Nem sempre a maioria traz a verdade. Por isso, sou contra a mistura de Igreja com democracia. Na Idade Média, havia elementos do baixo cle­ro que pediam que os judeus fossem queimados, e os Papas reagiram con­tra esses métodos.
Este texto sugere alguns comentários:
1) Oscar Cullmann reconhece a necessidade de uma autoridade na igreja, que promulgue diretrizes e exerça o magistério. Tal necessidade lhe parece tanto mais evidente quanto mais se verifica que o protestantismo se vai esfacelando diante dos problemas que a secularização (ou o apaga­mento da fé) lhe tem suscitado: "Considero o serviço de Pedro um caris­ma da Igreja Católica, do qual nós, protestantes, temos que aprender... (No catolicismo) existem diretrizes; no mundo protestante elas não exis­tem. Nós também precisaríamos de uma forma de magistério... O papel do Papa garante a unidade".
2) Cullmann parece incoerente quando, logo a seguir, concebe o Pa­pa como dotado apenas de "um primado de honra". - O primado de hon­ra ocorre entre os ortodoxos orientais, que o atribuem ao Patriarca de Constantinopla (Istambul); tal função honorífica não é suficiente para garantir a unidade de doutrina e a comunhão dos membros da Igreja; os ortodoxos orientais se distribuem por "igrejas autocéfalas", cada qual go­vernada por um Sínodo local.
3) Cullmann mesmo torna a dizer, no fim do seu depoimento, que ele quer uma instância que "reaja contra eventuais erros coletivos". Ora esta função só é possível se tal instância possui autoridade e é respeitada como árbitro em questões controvertidas, ... árbitro que tem a palavra final porque goza da infalível assistência prometida por Jesus a Pedro (cf. Mt 16, 16-19; Lc 22,31s; Jo 21, 15-17; Jo 14,16s. 26; 16,13-15). Cullmann julga que a Igreja não pode ser estruturada como uma democra­cia, em que as grandes questões são resolvidas pelo voto da maioria; deve haver uma autoridade carismática, assistida por Deus, para preservar a multidão de incorrer nos erros que a fragilidade humana pode ocasionar. - Em última análise, portanto, Cullmann reconhece a validade do minis­tério do Papa como indispensável fator e penhor da unidade de doutrina e de comunhão da Igreja.
4) As declarações de Cullmann levam espontaneamente o leitor a pensar no contraste existente entre o protestantismo culto e a protestan­tismo de pouca profundidade do nosso Brasil. Enquanto aquele tende a reler o passado com olhar objetivo, destituído de paixões e preconceitos, o protestantismo no Brasil se fecha em preconceitos e se exprime em atitu­des agressivas, fanáticas, freqüentemente caluniosas. Quanto mais estudo há, tanto mais os cristãos podem derrubar os obstáculos da unidade, ao passo que a pouca cultura religiosa alimenta suspeitas infundadas e di­visões.
O Espírito de Deus, que hoje em dia impele os cristãos à procura da unidade, leve a termo a obra iniciada!
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Papa: o dogma da infalibilidade
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 440/1999)
Por Mary Schultze
Em síntese: Mary Schultze, escritora do jornal "A Folha Universal", escreveu um artigo que pretende narrar as ocorrências em torno da definição do dogma da infalibilidade papal no Concílio do Vaticano I em 1870. Todavia, movido por preconceitos, seu relato apresenta um conjunto de inverdades, que procuramos abaixo esclarecer. Não se pode negar que houve contestação à definição dogmática por parte de certos prelados e de porta-vozes da opinião pública - fatos estes que estão longe de ter tomado as proporções que a escritora lhes atribui.
* * *
A Redação de PR recebe freqüentemente exemplares do jornal "A FOLHA UNIVERSAL", da Igreja Universal do Reino de Deus, enviados por leitores que pedem esclarecimentos a respeito das acusações aí formuladas contra a Igreja Católica. Temos consciência de que a polêmica religiosa não é oportuna. Todavia cremos também que PR não pode deixar de atender a pessoas que professam a fé católica e se sentem afetadas pelos artigos agressivos de "A FOLHA UNIVERSAL". Responder a tais artigos vem a ser um dever de consciência, pois a Verdade não pode ser ultrajada sem que procuremos restaurá-la em tom objetivo e sereno. É este o propósito de PR quando, por solicitação de seus leitores, comenta injustas e falsas alegações de "A FOLHA UNIVERSAL". Importa que a Verdade seja conhecida com todos os seus ângulos, quando se trata de assuntos atinentes ao Senhor Deus.
Entre os mais violentos artigos dos últimos tempos está o da Sra. Mary Schultze intitulado "O Dogma da Infalibilidade". Tal autora procura reconstituir os acontecimentos atinentes à definição de tal dogma por ocasião do Concílio do Vaticano I em 1870. Todavia é vítima de preconceitos passionais. O artigo termina atribuindo ao Cardeal Agnelo Rossi, ex-arcebispo de São Paulo, uma trama para assassinar o pastor batista Aníbal Pereira dos Reis, alegação esta que peca gravemente contra a verdade.
Nas páginas que se seguem, abordaremos a temática da definição da infalibilidade papal, ficando para o artigo seguinte o que diz respeito ao Cardeal Agnelo Rossi e o pastor Pereira dos Reis.
1. O Problema
Eis alguns dos tópicos mais salientes da primeira parte da explanação de Mary Schultze:
«No dia 08 de dezembro de 1869, o papa Pio IX abriu o Concílio Vaticano I, o qual tinha por meta principal a proclamação do dogma da infalibilidade papal. A maioria dos católicos e muitos bispos eram totalmente contrários à proclamação desse dogma, por ser absolutamente contrário às Sagradas Escrituras.
Instalado o concílio, com a maciça presença dos bispos de todas as partes do mundo, começaram os trabalhos no sentido de se elaborar a proclamação definitiva de tal dogma (Quanta Cura). Os bispos que eram contrários tiveram seu direito de falar completamente cassado e seus passaportes foram retidos pelas autoridades conciliares. Alguns conseguiram fugir, enojados com a corrupção reinante lá dentro do recinto do concílio. Muito dinheiro correu no sentido de se conseguirem votos a favor.
Os que não se venderam e conseguiram fugir, de regresso aos seus países tiveram de se calar, temendo a divisão da Igreja que tanto amavam, a perda de seus cargos e até a morte. O historiador e erudito suíço August Bernhard Hasler, que se atreveu a contar a história suja desse Concílio através do seu livro 'Como o Papa se Tornou Infalível', teve morte súbita e misteriosa...
Pio IX, que foi o 'Hitler' do século XIX, revidou de maneira cruel e sanguinária contra os romanos, taxando-os de hereges, executando centenas deles e confinando aproximadamente oito mil nos calabouços do Palácio da Inquisição. Ali, os infelizes "hereges" eram acorrentados às paredes frias, completamente nus, transformados em esqueletos vivos pela fome e o desespero».
Vê-se que Mary Schultze enfatiza as dificuldades do Concílio e desfigura por completo a pessoa do Papa Pio IX - o que certamente é tendencioso. A Inquisição não existia mais nos tempos de Pio IX, de modo que é falso dizer que milhares de romanos foram confinados em seus calabouços. A seguir, apresentamos a história objetiva dos fatos.
2. Os preparativos do Concílio
Mais de trezentos anos haviam decorrido após a última assembléia do Concílio de Trento (3-4/12/1563), quando Pio IX, em dezembro de 1864, comunicou secretamente aos Cardeais a sua intenção de reunir novo Concílio Ecumênico: os tempos, ingratos como eram, o exigiam; era preciso deliberar sobre os remédios a oferecer-lhes - o que se faria por excelência num Concílio[1].
A Bula de convocação saiu aos 29/06/1868, convidando também os protestantes e os ortodoxos separados; estes, porém, não compareceram. A notícia de um próximo Concílio suscitou entusiasmo e também... apreensões; o público só sabia que seriam condenados erros contemporâneos, reafirmada a doutrina da Igreja, revistas a disciplina, a obra missionária, a formação dos seminaristas... Mas na Cúria Romana reinava um certo mistério sobre os intensos preparativos do Concílio. A agitação pública aumentou quando em fevereiro de 1869 a revista jesuíta La Civiltà Cattolica anunciou que o Concilio estava para definir a infalibilidade papal. O mundo não católico imbuído de liberalismo proclamava-se defensor da liberdade dos simples fiéis católicos, "subjugados pelo domínio obscuro e obscurantista dos eclesiásticos". Na Alemanha, o historiador Pe. Inácio Döllinger (1799-1890) colocou-se à frente do movimento anti-infalibilista, com diversos escritos contrários à definição. O Presidente de Ministros da Baviera, Clodoveu de Hohenhole, procurou suscitar uma intervenção dos Governos europeus contra os pretensos perigos do Concílio. Os bispos alemães reunidos em Fulda (setembro de 1869) enviaram um escrito ao Papa em que declaravam não julgar oportuna a definição, embora não se opusessem à doutrina; temiam as reações dos Governos e cisões entre os próprios católicos. Em verdade, a definição desse dogma podia parecer ousadia numa época em que se respirava o liberalismo.
3. O decorrer do Concílio
O Concílio foi aberto aos 08/12/1869 na basílica de São Pedro, com a presença de 764 prelados. - No mesmo dia e na mesma hora, abria-se em Nápoles, sob a presidência de Ricciardi, um anticoncílio, do qual participaram 700 delegados maçônicos do mundo inteiro; a Polícia dispersou esse conciliábulo após poucos dias, tal era a indignação popular provocada por blasfêmias contra Cristo e sua Mãe Imaculada.
Quatro foram as sessões públicas do Concílio. A terceira, aos 24/04/1870, promulgou uma Constituição Dogmática Dei Filius, unanimemente aprovada: o cap. 1º afirma a existência de um Deus pessoal, livre, Criador de todas as coisas e independente do mundo criado (contra o materialismo e o panteísmo); o capitulo 2º ensina que certas verdades religiosas, como a existência de Deus, "podem ser conhecidas com certeza pela luz natural da razão humana" (contra o ateísmo e contra o fideismo[2]; num século em que a fé cristã era escarnecida pelo racionalismo o Concílio defendia a razão!); o texto desse 2º capitulo acrescenta que houve uma Revelação Divina, a qual chega até nós mediante tradições orais e Escrituras Sagradas. O capítulo 3º proclama que a fé é uma adesão livre do homem a Deus, que supõe um dom da graça divina. O capítulo 4º define os setores próprios da razão e da fé e lembra que qualquer aparente desacordo entre razão e fé só pode vir de falsa compreensão das proposições da fé ou das conclusões da razão.
A quarta sessão do Concílio, aos 18/07/1870, definiu a infalibilidade do Papa e seu primado de jurisdição sobre a Igreja inteira. O texto proposto à discussão dos padres conciliares foi debatido de março a julho; a assembléia se dividiu em dois campos: a grande maioria julgava a definição oportuna e necessária (eram apoiados por uma corrente de leigos franceses, encabeçados por Louis Veuillot, que, repudiando os resquícios de galicanismo, eram ditos ultramontanos, pois ultrapassavam a cordilheira dos Alpes para aderir a Roma); os demais eram contrários à definição; destes, poucos se opunham ao dogma como tal; outros apenas negavam a oportunidade de o proclamar, por causa das reações que isto poderia provocar. Entre os adversários da definição, citam-se o bispo Strossmayer de Djakovar (Eslavônia), que, depois da definição, aceitou fielmente a sentença do Concílio; e o bispo Hefele, que aduzia o caso do Papa Honório contra a infalibilidade.
Eis o caso em foco: o Papa Honório I (625-38), homem pouco especulativo, foi solicitado pelo Patriarca Sérgio de Constantinopla para aderir ao monenergismo e ao monotelitismo[3]; Honório parece ter dado razão a Sérgio em suas cartas, ordenando que não se falasse mais nem de uma nem de duas energias (atividades) em Cristo; o Concílio Ecumênico de Constantinopla III em 681 condenou, por isto, o Papa Honório I. Ora deve-se dizer que Honório não tencionou pronunciar definições dogmáticas no caso; além disto, depreende-se do contexto mesmo das duas famosas cartas que, quando Honório fala de uma só vontade em Cristo, ele se refere ao plano moral e não ao plano físico (a vontade humana e a vontade divina em Jesus queriam sempre a mesma coisa). O mal de Honório não foi ter aderido ao erro, mas foi permitir, por descuido, que este se propagasse.
Os argumentos da oposição foram sendo desfeitos. Quando viram a causa perdida, 56 dos oposicionistas se retiraram de Roma, tendo pedido e obtido a licença do Papa, aos 17/07/1870; deixaram, porém, uma carta ao Santo Padre, em que afirmavam seu propósito de conservar sempre fidelidade e submissão à Santa Sé. No dia seguinte, 18/07, 533 padres conciliares deram voto favorável à Constituição Pastor Aeternus; dois apenas se manifestaram contrários, mas logo se anexaram à sentença positiva. Pio IX promulgou a Constituição, o que provocou calorosa aclamação em toda a basílica de São Pedro.
A Constituição assim aprovada consta de quatro capítulos, que afirmam o fundamento bíblico e patrístico, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano assim como a infalibilidade do magistério papal. A autoridade do Papa foi definida como sendo sumo e imediato poder de jurisdição sobre toda a Igreja, ficando assim condenados o galicanismo e o febronianismo[4] (cap. 3º). O capítulo 4º define como dogma revelado por Deus, que as definições do Romano Pontífice proferidas ex cathedra, isto é, na qualidade de Mestre da Igreja inteira, em questões de fé e de Moral, gozam de especial assistência do Espírito Santo; são, pois, infalíveis e irreformáveis por si mesmas, sem necessitar da aprovação da Igreja.
Após esta memorável sessão, o Concilio ainda estava no início das suas atividades. Dos 51 projetos de decreto, só tinha estudado e publicado dois; das questões disciplinares, só quatro haviam sido discutidas, mas não definidas. Não obstante, o Concílio teve que ser interrompido abruptamente, pois no dia seguinte, 19/07, estourou a guerra franco-alemã, que obrigou muitos prelados a regressar à pátria. Sobreveio a ocupação de Roma aos 20/09/1870, que tornou praticamente impossível a continuação dos trabalhos. Em conseqüência, aos 20/10/1870 o Papa suspendeu o Concílio, que deveria voltar a reunir-se em época mais apropriada, mas na verdade nunca foi reaberto; o Concílio do Vaticano II (1962-65) havia de completar os seus trabalhos.
A importância do Concílio do Vaticano I é enorme para a Igreja. A definição da infalibilidade papal era a conclusão lógica de premissas contidas na própria Escritura (Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 21,15-17) e desenvolvidas através dos tempos; principalmente por ocasião dos litígios que afetavam a Igreja, foi emergindo na consciência dos cristãos a preeminência do magistério dos sucessores de Pedro. Precisamente as tendências galicanas e febronianas dos séculos XVII/XVIII serviram para aguçar essa tomada de consciência de modo mais vivo; humanamente falando, os católicos podiam ter optado pelo nacionalismo eclesial, mas o desenrolar dos embates e a ação do Espírito Santo levaram a Igreja como tal a reafirmar a antiga verdade do primado papal tanto em matéria de jurisdição quanto em matéria de doutrina. Numa época de descrença, a fé se afirmava de maneira corajosa. A própria Igreja aparecia como algo de transcendente ou como um sacramento, que o homem recebe de Deus, à diferença de outras sociedades e instituições.
A centralização explicitada pelo Concilio do Vaticano I teve expressões sempre mais perceptíveis durante os pontificados seguintes. Era preciso que ocorresse o Concilio do Vaticano II (1962-65) para terminar a obra que o anterior deixara inacabada. O Vaticano I só pôde abordar a função do Romano Pontífice, dentro do exíguo espaço de sua duração; o Vaticano II abordou também o papel dos bispos e dos presbíteros na Igreja, pondo em relevo o conceito de colegialidade que, sem apagar o primado de Pedro, enriquece a estrutura da Igreja.
Claro está que a agitação pública que precedeu e acompanhou o Vaticano I, não se apaziguou logo. - Os bispos da minoria oposicionista submeteram-se pouco depois, inclusive Hefele de Rottenburg (10/04/1871). Também a maior parte dos teólogos reconheceram a definição. - No cenário político, a definição do Vaticano I não foi tão focalizada e discutida como o teria sido se não fora a guerra franco-alemã; todavia alguns Estados e Estadistas tomariam atitude de suspeita diante da Igreja; a Prússia e alguns cantões da Suiça adotaram fortes medidas contra os católicos, que levaram ao Kulturkampf (secularização de bens eclesiásticos). Estas conseqüências desagradáveis, que culminaram no cisma dos Velhos-Católicos, não chegam a extinguir as vantagens que da definição resultaram para a Igreja.
4. Os Velhos Católicos
O sacerdote Inácio Döllinger, já mencionado como adversário da definição, desde cedo mostrara-se favorável ao sistema febroniano. Era famoso historiador e teólogo de Munique, que professava idéias liberais em matéria de doutrina e um certo relativismo ou historicismo.
Após a definição da infalibilidade, continuou a manifestar-se hostil ao Papado, que ele julgava desnecessário. A sua posição professada publicamente valeu-lhe a excomunhão da parte do arcebispo de Munique em 1871 - censura esta que em 1872 atingiu outros professores de Faculdades alemãs, por se terem agregado a Döllinger. Aos poucos esses adeptos do mestre, à revelia do próprio mestre, resolveram fundar uma Igreja própria, cujo chefe era o professor João Frederico von Schulte, de Praga. A partir de 1872 foram sendo criadas paróquias de "Velhos-Católicos". Esta designação se deve ao fato seguinte: quando o arcebispo de Munique voltou de Roma, após o Concílio, convidou Inácio Döllinger, a "trabalhar para a Santa Igreja"; este respondeu secamente: "Sim, para a antiga Igreja! - Há uma só Igreja, replicou o arcebispo, não existe nova nem antiga Igreja! - Mas fizeram uma nova!", retrucou o professor. Por conseguinte, Döllinger pertencia à Velha Igreja; resolveram também instituir um bispo para si em 1873 na pessoa do professor de Teologia Joseph Hubert Reinkens, que foi receber a ordenação episcopal das mãos do arcebispo jansenista de Utrecht na Holanda.
Em Pentecostes de 1874 um Sínodo em Bonn aprovou a constituição eclesiástica traçada por Schulte: cada povo tem sua Igreja nacional autônoma; as Igrejas nacionais estão ligadas pela "Conferência" de seus bispos. A autoridade suprema é o Sínodo, do qual fazem parte todos os eclesiásticos e os deputados dos leigos de cada paróquia; o Sínodo promulga leis e examina a administração. Na paróquia a autoridade suprema toca à assembléia dos fiéis, que elege o seu pároco; a este assiste o Conselho Paroquial.
Os Velhos-Católicos aos poucos foram sendo penetrados por teses protestantes, que lhes pareciam corresponder à disciplina da Igreja dos oito primeiros séculos (donde o nome "Velhos-Católicos"): rejeitaram, portanto, além do primado do Papa, o celibato sacerdotal, a confissão auricular, as indulgências, o culto dos santos, as procissões e peregrinações, a Imaculada Conceição. Introduziram a língua alemã na liturgia da Missa. Estas inovações causaram descontentamento dentro da própria comunhão cismática: dos Velhos-Católicos faziam-se Neo-protestantes. O próprio Inácio Döllinger abandonou publicamente a facção que ele inspirara.
Aliás, a figura de Döllinger ficou sendo misteriosa. Ele não teria levado suas idéias a tais conseqüências práticas; não queria o cisma formal. Conservou-se sempre fiel aos votos do seu sacerdócio; absteve-se de celebrar a S. Missa após a excomunhão. Sempre levou vida muito modesta, de severa sobriedade e muito trabalho. Parece que no fim da vida sentia saudades da Igreja de sua juventude. Desaconselhou mesmo a um de seus discípulos, Blennerhasset, que o seguisse no caminho tomado após o Vaticano I. O fato é que morreu em 1890 sem se ter reconciliado como a Igreja.
Em 1889, os Velhos-Católicos e os jansenistas se aliaram na chamada "União de Utrecht". As tendências liberais se fizeram sentir muito especialmente na Suíça, onde os Velhos-Católicos são chamados "Igreja Cristã Católica", dirigida por leigos e não por teólogos, como na Alemanha, porque as razões da oposição do Vaticano I eram mais políticas do que teológicas.
Para aprofundamento:
. BIHLMEYER-TÚCHLE, História da Igreja, vol. 3, Ed. Paulinas.
. PIERRARD, PIERRE, História da Igreja, Ed. Paulinas.
. ROGIER-AUBERT-KNOWLES, Nova História da Igreja, vol. 4., Ed. Vozes.
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Notas:
[1] Aliás, aos 08/12/1864 Pio IX, diante dos numerosos erros doutrinários que campeavam na sua época, publicou a encíclica Quanta Cura, tendo anexo um Syllabus ou resumo das falsas doutrinas contemporâneas, que o Papa reprovava; são oitenta sentenças, mais ou menos concisas, distribuídas em dez parágrafos: §1 - Panteísmo, naturalismo, racionalismo absoluto; §2 - Racionalismo moderno; §3 - Indiferentismo, latitudinarismo (laxismo ou liberalismo moral); §4 - Socialismo, comunismo, sociedades clandestinas, Sociedades Bíblicas, Sociedades Clérico-liberais; §5 - Erros sobre a Igreja e seus direitos; §6 - Erros sobre a sociedade civil considerada em si e em suas relações com a Igreja; §7 - Erros sobre Ética natural e Ética cristã; §8 - Erros sobre o matrimônio cristão; §9 - Erros sobre o poder temporal do Romano Pontífice; §10 - Erros que se referem ao liberalismo do século XIX. Trata-se de proposições já anteriormente condenadas em trinta e dois documentos do próprio Pio IX. A origem dessa coletânea remonta ao arcebispo de Perugia Gioacchino Pecci, depois Papa Leão XIII, que solicitara ao Pontífice uma súmula portadora de todos os erros do momento relativos à Igreja e à sua autoridade. O Syllabus impressionou os adversários da Igreja, que julgaram estar assim anatematizada a civilização moderna. Tal interpretação era falsa; Pio IX tencionava apenas repudiar a cultura meramente naturalista, que pretende compreender e orientar o homem sem Deus. A prova disto é que o inspirador do Syllabus, o Papa Leão XIII, procurou eficazmente conciliar a cultura do seu tempo e o Catolicismo.
[2] O fideismo ensina que as verdades religiosas só podem ser conhecidas pela fé.
[3] Monenergismo = em Cristo haveria uma só atividade (enérgela em grego) - a divina. Monotelitismo = em Cristo haveria uma só vontade (thélema, em grego). Estas doutrinas eram resquícios do monofisismo.
[4] Febronianismo vem de Febronius, pseudônimo de Nicolau de Hontheim. Atribuía o poder de jurisdição, na Igreja, à totalidade dos fiéis: o Papa e os Bispos seriam os delegados da comunidade, tendo sua atuação limitada por decisões de Concílios.
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Sábado, 12 de Maio de 2007

Papa: João Paulo II aos camponeses
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 250/1980)
Em síntese: No Recife, aos 7/07/80, o S. Padre João Paulo II pro­feriu uma homilia aos camponeses na qual propôs a seguinte escala de valores: a terra e o trabalho na terra são para o homem (todo homem), e o homem é para Deus. Isto exige conversão interior e disciplina da parte dos homens: disciplina que procurará moderar os interesses egoístas e cobiçosos, em favor do bem comum ou do acesso de todos aos bens da terra. Esta disciplina é chamada pobreza em espírito: implica desapego ou desprendimento interior, de modo que aqueles que possuem bens mate­riais os saibam pôr ao serviço do próximo, e aqueles que não os possuem não se tornem gananciosos ou inspirados pelo ódio e a violência.
Na perspectiva acima, o trabalho, especialmente o trabalho agrícola, deixa de ser mero fator de produção para tornar-se obra de amor a Deus e ao próximo, serviço aos irmãos, fonte de honra e alimento da oração. O trabalho vem a ser colaboração com o Criador e remate da obra da criação, que assim assume as feições que Deus lhe destinou desde todo e sempre: as plantas, os animais e os homens, em suma cada criatura em seu escalão, darão glória ao Criador num concerto harmonioso e universal.
***
Comentário: Em sua visita pastoral ao Brasil, o S. Padre João Paulo II dirigiu-se às mais diversas categorias de pessoas e enfrentou os mais árduos problemas sociais do país numa perspectiva de fé, equilíbrio e amor fraterno. Procurou assim dizer a verdade, sem ferir quem quer que seja, antes deixando os ânimos serenados e dispostos a melhorar...
Dentre as várias alocuções de S.Santidade escolhemos algu­mas especialmente significativas, cujo conteúdo irá resumido em PR e acompanhado de breve comentário em apêndice. Procura­remos guardar, tanto quanto possível, a expressão literal uti­lizada por S. Santidade.
Segue-se neste número o teor da homilia intitulada «A terra é dom de Deus» proferida no Recife aos 7/07/80.
I. A ALOCUÇÃO
O S. Padre iniciou a sua homilia saudando todos os cam­poneses do Brasil representados pela assembléia que partici­pava da Missa no Recife. Desempenham papel de enorme im­portância na sociedade do Brasil, papel que se exerce em situa­ções de marginalização, analfabetismo, insegurança... Daí o interesse de S. Santidade pelos trabalhadores do campo, a quem o Papa deseja dedicar uma palavra de estímulo e reconforto, inspirada tão somente pelos princípios da fé. A Igreja só dispõe da força do Espírito Santo e aguarda pleno respeito à autono­mia do domínio temporal; mas, consciente de suas responsabi­lidades, não quer omitir-se quando se trata de fazer que a vida humana se torne cada vez mais humana.
1. A terra e dom de Deus
A terra é dom de Deus outorgado a todos os seres huma­nos, que Ele quer reunidos em uma só família. Cf. Gn 1, 28s.
Por conseguinte, não corresponde aos desígnios de Deus administrar este dom de modo que os seus benefícios aprovei­tem somente a alguns poucos, ficando os outros, a imensa maio­ria dos homens, excluídos ou mesmo injustamente condenados a carência, pobreza e marginalização.
Não há dúvida, o direito de propriedade é legítimo, mas tem finalidade social, ou seja, deve servir ao bem comum; este prevalece sobre vantagens, comodidades e mesmo sobre algu­mas necessidades não primárias de origem particular.
«Não é, pois, admissível que, no desenvolvimento geral de uma sociedade, fiquem excluídos do verdadeiro progresso digno do homem precisamente os homens e as mulheres que vivem em zona rural, aqueles que estão prontos a tornar a terra pro­dutiva graças ao trabalho de suas mãos e que têm necessidade da terra para alimentar a família».
Disto se segue a necessidade de
2. Justa legislação
Impõe-se uma legislação justa em matéria agrária, de modo que sirva ao bem de todos os homens e não apenas a interesses de minorias ou de indivíduos. Essa legislação justa há de ser acompanhada por sincera conversão do homem ao homem na sua plenitude e transcendência.
Com outras palavras: a organização social está a serviço do homem, e não ao contrário. Deve, pois, assegurar ao homem do campo condições adequadas para que possa permanecer em sua terra e aí encontrar os meios de viver conforme a dignidade humana; empurrar o homem rural para o êxodo incerto em direção das grandes metrópoles é desrespeitar os seus direitos de homem e de filho de Deus.
«Os trabalhadores da terra, como os trabalhadores de qualquer outro ramo de produção, são e devem permanecer sempre, aos próprios olhos e aos olhos dos outros,... antes de tudo pessoas humanas: devem ter as possibilidades de ‘ser mais’ homem e, ao mesmo tempo, ser tratados de acordo com a sua dignidade humana. Sendo o trabalho para o homem, e não o homem para o trabalho, é exigência fundamental... que ele possa tirar do mesmo trabalho os meios necessários e suficien­tes para fazer frente, com decência, às próprias responsabilida­des familiares e sociais.
Jamais o homem é mero instrumento de produção».
3. Pobreza e riqueza
A propósito de pobreza e riqueza, vem ao caso a parábola do ricaço e de Lázaro (Lc 16,19-31). «Nesta parábola Cristo não condena o rico porque é rico... Ele condena fortemente o rico que não leva em consideração a ... penúria do pobre Lá­zaro... Cristo não condena a simples posse de bens materiais. Mas suas palavras mais duras dirigem-se para aqueles que usam sua riqueza de maneira egoísta, sem se preocupar com o próximo...»
Cristo apregoa a bem-aventurança dos que são pobres em espírito (cf. Mt 5,3). Este tipo de pobreza deve afetar tanto aqueles que possuem como os que não possuem bens materiais.
Assim são pobres em espírito e, por conseguinte, bem-aven­turados os ricos que sabem desapegar-se de suas posses e de seu poder, para colocá-los a serviço dos necessitados, para se comprometer na busca de uma ordem social justa... a fim de que os marginalizados possam encontrar lugar à mesa da famí­lia humana.
Também são pobres em espírito e bem-aventurados aque­les que, carecendo de bens materiais, conservam no entanto a sua dignidade de homem. Bem-aventurados os pobres que, por causa de Cristo, têm especial sensibilidade pelo irmão que pa­dece necessidade, pelo próximo que é vitima de injustiças, que sofre privações como a fome, a falta de emprego, a impossibili­dade de educar dignamente os seus filhos.
No que diz respeito aos bens de primeira necessidade - alimento, vestuário, habitação, assistência médico-social, ins­trução de base, formação profissional, transporte, informação, possibilidades de se distrair, vida religiosa - impõe-se que não haja estratos sociais privilegiados. Que entre os ambientes urba­nos e ambientes rurais não se verifiquem desigualdades clamo­rosas, e, quando estas se criam, haja uma pronta aplicação dos meios adequados para que sejam eliminadas ou reduzidas até onde for possível. Nisto todos e cada um hão de sentir-se com­prometidos: pessoas, grupos sociais e poderes públicos a todos os níveis.
4. Direito de participar
«Aos trabalhadores da terra, como aos demais trabalhado­res, não pode ser negado, por nenhum pretexto, o direito de participação e comunhão, com senso de responsabilidade, na vida das empresas e nas organizações destinadas a definir e salvaguardar os seus interesses, e mesmo na árdua e perigosa caminhada rumo à indispensável transformação das estruturas da vida econômica, sempre em favor do homem.
Tal presença ativa dos trabalhadores nos diversos níveis da sua sociedade profissional supõe sempre uma economia a serviço do homem. Esta, por sua vez, supõe uma prévia con­versão das mentes e dos corações ao homem, à verdade do homem.
5. Exortação final
O trabalho, além de ser meio de ganhar a vida, é fonte de honra e é oração. Isto se torna válido especialmente para os trabalhadores da terra, chamados ao contato com a natureza e a colaborar diretamente com Deus Criador para que este pla­neta seja cada vez mais conforme aos desígnios de Deus; seja o ambiente desejado para todas as formas de vida: a vida das plantas, a vida dos animais e a vida, sobretudo, dos homens. Façamos, pois, tudo o que esteja ao nosso alcance para que, servindo ao homem, «toda a terra adore a Deus, o celebre e cante o seu nome (SI 65,4) ».
É notório que no Brasil se estão estudando iniciativas de vasto alcance para o setor agrícola. Queira Deus que o huma­nismo cristão as ilumine sempre!
«Por vocês e com vocês, queridos irmãos camponeses, em seu nome e em nome de Deus eu peço aos outros nossos irmãos: que se procure a colaboração e a concórdia; que todos os res­ponsáveis e interessados pelo bem de cada homem - poderes públicos a nível nacional, estadual e local, grupos, organizações e todos os homens de boa vontade, com a específica contribui­ção da Igreja no desempenho da própria missão – busquem e apliquem as medidas reais, adequadas e eficazes, para satis­fazer aos direitos do homem do campo, para ajudá-lo. Nisto, quem tem mais, mais se deve sentir obrigado a cooperar.
Somos a família dos filhos de Deus. Como irmão, quero dizer-lhes, amados camponeses do Brasil, que vocês valem muito. Conservem as suas riquezas humanas e religiosas: o amor da família, o sentido da amizade e da lealdade, a solida­riedade com os mais necessitados entre vocês, o respeito pelas leis e por tudo o que é legítimo na convivência civil, o amor à boa harmonia e à paz, a confiança em Deus e a abertura para o sobrenatural, a devoção a Nossa Senhora, etc. Por Ela, por Nossa Senhora aqui, diante de uma Igreja que lhe é dedicada, sob um título para mim tão querido - Nossa Senhora do Carmo - peço a Deus que a todos assista, conforte e ajude.
Com a minha Bênção Apostólica!»
II. REFLEXÕES
O que mais chama a atenção nesta homilia de João Paulo II, é a escala de valores que propõe: a terra e o trabalho na terra são para o homem (todo homem); e o homem é para Deus. Isto exige conversão interior e disciplina da parte dos homens: disciplina que procurará moderar os interesses egoís­tas e cobiçosos, em favor do bem comum ou do acesso de todos aos bens da terra. Esta disciplina é chamada pobreza em espírito: significa desapego ou desprendimento interior, de modo que aqueles que possuem bens materiais, os saibam pôr ao serviço do próximo, e aqueles que não os possuem não se tornem gananciosos ou inspirados pelo ódio e a violência.
Na perspectiva acima o trabalho, especialmente o traba­lho agrícola, deixa de ser mero fator de produção, para tor­nar-se obra de amor a Deus e ao próximo, serviço aos irmãos, fonte de honra e alimento da oração. O trabalho vem a ser cola­boração com o Criador e remate da obra da criação, que assim assume as feições que Deus lhe destinou desde todo o sempre: as plantas, os animais e os homens, em suma cada criatura em seu escalão, darão glória ao Criador num concerto harmonioso e universal.
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Papa: a morte do Papa João Paulo I
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 462/2000)
Em síntese: A morte repentina do Papa João Paulo I em setembro de 1978 causou grande surpresa e sugeriu hipóteses várias, entre as quais a de ter sido envenenado o Pontífice. Um livro recente de dois jornalistas italianos recolhe testemunhos e dados diversos a respeito, chegando à conclusão muito provável de que João Paulo I morreu de embolia pulmonar, cujos sintomas ele havia sentido na tarde anterior ao desenlace; recusara, porém, chamar o médico, de modo que foi vítima do mal que o acometia.
* * *
Os jornalistas italianos Andrea Tornielli e Alessandro Zangrando publicaram um livro cujo título, em tradução portuguesa, soa: "João Paulo I. O Papa do Sorriso" (editora Quadrante, São Paulo). A obra apresenta uma biografia do Pontífice, cujo penúltimo capítulo trata da morte de Papa Luciani. Os dados aí coletados são importantes para elucidar tão repentino desenlace, diante do qual houve quem levantasse a hipótese de envenenamento. - Visto que o tema é de grande interesse, transcreveremos, nas páginas subseqüentes, os segmentos que melhor esclarecem o enigma.
A MORTE
"Peço-te uma graça: quisera que Tu estivesses ao meu lado na hora em que fechar os olhos para este mundo. Quisera que segurasses a minha mão na tua, como faz a mãe com o seu filho na hora do perigo. Muito obrigado, Senhor!"
Na noite de 28 para 29 de setembro de 1978, o Papa Albino Luciani morre repentinamente. "Hoje, 29 de setembro, por volta das 05h30min, o secretário particular do Papa, o reverendo John Magee, ao ver que o Santo Padre não se encontrava na capela privada do seu apartamento, como de costume, foi buscá-lo no seu quarto e achou-o morto no leito, com a luz acesa, como se ainda estivesse imerso na leitura. O médico, Dr. Renato Buzzonetti, que acudiu imediatamente, comprovou a sua morte, que presumivelmente lhe sobreveio por volta das 23 horas de ontem, e diagnosticou «uma morte repentina devida a um enfarte agudo do miocárdio»".
O atestado de óbito, assinado por Buzzonetti e pelo diretor de serviços sanitários do Vaticano, Mano Fontana, diz: "Certifico que Sua Santidade João Paulo I, Albino Luciani, nascido em Forno di Canale (Belluno) em 17 de outubro de 1912, faleceu no Palácio Apostólico Vaticano em 28 de setembro de 1978, às 23 horas, por «morte imprevista, de enfarte agudo do miocárdio». O óbito foi comprovado às 6 horas do dia 29 de setembro de 1978" (pp. 108s).
"A notícia da morte prematura do Papa dá a volta ao mundo num abrir e fechar de olhos. Os fiéis estão atônitos, consternados. O rosto pacífico e sorridente do Pontífice vêneto, as suas lições de Catecismo, o seu modo simples de falar, a sua grande humildade, haviam tocado o coração de milhões de pessoas. O seu corpo é embalsamado dentro das 24 horas seguintes ao falecimento. Com as vestes vermelhas e a mitra branca sobre a cabeça, é exposto primeiro na Sala Clementina, na Basílica de São Pedro. Milhares de romanos acodem a render-lhe a homenagem.
O Papa não deixou testamento: tinha acabado de mandar destruir o que se conservava no Patriarcado de Veneza e ainda não tinha escrito o novo. Como acontecera em Vittorio Veneto e em Veneza, também havia chegado pobre ao Vaticano, sem nenhum bem" (p. 111).
Uma versão tida como mais provável, afirma que o Papa morreu de embolia pulmonar[1].
"O último dia da vida de Albino Luciani havia começado, como de costume, muito cedo. Depois da oração, celebrou a Missa na capela privada e tomou o café da manhã. Às 09h30min recebeu em audiência o cardeal africano Bernaldin Gantin, junto com os secretários dos conselhos pontifícios Cor Unum e Justitia et Pax. Falaram dos problemas do Terceiro Mundo. João Paulo I disse a Gantin: "É somente Jesus Cristo quem nós devemos apresentar ao mundo. Fora disso, não teríamos razão alguma para falar; por nossa incapacidade, nem sequer seríamos escutados pelos outros".
No final da audiência, Gantin notou a energia com que o Papa se levantou e dispôs as cadeiras para fazer uma foto de grupo. Nas horas seguintes, Luciani recebeu os núncios apostólicos do Brasil e da Holanda, o diretor do Gazzetino e nove bispos das Filipinas.
Às 12h30min, João Paulo I almoçou com os dois secretários, Diego Lorenzi e John Magee. A reconstrução de tudo o que aconteceu naquela tarde foi possível graças às declarações posteriores dos dois sacerdotes. Ambos, com efeito, permaneceram em silêncio durante anos. O primeiro a rompê-lo, surpreendentemente, foi Lorenzi, no decorrer da transmissão do programa televisivo Gialio, conduzido por Enzo Tertora na RAI 2 em 02 de outubro de 1987, nove anos mais tarde. Lorenzi revelou que na tarde do dia 28 de setembro João Paulo I sentiu uma forte dor no peito. Também o padre Magee, já bispo da Irlanda, depois de ter sido secretário e mestre de cerimônias do Papa Wojtyla, narrou algo parecido, primeiro à revista Trentagiorni, em 1988, e depois, no ano seguinte, ao jornalista John Cornwell. Este último foi autor do livro Un ladro nella notte (Um ladrão na noite), que foi aprovado pelas autoridades vaticanas e serviu para rebater as teses de quem sustentava que o Papa havia sido assassinado.
Depois de uma breve pausa para repouso, João Paulo I confessou a Magee:
"- Não me sinto muito bem".
O secretário disse-lhe:
"- Deixe-me chamar o doutor Buzzonetti".
"- Oh não, não...", respondeu o Papa, "não é preciso chamar o médico. Andarei um pouco pelos quartos".
Segundo Magee, "o doutor Buzzonetti tinha sido escolhido como médico do Papa Luciani [...]. Buzzonetti tinha entrado em contato no sábado anterior com o médico que o Papa tinha no Vêneto, o doutor Antonio Da Ros, e tinham combinado que este último enviaria ao Vaticano o histórico clínico de João Paulo I". O secretário, portanto, sabia que Buzzonetti era o responsável pela saúde do Papa. Mas o médico não foi avisado desse mal-estar.
Das 14h30min às 16h39min, o padre John Magee ausentou-se do apartamento pontifício para ir buscar uns livros, e deixou o Papa passeando pela sala. Quando voltou, João Paulo I continuava a andar. Uma hora depois, ouviu-o tossir violentamente e precipitou-se em sua direção:
"- Sinto uma pontada", disse o Papa, segundo relata o bispo Magee.
"- Não seria melhor chamar o médico?", insistiu o secretário, "pode ser algo grave".
Luciani voltou a recusar, e pediu à irmã Vicenza que lhe trouxesse algum remédio. Segundo John Cornwell, "com quase toda a certeza, naquele momento o Papa estava sofrendo uma leve embolia pulmonar. Estava realmente doente e precisava da atenção imediata de um especialista".
Às 18h30min, chegou aos aposentos pontifícios o Secretário de Estado Jean Villot. Foi recebido pelo Papa, com quem trabalhou durante mais de uma hora. Trataram, muito provavelmente, da escolha do novo Patriarca de Veneza.
Terminada a audiência, tanto Magee como Diego Lorenzi se encontravam no escritório da secretaria do Papa. Nesse momento, segundo Lorenzi, João Paulo I queixou-se de outra "terrível pontada": "Por volta das 19h45min, assomou à porta do seu gabinete de trabalho e disse ter sentido uma pontada terrível, mas que já havia passado". Lorenzi disse que seria necessário chamar o médico. De novo o Papa se recusou e não foram consultados nem o doutor Buzzonetti nem o doutor Antonio Da Ros em Vittorio Veneto.
O Papa e os dois secretários sentaram-se para jantar. "Naquela última noite, desenvolveu-se à mesa uma conversa estranha" - relata o padre John Magee -. "Eu tinha resolvido lembrar ao Papa que devia escolher com certa antecedência a pessoa que iria pregar o retiro de Quaresma. Ele disse:
"- Sim, sim, é verdade, já pensei nisso, mas o retiro que eu quisera agora seria o retiro de uma boa morte".
"Eram 20h15min. Disse-lhe:
"- Mas, Santidade, de maneira nenhuma".
Tinha ainda na cabeça a morte de Paulo VI, e não queria ouvir falar de morte outra vez. Mas o Papa insistiu:
"- Sim, sim, gostaria de fazer um retiro desse tipo".
Dom Diego lembrou-se de uma oração. E o Papa corrigiu-o:
"- Não, isso não é assim. A forma original dessa oração é: «Ó Deus, dá-me a graça de aceitar a morte da forma como ela há de me chegar»".
Depois do jantar, incumbiram dom Diego de pedir uma ligação para o cardeal Giovanni Colombo em Milão. O Papa e Magee foram juntos à cozinha para dar boa-noite às freiras. Quando se completou a ligação, Luciani correu velozmente pelo corredor. Segundo Cornwell, "este foi o último esforço da sua vida, o que lhe provocou a embolia" (pp. 112-115).
A sobrinha do Papa, Pia Luciani Bassi, recorda precedentes de mortes repentinas ocorridas na família: "Nós pensamos que foi uma morte natural, porque também o seu avô e as suas duas tias morreram assim, de repente, de um enfarte. Meu tio teve uma boa morte. Ele teria escolhido uma morte desse gênero, sem incomodar ninguém, enquanto trabalhava pela Igreja" (p. 120).
"Há outros episódios que podem ser lidos como uma premonição da morte. Na tarde de 26 de setembro de 1978, Edoardo Luciani, o irmão do Papa, chega ao Vaticano. Vai de viagem à Austrália, mas decide visitar João Paulo I antes de iniciar o vôo. "Jantamos juntos - recorda -, e depois passeamos quase até a meia-noite pelo jardim do último andar do edifício. Meu irmão disse-me que o cardeal Villot tinha manifestado a intenção de aposentar-se e que estava pensando em quem poderia sucedê-lo na Secretaria de Estado. Também falamos do cardeal Gantin, a quem estimava muito. Na manhã seguinte, assisti à missa e depois tomamos o café da manhã juntos. Quando chegou a hora de partir, meu irmão quis acompanhar-me pessoalmente até o elevador. E para se despedir, abraçou-me e beijou-me. Fiquei surpreso, porque na nossa família não somos muito dados a semelhantes efusividades. Ainda me causou maior impressão o fato de que, enquanto estava já para entrar no elevador, ele continuou ali, quieto, olhando-me. Virei-me e ele quis abraçar-me mais uma vez. Parti para a Austrália e lá recebi a notícia da sua morte..." Um duplo abraço, quase o presságio de que aquela era a última vez que se viam.
Duas tardes antes de morrer, durante o jantar, João Paulo I teria até feito uma alusão ao seu sucessor. "À mesa falou da sua eleição - conta o padre John Magee-, ainda não conseguia entender a escolha dos cardeais: «Havia outros melhores que eu que podiam ser eleitos. E Paulo VI já havia indicado quem seria o seu sucessor. Estava diante de mim na Capela Sixtina durante o Conclave. Mas há de chegar a sua vez, porque logo me irei embora» (p. 121).
"Outro sinal premonitório. Na manhã de 05 de setembro, o bispo ortodoxo Bons Nikodin morre praticamente nos braços do Papa Luciani ao terminar a audiência. "Quem sabe se algum dia - teria dito João Paulo I ao teólogo veneziano Germano Pattaro - não poderemos subir juntos ao altar de Deus, convertido no altar de todos os cristãos!" (p. 122).
"Albino Luciani, o Papa da misericórdia, morre com um sorriso nos lábios. No último instante sorri a Alguém. Alguém que o amava apresentou-se na hora da sua morte com a ternura de uma mãe.
Tinha-o escrito dom Albino, numa oração de 1947, enquanto dirigia um retiro aos irmãos cartuxos de Vedana: "Peço-te uma graça: quisera que Tu estivesses ao meu lado na hora em que fecharei os olhos para este mundo. Quisera que segurasses a minha mão na tua, como faz a mãe com o seu filho na hora do perigo. Muito obrigado, Senhor!" (p. 123).
Eis o que referem bons autores a respeito da morte de João Paulo I, dissipando versões infundadas.
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NOTA:
[1] Embolia é a obstrução súbita de uma veia ou de uma artéria por um coágulo (N.d.R.).
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Papa: infalibilidade papal e definições ex-catedra
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 381/1994)
Em síntese: O presente artigo aborda questões atinentes ao Magistério da Igreja, credenciado por Jesus Cristo para ensinar de maneira autêntica as verdades reveladas pelo Senhor (cf. Mt 16,16-19; 28, 18-20; Lc 21, 31s; Jo 21,15-17...). Tal Magistério tem suas modalidades: 1) Magistério ordinário (o ensinamento comum dos Bispos do mundo inteiro); 2) Magistério extraordinário (definições solenes de Concílios universais e do Romano Pontífice em matéria de fé e de Moral). O artigo apresenta a série de definições proferidas pelos Papas no decorrer dos séculos.
***
Há interesse, por parte dos fiéis, em saber quantas verdades de fé já foram definidas pelos Papas no exercício do carisma da infalibilidade. Este desejo é legítimo, mas há de merecer uma resposta abrangente, pois se deve dissipar a concepção de que as verdades da fé começam a ser tais mediante definições ou decretos. Daí a conveniência de propormos, nas páginas subseqüentes:
a noção de Magistério da Igreja;
o significado de uma definição pontifícia;
3) as definições papais registradas através dos séculos.
1. O MAGISTÉRIO DA IGREJA
Jesus Cristo confiou à sua Igreja a função de ensinar as verdades da fé; e, para que o fizesse autenticamente, prometeu-lhe a sua assistência infalível, assim como a do Espírito Santo:[1]
Mt 28,19s: "Ide, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos".
Mt 10,26s: "Não tenhais medo... Pois nada há de encoberto que não venha a ser descoberto, nem de oculto que não venha a ser revelado. O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia; o que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados",
Jo 20,21s: Jesus disse aos Apóstolos: "A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou; também eu vos envio".
Mc 16,15-20: "Disse-lhes: 'Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura.' E eles saíram a pregar por toda parte, agindo com eles o Senhor, e confirmando a Palavra por meio dos sinais que a acompanhavam",
A Igreja vem cumprindo a tarefa mediante seus órgãos credenciados, que são:
1) o Magistério ordinário, ou seja, o ensinamento dos Bispos do mundo inteiro concordes entre si sobre artigos de fé e de Moral. Este Magistério ordinário manifesta-se cotidianamente através de palavras orais, impressos, gestos e feitos, como também através da Liturgia, pois lex orandi, lex credendi (as normas da oração são as normas da fé). Grande número de verdades de fé está no ensinamento do Magistério ordinário da Igreja. Quando necessário ou em casos esporádicos, é exercido também:
2) o Magistério extraordinário, que tem duas expressões autênticas:
- as definições de Concílios Ecumênico[2] ;
- as definições do Sumo Pontífice quando fala ex-cathedra.
O Magistério extraordinário supõe sempre condições especiais (dúvidas, controvérsias, contestação...), que solicitem um pronunciamento solene seja de um Concílio plenário, seja do Pontífice Romano. Não é necessária uma definição solene para que haja um dogma de fé.
A definição da infalibilidade pontifícia em matéria de fé de Moral ocorreu em 1870, no Concílio do Vaticano I; todavia não foi nessa data que surgiu a convicção de que o Bispo de Roma goza de assistência especial para definir proposições de fé e de costumes. Essa persuasão tem suas bases na própria S. Escritura e se expressou através da história da Igreja. Tal doutrina, muito antiga na Igreja, foi reafirmada pelo Concílio do Vaticano II na Constituição Lumen Gentium nº. 22-25.
Os principais textos bíblicos atinentes ao primado de jurisdição e de magistério de Pedro e seus sucessores são os seguintes:
Mt 16,17-19: "Jesus respondeu a Simão Pedro: 'Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não foram carne e sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus".
Lc 22,31s: "Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando te converteres, confirma teus irmãos".
Jo 21,15-17: "Jesus disse a Simão Pedro: 'Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?' Ele lhe respondeu: 'Sim, Senhor, tu sabes que te amo'. Jesus lhe disse: 'Apascenta os meus cordeiros'. Uma segunda vez, Jesus lhe disse: 'Simão, filho de João, tu me amas?' - 'Sim, Senhor', disse ele, 'tu sabes que te amo'. Disse-lhe Jesus: 'Apascenta as minhas ovelhas'. Pela terceira vez, disse-lhe: 'Simão, filho de João, tu me amas?' Entristeceu-se Pedro, porque pela terceira vez lhe perguntava Tu me amas?' E lhe disse: 'Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo'. Jesus lhe disse: 'Apascenta as minhas ovelhas'“.
Sobre o primado de Pedro nos escritos do Novo Testamento e na história da Igreja nascente, ver PR 375/1993, pp. 338-344; PR 13/1959, pp. 9-20.
Detenhamo-nos agora de modo particular sobre as definições pontifícias.
2. O SIGNIFICADO DE UMA DEFINIÇÃO PONTIFÍCIA
1. Tenha-se consciência, antes do mais, de que uma definição papal nunca é imposição brusca ou repentina de alguma sentença. As definições representam geralmente o termo final de um processo lento, durante o qual uma verdade contida no depósito tradicional da Revelação vai aflorando plenamente à consciência da hierarquia sacerdotal e dos fiéis em geral. Em outros termos: as definições não são senão a formulação explícita e solene de uma maneira de ver já implicitamente existente na Cristandade desde os tempos de Cristo. E o motivo pelo qual se dá essa formulação solene é geralmente o surto de alguma heresia que tente negar ou obliterar a sentença em foco. As definições pontifícias, por conseguinte, têm sempre caráter extraordinário, excepcional. Quanto ao magistério ordinário da Igreja, ele se exerce pela pregação unânime do episcopado unido ao sucessor de S. Pedro, o Papa. Donde se vê que não é necessário, seja uma verdade solenemente definida pelo Sumo Pontífice, para que pertença ao depósito da fé; basta, para isto, tenha sido sempre e em toda a parte professada pelos cristãos: quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est, hoc est etenim vere proprieque catholicum. - O que todos em toda parte e sempre acreditaram, isso é verdadeira e propriamente católico, dizia Vicente de Lerins em meados do séc. V.
Das noções acima também se depreende que não se "criam" dogmas na Igreja. Assim como num organismo vivo não nasce nem se cria algum órgão da noite para o dia, mas, ao contrário, qualquer fenômeno somático é expressão da estrutura e da vitalidade permanentes do indivíduo, assim também na Igreja não se praticam inovações de estrutura; ao contrário, qualquer afirmação autêntica dos cristãos não é senão o desdobramento do depósito da Palavra e da Vida que Cristo colocou em seu Corpo Místico e que Ele conserva sob a assistência do Espírito Santo. Nunca se poderá inculcar demais que a Igreja não é simplesmente uma escola, muito menos uma Câmara Legislativa, mas um organismo vivo, o Corpo de Cristo prolongado na terra, Corpo onde tudo se processa segundo as leis da vida, ou seja, passo por passo, homogeneamente, mediante a colaboração de membros superiores e membros inferiores.
2. Voltando a focalizar diretamente as definições papais, observaremos que três condições devem ser necessariamente preenchidas para que alguma proposição do Romano Pontífice tenha a autoridade de sentença infalível:
1) Requer-se que o Papa fale "ex-cathedra", isto é, como Pastor e Mestre dos cristãos, não como doutor particular.
Não há, porém, trâmite prescrito para o pronunciamento do Pontífice. Não se exige, portanto, que o Santo Padre, antes de se definir, consulte algum concílio, pois este requisito suporia que o concílio possa exercer influência restritiva sobre a autoridade papal ou esteja acima do Papa no governo da Santa Igreja[3].
2) O objeto da definição infalível são apenas proposições de fé e de moral, isto é, normas relativas ou à crença ou à conduta dos cristãos neste mundo.
3) É necessário outrossim que o Sumo Pontífice intencione proferir sentença definitiva sobre o assunto focalizado.
Somente tal sentença definitiva goza do privilégio da infalibilidade. Este não se estende nem aos argumentos previamente apresentados para fundamentar a definição nem às conclusões que desta decorram.
Quanto aos sinais pelos quais se pode reconhecer uma definição infalível, deve-se dizer que não há fórmula de redação obrigatória. Basta quê o Pontífice manifeste explicitamente sua intenção de declarar alguma doutrina como pertencente ao depósito da fé ou como contrária a este. Os termos habitualmente usados são: "definimus, auctoritate apostolica definimus..." ou "definitive damnamus et reprobamus, auctoritate Dei et beatorum apostolorum Petri et Pauli damnamus et reprobamus...".
Há casos, porém, em que o documento pontifício é redigido de tal modo que a simples análise dos termos não permite aos teólogos dizer se estão diante de alguma definição "ex-cathedra" ou não. Em tais circunstâncias, será lícito julgar que não se trata de sentença obrigatoriamente imposta à fé dos cristãos, pois ensina a Moral: "Non est imponenda obligatio de qua certo non constat. - Não se deve impor obrigação de que não conste com certeza". Todavia, mesmo em tais casos, pode haver para os cristãos grave dever de crer na proposição focalizada, dever decorrente de outra fonte, isto é, do ensinamento comum dos Sumos Pontífices ou do episcopado.
É o que se dá, por exemplo, quando se examina a encíclica Arcanum do Papa Leão XIII (10 de fevereiro de 1880). Este documento professa a instituição divina do casamento, a indissolubilidade do mesmo, assim como a autoridade integral e exclusiva da Igreja sobre o matrimônio cristão. A redação das frases, porém, não permite dizer que tais doutrinas estejam aí solenemente definidas; não obstante, a todos os cristãos incumbe estrito dever de as aceitar, porque são verdades ensinadas pelo magistério universal e tradicional da Igreja. - O mesmo se diga da encíclica Providentissimus Deus (18 de novembro de 1893), em que o mesmo Pontífice afirma a noção católica de inspiração bíblica, assim como a veracidade de texto sagrado. S. Santidade, embora não tenha aí usado as expressões características de uma definição solene, incutiu verdades que, em vista do ensinamento comum da Igreja, são obrigatórias para todos os fiéis.
Destas observações se depreende quão pouco a Igreja ou os Papas fazem questão de definir dogmas! Qualquer definição é sempre algo de extraordinário no seio da Igreja.
Feitas estas ponderações, examinemos o catálogo dos documentos pontifícios que são geralmente tidos como portadores de definição infalível.
3. A LISTA DAS DEFINIÇÕES PONTIFÍCIAS
De acordo com a ordem cronológica, eis a série dos documentos:
1) Em 449, a carta do Papa S. Leão Magno a Flaviano, bispo de Constantinopla, expunha com autoridade a sã doutrina referente ao mistério da Encarnação: em Cristo há uma só Pessoa (a Divina) e duas naturezas (a Divina e humana); cf. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum, Definitionum et Declarationum de rebus fidei et morum[3] n.º 296-299. Esta carta foi enviada pelo Papa à assembléia geral do Concilio ecumênico de Calcedônia em 451 no intuito de dirimir, uma vez por todas, as dúvidas teológicas concernentes ao assunto. Os Padres conciliares consideraram o documento como definitivo e estritamente obrigatório para todos os fiéis. A tradição católica, em particular a profissão de fé do Papa S. Hormisdas (datada de 517; cf. DS 363-365), sempre reconheceram autoridade máxima a tal documento.
A controvérsia assim rematada por S. Leão Magno é a seguinte:
Desde os inícios da era cristã, perguntava-se com o podia Cristo ser simultaneamente Deus e homem. A primeira tentativa de solução foi a dos Docetas no séc. II, os quais ensinavam que o Salvador não fora verdadeiro homem, pois não tivera senão uma aparência de corpo humano (dokéo, parecer, em grego). - Tal solução não tendo conseguido implantar-se, no séc. V propôs-se outra fórmula: Nestório, 'Patriarca de Constantinopla, asseverava que Cristo era tão realmente Deus e homem que nele havia duas Pessoas (a Divina e a humana) e duas naturezas (a Divina e a humana). Sabemos que em linguagem técnica "natureza" vem a ser a essência ou a estrutura de um ser, ao passo que "pessoa" é o sujeito consciente ou o "Eu" que age por meio de determinada natureza.
A sentença de Nestório, admitindo duas pessoas ou dois" Eu" em Cristo, cindia a unidade do Salvador; foi, por isto, rejeitada no Concílio de Éfeso (431). - Tomou vulto então, à guisa de reação contra o erro condenado, a teoria oposta, propugnada por Eutiques, de Constantinopla, e Dióscoro de Alexandria: em Cristo haveria uma só natureza (a natureza divina, a qual teria absorvido a natureza humana). Tal era a doutrina do Monofisitismo... Pois bem; S. Leão Magno rejeitou esta tese como contraditória ao genuíno conceito de Encarnação, asseverando em 449 haver em Cristo uma só Pessoa (ou um só "Eu"), a Pessoa Divina, a qual se manifestava por duas autênticas naturezas (a Divina e a humana) não mutiladas nem confundidas. Assim punha-se fim a uma etapa importante da Cristologia.
2) Em 680 a carta do Papa S. Agatão "aos Imperadores" afirmava, também em termos definitivos, haver em Cristo duas vontades distintas, a Divina e a humana, sendo, porém, que a vontade humana ficava em tudo moralmente submissa à vontade divina; cf. DS 547s.
Como se vê, o Pontífice reprimia, em última análise, uma modalidade nova de Monofisitismo: o Monotelitismo, que afirmava em Cristo haver unicamente a vontade divina. O documento foi enviado autoritativamente pelo Papa à assembléia do Concílio de Constantinopla III (680/81), a qual aceitou com aplausos a sentença de Roma, proclamando que Pedro acabara de falar por Agatão. - De então por diante na história, não haveria mais sérias dúvidas sobre a união do Divino e do humano em Cristo.
3) Em 1302, a bula Unam Sanctam do Papa Bonifácio VIII é tida como portadora de definição dogmática em sua parte final, onde o Pontífice "declara, afirma, define e pronuncia (declaramus, dicimus, definimus et pronuntiamus)" que toda criatura humana está sujeita ao Romano Pontífice; cf. DS 875.
Esta sentença há de ser entendida no seu respectivo quadro histórico.
Desde os tempos de S. Agostinho (+430), os cristãos conceberam o ideal de uma "Cidade de Deus", ou seja, de uma organização civil que fosse toda penetrada pelos princípios do Cristianismo, ficando os interesses e afazeres temporais totalmente subordinados aos espirituais. Dentro desta perspectiva, criou-se em 800, pela coroação de Carlos Magno, o Sacro Império Romano dos Francos, ao qual no séc. X sucedeu o Sacro Império dos Germanos. Sob o Papa Inocêncio III (1198-1216) o ideal tomou vulto assaz concreto. Pouco depois, porém, fizeram-se ouvir no cenário europeu vozes nacionalistas, que tendiam a criar um Estado leigo, independente da religião; um dos primeiros arautos dessa corrente foi o rei Filipe IV o Belo da França (1285-1314). Pois bem: foi contra essa tendência a laicização do Estado que se pronunciou o Papa Bonifácio VIII, afirmando que o poder temporal está subordinado ao espiritual e que, por conseguinte, todas as criaturas humanas, mesmo os monarcas, estão sujeitos ao Vigário de Jesus Cristo na terra.
Tem-se discutido a respeito da mente do Pontífice na Bula Unam Sanctam. Em qualquer caso, interpretar-se-á a sentença final (cujos dizeres são assaz gerais) no sentido da chamada "potestas indirecta”, não no da "potestas directa"; o que quer dizer: o Romano Pontífice tem jurisdição sobre toda e qualquer criatura humana "ratione peccati", isto é, na medida em que as atividades de determinada pessoa dizem respeito à vida eterna; foi, com efeito, a Pedro e aos sucessores de Pedro que Cristo confiou as chaves do Reino dos céus. Não pertence à missão dos Papas interferir na técnica administrativa dos governos civis.
4) Em 1336, a Constituição Benedictus Deus de Bento XII definia que, logo após a morte corporal, as almas totalmente puras são admitidas à contemplação da essência de Deus face a face; cf. DS 1000.
Esta declaração se deve ao fato de que alguns cristãos tanto estimavam o dogma do Corpo Místico que dificilmente concebiam pudessem algumas almas atingir a sua felicidade consumada, enquanto outras ainda lutavam na terra; em conseqüência, afirmavam que a visão beatífica só seria outorgada no fim dos tempos, isto é, após a ressurreição da carne e o juízo universal. - Contra este parecer, a fé cristã formulada por Bento XII de acordo com vários textos da S. Escritura (d. Lc 23,43; Jo 17,24; Hb 8,175; 10,19s; 1Cor 13,8s; 2Cor 5,6s; FI1, 23), afirma que, logo após a morte corporal, se dá o juízo particular, entrando, a seguir, as almas na posse da sua sorte definitiva.
5) Em 1520, a Bula Exsurge Domine de Leão X condenava 41 proposições de Lutero como heréticas; cf. DS 1451-1492.
6) Em 1653 a Constituição Apostólica Cum occasione de Inocêncio X reprovava as cinco seguintes proposições extraídas da obra "Augustinus" de Cornélio Jansênio, tachando-as de heréticas:
1. Há preceitos de Deus que, vistas as exíguas energias do homem, não podem ser cumpridas por justos que os desejem observar e se esforcem por consegui-lo. A esses justos falta também a graça, que tornaria possíveis tais preceitos.
2. No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir à graça interior.
3. Para merecer e desmerecer no estado da natureza decaída, não se requer liberdade que exclua necessidade (interior); basta a liberdade que exclua coação (exterior).
4. Os Pelagianos admitiam a necessidade da graça interior preventiva para cada ato particular, mesmo para o início da fé; eram hereges por asseverarem que essa graça era tal que a vontade podia ou resistir-lhe ou obedecer-lhe.
5. É semipelagiano dizer que Cristo morreu ou derramou o seu sangue por todos os homens sem exceção" (DS 2001-2207).
"Pelagianos" e "Semipelagianos" foram hereges dos séc. V/VI que acentuaram exageradamente as possibilidades da natureza humana no tocante à salvação eterna.
O Jansenismo, ressentindo-se dos debates excitados por Lutero sobre as conseqüências do pecado original, nutria um conceito pessimista da natureza humana, julgando-a escravizada à concupiscência e ao pecado; em conseqüência, admitiam que o homem só pode praticar o bem em virtude de irresistível influxo da graça divina. O pessimismo jansenista ainda era acentuado pela tese de que Cristo não remiu todos os homens, mas apenas os 'predestinados. - Como se vê, tais proposições são totalmente alheias à genuína mensagem do Evangelho, que visa não a abater, mas a soerguer o homem pecador, fazendo que os cristãos considerem mais a Misericórdia do Salvador do que a própria miséria. É o que explica a condenação proferida por Inocêncio X.
7) Em 1687, a Constituição Apostólica Caelestis Pastor de Inocêncio XI condenou como heréticas 68 proposições quietistas de Miguel de Molinos (+1696); cf. OS 2201-2269.
O Quietismo era uma tendência mística que fazia coincidir a perfeição espiritual com tranqüilidade e passividade da alma tais que o cristão não desejaria mais a sua bem-aventurança eterna, nem a aquisição da virtude; qualquer tendência nele estaria extinta. A alma colocada nesse estado de aniquilamento não pecaria mais, mesmo que por sua conduta externa parecesse violar os mandamentos de Deus ou da Igreja; ser-lhe-iam desnecessárias orações vocais, práticas de penitência e resistência às tentações.
Evidentemente, tais idéias contradizem à genuína mente cristã, que S. Agostinho tão bem exprime na fórmula: "Deus, que te criou sem ti, não te salva sem ti". O ideal do cristão não é propriamente a apatia estóica, ou seja, a ausência de todo e qualquer afeto sensível, mas, sim, a metriopatia; ou seja, o domínio sobre os afetos tal que possa servir à vida em graça.
8) Em 1699, a Constituição Cum alias de Inocêncio XII condenava 23 proposições de François de Salignac Fénelon, extraídas da obra "Explications des maximes des Saints sur la vie intérieure"; cf. DS 2351-2374. As sentenças pretendiam renovar o Quietismo, apresentando-o qual modalidade de puríssimo amor a Deus.
9) Em 1713, a Constituição Unigenitus de Clemente XI condenou 101 afirmações do livro "Réflexions morales" de Pascásio Quesnel (+1719); cf. DS 2390-2502. Era de novo o Jansenismo, com suas concepções pessimistas, que o Sumo Pontífice assim denunciava.
Embora as escolas jansenistas tenham perdido em breve a sua voga, a mentalidade jansenista até os últimos decênios ficou, até certo grau, impregnada no espírito de muitos cristãos, alimentando uma piedade intimidada, alheia aos sacramentos e, por isto, anêmica. Justamente em plena crise jansenista se deram as aparições do Sagrado Coração de Jesus (1673-1675), que, sob forma simbólica, queriam lembrar ao mundo que Deus é o Amor, e o Amor que se fez companheiro dos homens.
10) Em 1794, a Constituição Auctorem Fidei de Pio VI visava a 85 teses heréticas promulgadas em 1786 pelo Sínodo de Pistoia (Toscana); cf. DS 2600-2700.
As idéias dos conciliares de Pistoia não eram senão a expressão extremada do nacionalismo e do despotismo de Estado que haviam começado a tomar vulto nos tempos de Filipe IV o Belo da França (ver o documento n.º 3 da presente lista). No fim do séc. XVIII esse nacionalismo se havia apoderado das cortes européias em geral, levando os soberanos católicos a pretender criar Igrejas regionais, mais ou menos independentes do Sumo Pontífice; tal tendência tomou vulto na França de Luís XIV, em Portugal do marquês de Pombal, na Espanha de Aranda e Florida Branca, na Áustria de José II e, de maneira especial, no Grão-Ducado da Toscana, cujo titular, o Grão-Duque Leopoldo, era irmão de José II. Leopoldo obteve o apoio do episcopado da Toscana, chefiado por Cipião Ricci, bispo de Pistoia, para 57 artigos que visavam a profundas reformas da estrutura e da disciplina da Igreja, em grande parte inspiradas por idéias de Jansênio e de Quesnel: entre outras medidas, preconizavam a subordinação da Igreja ao Estado e a quase absoluta independência dos bispos em relação ao Sumo Pontífice; a abolição da devoção ao S. Coração de Jesus, das procissões, das imagens, da praxe das indulgências, dos honorários de S. Missa e de serviços religiosos em geral; apregoavam a redução das Ordens e Congregações Religiosas a um só tipo norteado pelo exemplo de Port-Royal (mosteiro jansenista próximo a Paris); queriam outrossim a celebração da Liturgia em vernáculo, o que em si nada tem de reprovável, mas era contingentemente associado a reivindicações heréticas (isto foi suficiente para que o postulado da Liturgia em vernáculo se tornasse, mais uma vez, suspeito aos olhos de Roma, como se tornara suspeito quando os reformadores o formularam no séc. XVI). - Antes mesmo que Pio VI condenasse as proposições de Pistoia, já o povo toscano havia mostrado sua veemente indignação contra elas, de tal modo eram alheias à genuína tradição cristã; o próprio bispo Ricci submeteu-se ao alvitre de Pio VI.
11) Em 1854, a bula Ineffabilis Deus de Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição de Maria: dizia o Pontífice, apelando para testemunhos da Escritura e da Tradição, que a Virgem Santíssima, desde o primeiro instante de sua conceição, foi preservada do pecado original, ou seja, da nódoa com que nascem todos os filhos de Adão; isto se deu por aplicação antecipada dos méritos do Redentor a fim de que a criatura que devia ser mansão do Verbo Encarnado, jamais ficasse sujeita ao hediondo império de Satanás e do pecado (Maria, portanto, não deixa de ser tributária ao Redentor; ela foi remida). Cf. DS 2803s.
Antes da definição do dogma da Imaculada Conceição, perguntavam alguns teólogos que motivo havia para que o Sumo Pontífice se pronunciasse em tom solene e extraordinário sobre uma proposição que era pacificamente professada pelos fiéis católicos. A tal questão foi dada a seguinte resposta: a afirmação de alguma verdade concernente a Maria equivale sempre à afirmação sucinta de toda a dogmática cristã; com efeito, em Maria a fraqueza do homem e a graça de Deus, a Encarnação, a Redenção, o mistério da Igreja e a glória final se acham compreendidos de maneira estupenda. Em conseqüência, uma definição mariológica em meados do século passado teria o valor de uma profissão compêndios de fé cristã frente ao racionalismo e ao materialismo que pesavam sobre a cultura da época. Tal foi o sentido profundo do pronunciamento de Pio IX.
12) Em 1950, o Papa Pio XII em sua Constituição Munificentissimus Deus definiu o dogma da Assunção Corporal de Maria: a Mãe de Deus, ao deixar este mundo, foi, sim, glorificada em corpo e alma, sem conhecer a deterioração do sepulcro. Esta proposição está intimamente ligada com o dogma da Imaculada Conceição: na verdade, se Maria nunca esteve sujeita ao pecado, compreende-se que não tenha ficado sob o império da morte, a qual não é senão uma conseqüência do pecado (Pio XII, porém, não quis definir a questão até hoje aberta: terá Maria ao menos atravessado a morte antes de ser glorificada ou haverá sido preservada mesmo de morrer, de modo a passar sem hiato, desta vida para a glória celeste?). Cf. DS 3900­-3904.
A crença na Assunção corporal de Maria não sofria contestação antes de ser definida; a definição, porém, foi justificada por motivos análogos aos que acima indicamos: o presente século continua sujeito às influências do racionalismo e do materialismo; principalmente nos últimos decênios a matéria ou o corpo do homem têm sido lamentavelmente vilipendiados pelo libertinismo dos costumes e pelos morticínios coletivos (bombardeios) das grandes guerras. Nesta época, portanto, a afirmação da Assunção corporal de Maria lembrava ao mundo o destino transcendente do corpo humano e o valor que o Criador a este quis atribuir.
Os teólogos têm perguntado se algum dos documentos dos Pontífices recentes contrários ao racionalismo e ao modernismo (a enc. Quanta cura e o Silabo de Pio IX, a enc. Pascendi e o decreto lamentabili de S. Pio X) não gozam da autoridade de declarações infalíveis. Examinando, porém, o teor preciso desses textos, assim como as circunstâncias em que se originaram, a maioria dos comentadores é inclinada a crer que os dois mencionados Papas, ao promulgar esses documentos, não intencionaram fazer uso de sua prerrogativa de infabilidade doutrinária, embora não reste dúvida de que tenham interpretado a mente de Cristo e da Igreja nos termos mais autênticos possíveis, merecendo por isto plena aquiescência por parte dos fiéis.
Nos últimos decênios, tem-se considerado com grande interesse a Encíclica Humane Vitae (1968) de Paulo VI, que rejeita a contracepção artificial e apregoa os meios naturais de controle da natalidade. Como não usa a fórmula clássica "Declaramos e definimos", há quem julgue que não é documento infalível e, portanto, não merece obediência. A esta posição fazemos duas observações:
1) mesmo que não recorra aos termos de uma definição solene, a Encíclica Humanae Vitae é um documento do magistério ordinário da Igreja, ao qual os fiéis católicos devem o respeito recomendado pelo Concílio do Vaticano II na Constituição Lumen Gentium n.º 25:
"Religiosa submissão da vontade e da inteligência deve, de modo particular, ser prestada ao autêntico Magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex-cathedra. E isto de tal modo que seu magistério supremo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e vontade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da índole dos documentos ou da freqüente proposição de uma mesma doutrina, ou de sua maneira de falar".
2) Paulo VI, ao formular a doutrina da Encíclica Humanae Vitae, sa­bia não estar senão transmitindo preceitos da lei natural, segundo a qual o amor humano é, por si, unitivo e fecundo e, por isto, não deve ser artificialmente privado da sua fecundidade. Em conseqüência, a Humanae Vitae goza da autoridade da própria lei natural, que é a lei de Deus.
Algo de semelhante se diga a respeito da Encíclica Veritatis Splendor: é documento pontifício, que merece acato como tal e - mais ainda - rea­firma a lei natural frente a tendências subjetivistas de conceber a Mora­lidade.
4. CONCLUSÃO
Eis os casos em que, conforme ensinam os teólogos, os Papas, no de­correr da história, fizeram uso de seu magistério infalível para formular alguma sentença dogmática. Doze vezes em vinte séculos!... Tão exígua cifra talvez surpreenda não poucos leitores, pois, quando se fala da infali­bilidade pontifícia, facilmente se tem a impressão de que os católicos vivem num regime de imposições procedentes do capricho de um mestre humano. Tal impressão, como se vê, está longe de corresponder à realidade.
Não queremos dizer, é claro, que os dogmas cristãos se reduzem às proposições atrás enunciadas. Também não negamos que há definições emanadas de Concílios Ecumênicos. O que nos interessava, porém, na redação deste artigo, era apenas mostrar o sentido exato de uma definição papal: esta (o mesmo se pode dizer também de uma definição conciliar) é sempre algo de extraordinário e esporádico, suscitado pelas necessidades do povo de Deus posto em perigo de perder a sua fé; uma definição so­lene é sempre a resposta a um problema, a uma dúvida. Nas circunstân­cias normais de sua história, o povo de Deus professa a fé que ele recebeu de Cristo e dos Apóstolos e que vai sendo pacificamente transmitida de geração a geração , sob a tutela do "episcopado, que o Espírito Santo esta­beleceu para apascentar a Igreja de Deus" (cf. At 20,28).
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NOTAS:

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