sexta-feira, 20 de junho de 2008

Eutanásia: paciente terminal e eutanásia

Em síntese: A Moral católica (como também a Medicina) distingue eutanásia direta ou positiva e eutanásia indireta ou negativa. Aquela consiste em infligir a morte a um paciente a título de lhe aliviar as dores; é sempre ilícita, pois a vida humana é propriedade de Deus, de modo que ao homem não compete eliminar a vida de um inocente, nem mesmo no intuito de lhe minorar o sofrimento (alegação esta, por vezes, ambígua). Quanto à eutaná­sia indireta, consiste em suspender os meios que ainda entretêm a vida de um paciente; tais meios podem ser ordinários ou extraordinários, ou melhor, meios proporcionais à probabilidade de melhora ou recuperação ou meios desproporcionais Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato humano, material ou financeiro altamente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico. Pois bem; a Moral católica não se opõe à suspensão dos recursos desproporcionais; lembra, porém, o dever de oferecer ao paciente os meios rotineiros de entreter, a vida (alimentação, injeções, soro...). - É aos profissionais da medicina que compete julgar a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito daí decorrente.
O uso de analgésicos é lícito, contanto que não impeça por completo o paciente de dispor de suas faculdades mentais; no fim da vida terrestre, é importante que todo ser humano tenha condições psíquicas para pôr em ordem qualquer problema que ainda exija providências, seja no plano mate­rial, seja no plano ético e espiritual.
***
Nos últimos tempos esteve de novo em foco a eutanásia ou a morte suave voluntariamente induzida pelo médico a pedido do paciente ou de seus familiares.
Com efeito. A revista VEJA, em sua edição de 22/08/1990, pp. 5-7, publicou a entrevista do Dr. Pieter Admiraal, médico holandês, que defende e pratica a eutanásia à revelia das leis do seu país. Eis alguns de seus depoi­mentos:
"Eu só pratico a eutanásia quando já foram esgotados todos os recur­sos médicos para salvar o paciente. Apenas nos casos de sofrimento profun­do é que aceito a prática da morte voluntária. Não sou um criminoso. Cri­minoso é o médico que permite que seu paciente que sofre de câncer de garganta, morra sufocado".
'A morte tranqüila é uma chance para aquele paciente que está so­frendo e já se sabe que não poderá ser salvo. Para que prolongar o sofrimen­to? A eutanásia não deve ser vista como uma atrocidade, uma violação dos direitos humanos ou coisa semelhante. Ela deve ser encarada como mais um tratamento médico, aquele de que o paciente necessita mais... A eutanásia é uma solução”.
"Eu sei o que é sofrer de um mal incurável, como o câncer ou a Aids. Mas eu não faria eutanásia num filho meu ou em minha mulher. Com mi­nha família, eu não conseguiria ser 100% profissional. Então entregaria a ta­refa a um colega, que poderia cuidar tão bem deles quanto eu cuido dos meus pacientes".
Além desta entrevista, suscitou comentários o caso do Juiz Dr. Eduar­do Mayr, do Rio de Janeiro, que queria fosse permitido, por lei, a um cida­dão pedir a eutanásia para si mesmo quando estivesse em fase terminal:
"Eduardo Mayr enfatiza que a decisão sobre o fenômeno da morte é algo pessoal e deve ser tomada individualmente. A decisão de escrever uma declaração de vontade a favor da eutanásia surgiu depois que Eduardo Mayr assistiu às reportagens sobre a 'máquina do suicídio' inventada por um mé­dico americano" (O GLOBO, 9/9/90, 19 cad. p. 19).
Vejamos o que a respeito se há de pensar a partir da fé católica.
A posição da Igreja
Aos 5 de maio de 1980, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma Instrução na qual firmou a posição da Moral católica sobre a eutanásia. Sumariamente, o texto distingue entre eutanásia direta e eutanásia indireta.
A eutanásia direta é o ato de infligir a morte a um paciente terminal mediante um recurso explicitamente mortífero. Tal ato é sempre ilícito, porque o homem não tem direito sobre a sua vida nem sobre a do irmão inocente. Nenhuma situação aflitiva, por mais crucial que seja, justifica a eutanásia direta. O motivo de compaixão, geralmente alegado, é ambíguo ou, por vezes, ilusório; pode ser simplesmente o título colorido que o egoísmo assume: não raro os familiares podem querer ver-se livres de um paciente terminal ou porque causa despesas pesadas ou porque exige vigilân­cia constante ou porque há pressa em partilhar a herança.. .
O que, em casos de agudo sofrimento, a Moral católica aceita ou mes­mo recomenda, é o uso de analgésicos. Importa, porém, que estes não impe­çam por completo o paciente de dispor de suas faculdades mentais. Esta cláusula é importante, visto que o ser humano deve poder enfrentar a con­sumação de sua vida terrestre de maneira lúcida e consciente; possa sanar qualquer ferida que tenha infligido ou que haja sofrido; possa dizer aos seus a respectiva mensagem final (principalmente se é pai ou mãe de família, chefe de algum grupo ou criador de alguma obra); possa enfim subscrever de maneira humana e cristã o livro de sua vida, dizendo então a última palavra conclusiva de todo o discurso anterior. Ainda que esta atitude cause algum esforço ou sacrifício ao paciente, tal sacrificio é o de um homem (e cristão) que deseja comportar-se como tal até o fim de sua peregrinação terrestre; está na linha da grandeza e magnanimidade que deve ter caracterizado os seus gestos no decorrer da vida presente. Claro está que compete aos familia­res e amigos do paciente assistir-lhe nesta fase decisiva e suprema do seu currículo; toca-lhes, sem dúvida, participar do anseio, do enfermo, de pôr digno fecho ao seu viver terrestre; em muitos casos, os bens de que mais carecem os doentes, são os do afeto e do apoio moral.
A propósito levem-se em consideração as ponderações do Papa Pio XII, em alocução a uma assembléia de clínicos, cirurgiões e anestesistas aos 24/02/1957:
"Toda forma de eutanásia direta, isto é, a administração de narcóticos, com o fim de provocar ou apressar a morte, é ilícita, porque nesse caso se pretende dispor diretamente da vida. Um dos princípios fundamentais da Moral natural e cristã é que o homem não é senhor, mas somente
usufrutuá­rio, do seu corpo e da sua existência. Ora o homem arroga-se o direito de disposição direta da vida toda vez que a quer encurtar.. .
O moribundo não pode permitir, e menos ainda pedir, ao médico que lhe provoque o estado de inconsciência, se com isso se coloca em situa­ção de não poder satisfazer a deveres morais graves, por exemplo, ao dever de regrar negócios importantes, de fazer o seu testamento e de se confessar".
1.2. Eutanásia indireta ou negativa
A eutanásia indireta ou negativa é o gesto de subtrair a um paciente os recursos sem os quais lhe é impossível conservar a vida. Tais recursos podem ser classificados em duas categorias: os proporcionais à probabilidade de melhora ou recuperação e os desproporcionais.
Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato huma­no, material ou financeiro altamente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico; tal era talvez o caso de Karen Quinlan, tal o do Gene­ralíssimo Franco, o do Marechal Tito... Ora diante da obstinação terapêuti­ca que a Medicina moderna propicia com enorme riqueza de recursos, a Igreja declara que, em consciência, não há obrigação moral de aplicar tais recursos, desde que, num juízo objetivo e fundamentado, se possa dizer que não há proporção entre a complexidade dos meios utilizados e a exigüidade ou nulidade dos resultados que se possam prever.
Todavia restará sempre o dever de oferecer ao paciente os meios roti­neiros de conservação da vida (alimentação, injeções, soro, transfusões de sangue. . .); estes não devem ser suspensos, qualquer que seja o caso do pa­ciente (admita-se, porém, que o conceito de "recurso rotineiro" possa variar de caso para caso).
Como se entende, a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito pode ser diver­samente apreciada; tal avaliação envolve sempre um tanto da subjetividade de quem a realiza. Será necessário, porém, que com toda a lealdade, diante de Deus, as pessoas responsáveis procurem considerar a situação e tomar o alvitre mais fiel possível aos ditames da Moral.
Esta tomada de posição da Igreja poderá causar surpresa. . . Ela se deve à consciência que o cristão tem, de que a morte física não é termo fi­nal, mas, sim, transição para a plenitude da vida. Quem deixa de existir neste mundo, não deixa de viver, mas apenas muda a sua modalidade de vida; por isto não lhe toca o dever absoluto e incondicional de entreter a vida terrestre com o sacrifício de pessoas e coisas que poderiam ser úteis a outras pessoas chamadas por Deus a permanecer mais tempo na vida presente. O cristão que tenha nítida consciência desta verdade, não se apega indevidamente à peregrinação terrestre nem considera a morte como um desastre a ser evita­do a todo preço, mas vê-a como ocasião de participar, em plenitude, da Páscoa do Senhor Jesus.
É óbvio, porém, que, se o cristão deseja ou aceita empreender a obsti­nação terapêutica, é-lhe lícito enveredar por tal caminho. E isto tanto mais quanto se sabe que é muito difícil prever o desfecho de determinado trata­mento; há casos surpreendentes (mas raros) de retorno à vida lúcida após anos de coma, como se observará em próximo artigo de PR. - Notemos, aliás, que a raridade e a imprevisibilidade desses casos não invalida as dispo­sições da Moral católica relativas aos recursos desproporcionais de que atrás falamos.
2. O texto da Instrução
Para facilitar o estudo das pessoas interessadas, publicamos, a seguir, os trechos da Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé que afirma a posição da Igreja no que ela tem de mais típico.[1]
"O uso proporcionado dos meios terapêuticos
Hoje é muito importante proteger, no momento da morte, a dignida­de da pessoa humana e a concepção cristã da vida contra um "tecnicismo" que corre o perigo de se tornar abusivo. De fato, há quem fale de "direito à morte", expressão que não designa o direito de se dar ou mandar provocar a morte como se quiser, mas o direito de morrer com toda a serenidade, na dignidade humana e cristã. Sob este ponto de vista, o uso dos meios tera­pêuticos pode, às vezes, levantar alguns problemas.
Em muitos casos a complexidade das situações pode ser tal que faça surgir dúvidas sobre o modo de aplicar os princípios da moral. As decisões pertencerão, em última análise, à consciência do doente ou das pessoas qua­lificadas para falar em nome dele, como também aos médicos, à luz das obrigações morais e dos diferentes aspectos do caso.
É dever de cada um cuidar da sua saúde ou fazer-se curar. Aqueles que têm o cuidado dos doentes devem fazê-lo conscientemente e administrar-lhes os remédios que se julgarem necessários ou úteis.
Mas será preciso, em todas as circunstâncias, recorrer a todos os meios possíveis? Até agora, os moralistas respondiam que nunca se era obrigado a usar meios "extraordinários". Esta resposta, que continua a ser válida em princípio, pode talvez parecer hoje menos clara, já pela imprecisão do ter­mo, já pela rápida evolução da terapêutica. Por isso, há quem prefira falar de meios "proporcionados" e "não proporcionados": De qualquer forma, po­der-se-á ponderar bem os meios, pondo o tipo de terapêutica a usar, o grau de dificuldade e de risco, o custo e as possibilidades de aplicação, em con­fronto com o resultado que se pode esperar, atendendo ao estado do doente e às suas forças físicas e morais.
É também permitido interromper a aplicação de tais meios, quando os resultados não correspondem às esperanças neles depositadas. Mas, para uma tal decisão, ter-se-á em conta o justo desejo do doente e da família, como também o parecer de médicos verdadeiramente competentes; são estes, na realidade, que estão em melhores condições do que ninguém, para poderem julgar se o investimento de instrumentos e de pessoal é desproporcionado com os resultados previsíveis, e se as técnicas postas em ação impõem ao paciente sofrimentos ou contrariedades sem proporção com os benefícios que delas pode receber.
- É sempre lícito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar. Não se pode, portanto, impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que, embora já em uso, ainda não está isenta de peri­gos ou é demasiado onerosa. Recusá-la não equivale a um suicídio; significa, antes, aceitação da condição humana, preocupação de evitar pôr em ação um dispositivo médico desproporcionado com os resultados que se podem esperar, enfim, vontade de não impor obrigações demasiado pesadas à famí­lia ou à coletividade.
- Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo'".
Em próximo artigo, abordaremos a questão do momento preciso da morte (que a Medicina tenta definir sem chegar à plena clareza) e suas im­plicações morais.
____
NOTA:
[1] O texto da instrução foi pouco divulgado. Encontra-se na íntegra publica­do em tradução portuguesa nas Edições Lumen Christi, Caixa Postal 2666, 20001 - Rio de Janeiro (RJ): Coleção 'Palavra do Papa" n° 2: “O Corpo humano e a Vida”.
0 comentários
Marcadores:
Domingo, 8 de Abril de 2007

Eutanásia: eutanásia e testamentos de vida
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 416/1997)Em síntese: A eutanásia, legalizada na Austrália do Norte, vai sendo aplicada. A Moral Católica é contrária à eutanásia direta ou positiva, que consiste em matar o paciente com um ato explicitamente mortífero; todavia não se opõe à suspensão de tratamentos sofisticados quando estes não produzem efeitos proporcionados aos recursos empregados.
Quanto aos "testamentos de vida", são lícitos dentro de certos parâmetros: a toda pessoa humana em pleno uso de suas faculdades mentais é permitido definir como deseja e não deseja ser tratada em caso de doença grave, desde que não peça o "suicídio assistido"; ao médico e aos familiares não compete executar a eutanásia direta, ainda que solicitada pelo enfermo. O uso de analgésicos é moralmente aceito, mesmo que possam abreviar a duração da vida do paciente, desde que sejam aplicados com a intenção exclusiva de aliviar as dores da pessoa doente; todavia é para desejar que não suprimam por completo a lucidez da mente do enfermo, pois este tem interesse em terminar sua vida de maneira consciente, tendo-se reconciliado com Deus e os irmãos, se necessário.
***
Um fato ocorrido na Austrália chamou, mais uma vez, a atenção do mundo para a eutanásia, que vai tomando formas sempre mais esmeradas. Vamos, a seguir, recordar o fato e abordar as questões que ele suscita.
1. O Caso Australiano
Eis o que se lê no jornal O GLOBO de 27/09/96, p. 32:
“Primeira eutanásia voluntária na Austrália
Carpinteiro doente de câncer aciona computador para receber injeção letal.
TERRITÓRIO DO NORTE, Austrália. Um carpinteiro australiano de 66 anos que sofria de câncer na próstata transformou-se domingo passado na primeira pessoa em todo o mundo a morrer recorrendo à eutanásia voluntária autorizada por lei. Robert Dent foi o primeiro beneficiário da Lei sobre Direitos dos Doentes Terminais - aprovada em julho passado no Território do Norte - que permite que o doente ponha fim à própria vida apertando a tecla "sim" de um sistema controlado por computador, para receber uma injeção letal na veia.
A aplicação da lei provocou a indignação da Igreja Católica. O Vaticano afirmou que nenhum sofrimento humano pode justificar a prática do suicí­dio assistido.
0 pedido de Dent foi aceito pelo Governo do Território do Norte e ele morreu domingo à tarde em sua casa no povoado de Darwin ao lado de seu médico, Phillip Nitschke, e da mulher, Judy.
Antigo defensor da eutanásia e responsável pelo desenvolvimento do sistema que permite ao paciente se matar, Phillip Nitschke disse que Dent morreu minutos depois de autorizar que a chamada "máquina da morte" administrasse em sua veia a injeção letal, uma mistura potente de relaxante muscular e anestésicos.
- Tomou sua última refeição e conversou com a mulher antes de aci­onar o computador. Depois de apertar a tecla, dormiu e pouco depois mor­reu. - contou o médico. - Foi duro, mas acho que tomei uma medida huma­nitária.
A lei australiana exige que o candidato à eutanásia seja examinado por três médicos residentes no Território do Norte, entre eles um especia­lista no mal de que padece e um psiquiatra. Confirmadas a doença fatal, a impossibilidade de evitar sofrimentos e a vontade consciente de morrer, o próprio doente tem a opção de apertara tecla do computador para receber a injeção letal. A legislação é inédita porque o próprio paciente administra a solução na veia. Na Holanda, a prática da eutanásia é tolerada, apesar de proibida oficialmente.”
Vejamos agora o que diz a Moral Católica a respeito
2. Eutanásia e Consciência Católica.
A eutanásia é a morte suave ou a morte provocada em alguém que está gravemente enfermo sem esperança de recuperação.
Distinguimos as seguintes modalidades de eutanásia:
Eutanásia direta ou
Eutanásia indireta por suspensão de recursos ordinários e
Eutanásia indireta por suspensão de recursos extraordinários ou desproporcionais
A eutanásia direta é o ato de infligir a morte ao paciente aplicando-lhe um recurso mortífero (injeções ou coisa semelhante). Diga-se logo: este procedimento é sempre ilícito, porque o homem não tem o direito de dispor nem da sua vida nem da vida do irmão inocente. Nenhuma situação dolorosa justifica a eutanásia direta. Aliás, por trás da compaixão para com o enfermo pode haver motivos egoístas e interesseiros que levem os acompanhantes a provocar a morte do paciente: cansaço, despesas avul­tadas, perspectivas de herança, etc.
A eutanásia indireta consiste em subtrair a um paciente os recursos sem os quais lhe é impossível conservar a vida. Tais recursos podem ser ordinários ou extraordinários.
Os recursos ordinários são os de rotina, que costumam ser aplica­dos a qualquer enfermo: soro, alimentação leve, injeções convencionais, transfusão de sangue... Não é lícito suspendê-los, desde que estejam dentro do alcance das posses do paciente ou dos seus familiares. Sonegá-los ao doente seria provocar-lhe a morte.
Os recursos extraordinários (ou, melhor, desproporcionais) são os que exigem aparato humano, material ou financeiro altamente difícil ou penoso sem que se possa prever um resultado médico compensador; as probabilidades de recuperação ou de melhora do paciente são quase nu­las ou são desproporcionais à carga de recursos raros e difíceis que se lhe aplicam. Tal era o caso de Karen Quinlan, o do generalíssimo Franco, o do Marechal Tito. Ora a Moral Católica, apoiada em Declaração da Santa Sé (05/05/80), ensina que não há obrigação, em consciência, de aplicar tais recursos.
Como se entende, a proporção ou a desproporção existente entre determinado tratamento e as probabilidades de êxito pode ser diversa­mente apreciada; esta avaliação envolve sempre um tanto da subjetividade de quem a realiza. Será necessário, porém, que com toda a lealdade, diante de Deus, as pessoas responsáveis (a começar pelos médicos) pro­curem considerar a situação e tomar a decisão mais fiel possível aos dita­mes da Moral.
0 uso de analgésicos (atenuantes da dor) é lícito ao cristão, pois o sofrimento pode atordoar o enfermo. Importa, porém, que os analgésicos não impeçam o doente de dispor de suas faculdades mentais. Com efeito; o ser humano deve poder enfrentar a consumação de sua vida terrestre de maneira lúcida e consciente; tal é o momento decisivo para pedir perdão e perdoar, reparar alguma injúria cometida, formular as últimas recomenda­ções e, principalmente, receber os sacramentos dos enfermos. É, pois, para desejar que, mesmo usando analgésicos, o paciente tenha seus momentos de lucidez para tomar tais providências.
A propósito, levem-se em consideração as ponderações do Papa Pio XII em alocução a uma assembléia de clínicos, cirurgiões e anestesistas em 24/02/1957:
"Toda forma de eutanásia direta, isto é, a administração de narcóticos com o fim de provocar ou apressar a morte, é ilícita, porque nesse caso se pretende dispor diretamente da vida. Um dos princípios fundamentais da Moral natural e cristã é que o homem não é senhor nem dono, mas somente usufrutuário, do seu corpo e da sua existência. Ora o homem arroga-se o direito de disposição direta da vida toda vez que a quer encurtar. Na hipótese por vós encarada (hipótese lícita), trata-se unicamente de evitar ao paciente dores insuportáveis, por exemplo, em caso de câncer não sus­cetível de operação ou em caso de doença incurável...
0 moribundo não pode permitir, e menos ainda pedir, ao médico que lhe provoque o estado de inconsciência, se com isso se coloca em situa­ção de não poder satisfazer a deveres morais graves, por exemplo, ao dever de regrar negócios importantes, de fazer o seu testamento e de se confessar.. Para julgar a liceidade da narcose, é preciso também inquirir se este estado será relativamente breve (com ou sem interrupção); será preciso considerar outrossim se o uso das faculdades voltará em certos momentos, por alguns minutos ao menos ou por algumas horas, dando ao moribundo a possibilidade de fazer o que o seu dever lhe impõe (por exem­plo, reconciliar-se com Deus). Por outra parte, um médico consciencioso, embora não seja cristão, não cederá jamais às instâncias de quem dese­jasse, contra a vontade do moribundo, fazer-lhe perder a lucidez, para o impedir de tomar certas decisões.
Quando, não obstante as obrigações que lhe incumbem, o moribundo pede a narcose e, para a usar, existem motivos sérios, um médico consci­encioso não se prestará a isso sobretudo se for cristão, sem ter convidado o doente por si mesmo ou, melhor ainda, por intermédio de outrem, a cum­prir antes os seus deveres. Se o doente obstinado se negar a tal cumpri­mento e persistir no pedido de narcose, o médico poderá conceder-lho sem se tornar culpado de colaboração formal na falta cometida...
Se o paciente cumpriu todos os seus deveres e recebeu os últimos sacramentos, se indicações médicas claras sugerem a anestesia, se não se ultrapassa na fixação das doses a quantidade permitida, se se mediu cuidadosamente a intensidade e a duração do estado de inconsciência, e ainda se o interessado consente em tal tratamento - então nada se opõe: a anestesia é moralmente permitida".
Aos familiares e amigos do enfermo toca um papel especial nesta fase da história em que a medicina tende muitas vezes a isolar os doentes em Unidades de Terapia Intensiva. O paciente, sujeito à aparelhagem te­rapêutica moderna, sente falta de carinho humano; a presença de um ente querido em tais circunstâncias lhe é de imenso valor. Por isto se fala hoje de "humanizar a morte" - o que significa "considerar as carências huma­nas e afetivas dos enfermos", completando a função da técnica impessoal.
É para desejar que os familiares e amigos não permitam (na medida do possível) que um enfermo católico venha a morrer sem conhecer a gravidade de sua moléstia; é preciso que o momento da morte seja aceito com magnanimidade pelos que têm fé. É triste verificar que não raro todos os acompanhantes de um enfermo sabem que está para morrer, ao passo que o próprio enfermo (o mais interessado de todos!) o ignora ou mesmo julga ter recuperação. Não há dúvida, porém: para que um cristão tenha condições de enfrentar serenamente a sua morte (ou consumação), deve aproveitar os dias de boa saúde (quando a morte parece mais distante), a fim de se preparar para ela. Meditar sobre a morte é prática de piedade que toda a Tradição cristã muito recomenda.
3. Os "Testamentos de Vida"
"Testamento de Vida" (Living Will) é uma expressão recente. Signifi­ca o documento redigido por alguém, em pleno uso de suas faculdades mentais e de sua liberdade, segundo o qual a pessoa define a maneira como quer ser tratada em caso de doença grave ou de moléstia terminal. O testador tanto pode aceitar que lhe apliquem todos os recursos da mo­derna medicina para lutar contra a morte como pode solicitar que não lhe apliquem meios sofisticados que só fazem prolongar o sofrimento e a ago­nia do enfermo. Nos últimos anos tem-se admitido nessas disposições do testador também a vontade que de o submetam à eutanásia direta, como foi o caso de Robert Dent na Austrália do Norte.
Os "testamentos de vida" são, hoje em dia, assaz freqüentes, visto que a medicina possui recursos sempre mais variegados para protelar a morte de alguém. Acontece, porém, que tais recursos não raro privam o paciente do contato com seus familiares e entes queridos, obrigando-o à internação em Centro de Terapia Intensiva sem esperança plausível de recuperação. Diante desses procedimentos há quem proclame a autono­mia do enfermo e seu direito de aceitar ou não tal ou tal tipo de tratamento; nem o médico nem os familiares são plenipotenciários em relação ao pa­ciente. - Pergunta-se:
3.1. Que diz a Moral Católica a respeito?
A Moral Católica reconhece a autonomia do paciente, desde que não implique o pretenso direito ao "suicídio assistido" ou à eutanásia direta; ninguém é senhor de sua vida própria nem da vida alheia. Portanto é lícito a um enfermo renunciar a uma terapia complexa que não logre resultados proporcionais aos meios aplicados. Quem deve avaliar essa proporciona­lidade, é o médico ou a junta médica respectiva.
O bem do paciente não consiste apenas em alívio dos sofrimentos causados pela moléstia; este deve certamente merecer atenção. Mas deve­-se também levar em consideração o fato de que o enfermo é criatura que há de prestar contas ao Criador do uso que tenha feito de sua vida na terra; na verdade, a vida terrestre é apenas um segmento da existência de alguém, segmento que se prolonga no além ou, melhor, que é a prepara­ção imediata para a plenitude da vida no além. Tal concepção contribui para relativizar as fases dolorosas da vida terrestre; estas não definem, por completo, a existência de alguém; são, por assim dizer, etapas prepa­ratórias para a vida plena na Casa do Pai. Daí se segue a necessidade de que a criatura deixe este mundo entregando-se a Deus na aceitação do plano do Pai, que só permite o sofrimento porque tem a finalidade provi­dencial de configurar o paciente a Cristo: "Se com Ele sofremos, com Ele reinaremos. Se com Ele morremos, com Ele viveremos" (2Tm 2,11s).
Ao médico não é lícito atender ao pedido de "suicídio assistido", pois o médico jurou salvar a vida física e não a destruir. Quanto aos familiares, também não lhes toca executar tal pedido, pois eles sabem que não são senhores da vida alheia. A propósito observa o S. Padre João Paulo II na sua encíclica "O Evangelho da Vida" n° 67:
"Bem diverso é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Reden­tor morto e ressuscitado ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a esperar quando faltam todas as esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio do Vaticano II, ‘diante da morte o enigma da condição humana atinge o seu ponto alto... Mas é por uma inspiração acertada do seu coração que ele afasta com horror e repele a ruína total e a morte definitiva de sua pessoa. A semente de eternidade que o homem traz dentro de si, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte' (Gaudium et Spes n° 18)".
É interessante registrar aqui algumas modalidades dos "testamentos de vida" ou (segundo outro termo) "Indicações Antecipadas", a partir dos primeiros que foram elaborados.
3.2. Traços de História
Distinguem-se "testamentos" que recusam a eutanásia e outros que a pedem.
3.2.1. Excluída a Eutanásia
Em 1974 a Associação dos Hospitais Católicos dos Estados Unidos propôs definições intituladas Christian Affirmation of Life. Exigiam que o paciente "fosse, se possível, consultado a respeito das práticas médicas destinadas a prolongar a vida diante das ameaças de morte próxima”, poderia também o enfermo pedir que "não se utilizassem meios extraordi­nários para prolongar a vida".
Em 1989 a Conferência dos Bispos da Espanha publicou um docu­mento sobre Eutanásia e Assistência ao Moribundo, que compreendia duas partes. A primeira formulava princípios gerais - a noção de vida como dom e bênção de Deus, o conceito de morte como acesso à vida sem fim na presença ou na visão de Deus face-à-face. A segunda parte propunha diretrizes práticas: a liceidade de recusar meios desproporcionais em situ­ações críticas irrecuperáveis, a legitimidade de rejeitar o prolongamento abusivo e irracional da agonia, a conveniência da presença de familiares, a necessidade de assistência religiosa ao paciente, a validade de analgé­sicos, mas... a recusa da eutanásia direta.
Em 1989 também a Caritas Suíça elaborou um documento sobre "Disposições de Fim de Vida", dirigidas ao médico que trata de pacientes gravemente enfermos. Manifestava a necessidade de que cada paciente se prepare conscientemente para a morte; rejeitava a eutanásia, lembran­do que "não é o homem, mas é Deus, quem define a hora da morte".
Seja citado ainda o Protective Medical Decision Document, Docu­mento de Proteção das Decisões Médicas, proposto pela International Anti-Eutanasia Task Force, segundo o qual cada paciente designa a pes­soa que deverá ser ouvida para tomar decisões relativas à própria saúde, nas situações críticas em que ele próprio não estiver em condições de tomar pessoalmente uma decisão.
Em tal documento, porém, é expressamente proibida qualquer forma de eutanásia; solicita-se a atuação de todas as intervenções que ofereçam razoáveis esperanças de proveito para a saúde do doente; diante da mor­te iminente, pede-se que se usem todos os meios ordinários de assistên­cia apropriados às condições do paciente, incluindo os analgésicos e a alimentação. É claro o esforço de querer tirar das mãos de familiares mais ou menos interessados, dos tribunais ou de médicos sem escrúpulos, de­cisões importantes que dizem respeito à fase terminal da própria doença.
3.2.2. Incluída a Eutanásia
A primeira tentativa de incluir a eutanásia num "testamento de vida" foi rejeitada. Com efeito, em março de 1969 foi apresentado na Câmara dos Lordes do Reino Unido um projeto de lei sobre a eutanásia voluntária (Voluntary Euthanasia Bill) em que se reconhecia a legitimidade de decla­rações assinadas pelo paciente - de maioridade e legalmente capaz - na presença de duas testemunhas, nas quais o paciente pedia, entre outras coisas, que, em presença de particulares condições clínicas, pudesse ser submetido à eutanásia, em tempos e circunstâncias por ele determinados, ou, em caso de incapacidade, segundo a discrição do médico sob cujo tratamento se encontrasse. O projeto de lei foi recusado por 61 votos con­tra 40, sobretudo pelo uso ambíguo que nele se fazia de alguns termos, como "doença irreversível, doente terminal, suspensão do tratamento de sustentação vital."
0 primeiro documento que adquiriu força de lei - no qual se usa pela primeira vez o termo living will - foi promulgado em 1976 pelo Estado da Califórnia (U.S.A.) e é conhecido como Natural Death Act, uma lei em que se reconhece a qualquer adulto o direito de dispor antecipadamente sobre a recusa de "terapias de sustentação vital" quando se vier a encontrar "no extremo da condição existencial", e isto tanto no sentido de suspendê-las se já iniciadas, como de não recorrer a elas.
Sucessivamente leis análogas se estenderam a outros Estados da União norte-americana; desde 1991 entrou em vigor uma lei federal sobre a autodeterminação do paciente (Patient Self Determination Act). Com tal lei reconhece-se o direito de cada paciente a tomar decisões sobre as terapias médicas que lhe dizem respeito, incluindo o direito de recusar ou aceitar tratamentos médicos ou cirúrgicos e de formular declarações ante­cipadas de vontade, que o médico deve considerar.
Iniciativas análogas no sentido de favorecer por lei a elaboração de disposições por parte dos pacientes encontram-se e vão-se difundindo também noutros países. Na Itália, concretamente, foi divulgada pela Co­missão de Bioética a "Carta de Autodeterminação". Tal documento - que já no próprio título implica uma concepção problemática do homem, o qual pretende dispor totalmente da própria vida e da própria morte - contém o risco duma verdadeira e própria expressão de eutanásia ativa ou de que­rer antecipar o evento natural da morte.
As notícias destas páginas relativas aos "testamentos de vida" de­vem-se ao artigo de Antonio G. Spanolo, Professor do Instituto de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade Católica do Sagrado Coração em Roma, artigo publicado em L'OSSERVATORE ROMANO, ed. portu­guesa de 7/9/1996, pp. 8s.
São estes dados que ilustram o caso da "primeira eutanásia voluntá­ria na Austrália", de que tratou a imprensa em setembro 1996.
O cristão compreende a angústia de quem está sofrendo e não pode deixar de se solidarizar com o paciente. Mas ele sabe que o desejo de vida no ser humano é tão arraigado que a perspectiva da morte sempre causa instintivo horror e repulsa a quem quer que seja. Por conseguinte, a res­posta do médico e dos familiares a quem peça a eutanásia, há de ser propiciar alívio das dores e assistência carinhosa (que é o que o paciente mais deseja); essa assistência carinhosa terá em vista mostrar ao enfer­mo que ele não está só e, se for religioso, há de procurar prepará-lo para o encontro definitivo com o Senhor Deus; somente a perspectiva da fé contribui para valorizar o próprio sofrimento (participação da Páscoa de Cristo) e para encarar o transe final como consumação da carreira terres­tre e entrada na plenitude da vida.
0 comentários
Marcadores:

Eutanásia: a eutanásia
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 252/1980)

Em síntese: A eutanásia (ou o induzir a morte por compaixão) pode ser direta ou indireta.
A eutanásia direta é o ato de infligir a morte mediante recurso ocisivo. Tal ato é sempre ilícito, porque o homem não tem o direito de dispor da sua vida nem da vida de irmão inocente.
A eutanásia indireta é a atitude de subtrair a um paciente os recursos sem os quais lhe é impossível conservar a vida. Tais recursos podem ser classificados em duas categorias: os proporcionais à probabilidade de melhora ou recuperação e os desproporcionais.
Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato alta­mente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico (ve­jam-se os casos do Generalíssimo Franco e do Marechal Tito). Ora não há obrigação moral de aplicar tais recursos. Todavia fica sempre o dever de oferecer ao paciente os meios rotineiros de entreter a vida (alimentação, injeções, transfusão de sangue... ).
Quanto aos recursos proporcionais, há obrigação, em consciência, de aplicá-los, desde que estejam dentro do alcance das posses do paciente ou dos respectivos familiares.
Como se entende, a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito pode ser diver­samente apreciada; tal avaliação envolve sempre um tanto de subjetividade de quem a realiza. Será necessário, porém, que com toda a lealdade, diante de Deus, as pessoas responsáveis procurem considerar a situação e tornar o alvitre mais fiel possível aos ditames da Moral.
O novo documento da Santa Sé assim apresentado significa uma revisão do problema da eutanásia em termos atualizados, mas sempre fiéis aos princípios da Lei do Senhor.
***
Comentário: Com a data de 1/05/80 foi publicada em fins de junho pp. importante Declaração da S. Congregarão para a Doutrina da Fé sobre a eutanásia. O assunto tem sido muito discutido, o que bem se compreende pelo fato de se apre­sentarem aos estudiosos facetas novas e inéditas do antigo pro­blema. Em vista disto, transmitiremos, a seguir, um resumo do documento de Roma, após o qual serão propostos alguns co­mentários do tema.
I. O DOCUMENTO
1. O problema
O Concilio do Vaticano II rejeitou em 1965 a eutanásia como sendo um crime contra a vida humana, que deve mere­cer respeito (cf. Constituição Gaudium et Spes n° 27). Todavia nos últimos anos os médicos e moralistas têm recolocado o pro­blema com insistência, visto que a medicina tem aumentado o seu poder de prolongar a vida «em condições que acarretam, por vezes, problemas morais» (Introdução); pergunta-se qual o sentido que tem a vida humana entretida artificialmente por aparelhagem complexa e de maneira extremamente precária; não lhe seria preferível um tipo de morte «suave»?
Frente a esta nova colocação do problema, a S. Congrega­ção para a Doutrinada Fé mandou proceder a atentos estudos, dos quais resultou a presente Declaração. Esta se dirige, antes do mais, aos fiéis cristãos, que, mediante a fé, encaram a morte e a ressurreição como participação da Páscoa de Cristo (cf. Rm. 14, 7-9; Fl 1, 20). O documento, porém, poderá encontrar acolhida também da parte dos homens de boa vontade que, para além de diferenças filosóficas ou religiosas, tenham cons­ciência dos direitos da pessoa humana; tais direitos, fundamen­tais como são, não estão sujeitos às oscilações que o pluralismo político ou a liberdade religiosa poderia suscitar.
Uma vez exposto o problema e apresentado o respectivo documento, o texto aborda os sucessivos aspectos da delicada questão.
2. O valor da vida humana
A vida humana é o bem fundamental, condição de toda atividade humana e de toda comunhão social. Os homens cos­tumam atribuir-lhe caráter sagrado, caráter que aos olhos da fé ainda maior valor assume, pois a vida aparece como «um dom do amor de Deus, que é preciso conservar e fazer fruti­ficar». Destes princípios decorrem conseqüências importantes:
1) Ninguém tem o direito de atentar contra a vida de uma pessoa inocente sem se opor ao amor de Deus e sem violar um direito fundamental - o que quer dizer: sem cometer crime de extrema gravidade [1].
2) Todo homem tem o dever de configurar a sua vida segundo o desígnio do Criador. Ela lhe é confiada como um bem que ele deve valorizar nesta terra, mas que só encontra o pleno desabrochamento na vida eterna.
3) Por conseguinte, o suicídio é tão inaceitável quanto o homicídio; vem a ser, da parte do homem, rejeição da soberania de Deus e do desígnio de amor do Criador. Muitas vezes também é recusa do amor a si, negação da aspiração natural à vida, e capitulação diante dos deveres de justiça e caridade em relação ao próximo. - Verdade é que, não raro, o suicida é vitima de condições psicológicas que podem atenuar ou mesmo suprimir a sua responsabilidade.
Do suicídio distinga-se o sacrifício pelo qual alguém expõe a sua própria vida em vista de nobre causa, como a honra de Deus, a salvação das almas ou o serviço dos irmãos (cf. Jo 15,14).
3. Eutanásia: conceito e primeira abordagem
1. Etimologicamente, eutanásia significa morte suave sem cruel sofrimento. Ora tal acepção, um tanto genérica, é entendi­da, hoje em dia, em sentido mais definido: a eutanásia, na proble­mática moderna, vem a ser o fato de «se provocar a morte por compaixão» para extinguir sofrimentos cruciantes ou para evi­tar que crianças anormais, enfermos incuráveis, doentes men­tais levem, durante anos talvez, uma vida penosa, que, além do mais, acarretaria encargos pesados demais para as famílias res­pectivas e a sociedade.
Em conseqüência, a Declaração enfatiza:
"Por eutanásia entendemos uma ação ou uma omissão que, por si ou segundo intenção deliberada, provoca a morte a fim de extinguir qual­quer sofrimento".
"Ora a ninguém é licito autorizar a morte de um ser humano inocente - feto ou embrião, criança ou adulto, ancião, doente incurável ou agoni­zante. Também a ninguém é lícito pedir este gesto homicida para si ou para outra pessoa confiada à sua responsabilidade; nem mesmo dar con­sentimento, explicito ou implícito, a tal prática é lícito. Nenhuma autoridade a pode legitimamente impor ou permitir. Haveria nisso a violação de uma lei divina, ofensa à dignidade da pessoa humana, crime contra a vida, aten­tado contra a humanidade".
Pode acontecer, sem dúvida, que dores prolongadas e cruciais ou motivos de ordem afetiva ou outros induzam alguém a crer que pode legitimamente pedir a morte para si ou levá-la a outrem. Em tais casos, a responsabilidade subjetiva de quem pede ou provoca a morte pode ser atenuada ou mesmo nula; todavia, objetivamente falando, o morticínio como tal fica sendo inaceitável. É de notar outrossim que os enfermos que pedem a morte, muitas vezes pedem afeto, calor humano e apoio moral mais do que a própria morte; aos familiares, mé­dicos e enfermeiros toca entender tal carência e correspon­der-lhe.
4. O cristão perante a dor e os analgésicos
A morte é, muitas vezes, precedida por dores atrozes, que a tornam peculiarmente angustiante.
A dor, de um lado, é inevitável ao homem; constitui uma advertência e um alarme de utilidade para o ser humano. As vezes, porém, a dor pode assumir tais dimensões que é legítimo desejar minorá-la - o que se faz mediante os analgésicos.
Não poucos fiéis recusam, por completo ou em parte, o recurso aos analgésicos, desejosos de assim participar mais in­timamente da Paixão de Cristo e do sacrifício redentor do Salvador. Todavia tal atitude heróica não pode ser imposta como norma geral. Por isto a própria prudência aconselha em muitos casos o recurso a analgésicos, mesmo que daí resultem efeitos secundários menos desejáveis, como são a diminuição da cons­ciência psicológica e certa dopagem.
Eis, porém, que o uso de analgésicos sugere algumas ob­servações. Na verdade, para combater o hábito e manter os efeitos dos mesmos, requerem-se doses crescentes. Ora é pre­ciso evitar que o recurso aos analgésicos impeça o paciente de cumprir seus deveres morais e religiosos de maior vulto; com outras palavras... não o reduza à condição de ser per­manentemente inconsciente, mas lhe deixe a possibilidade de dispor da sua vida segundo os parâmetros da inteligência, da fé e do amor a Deus e ao próximo. De modo especial, é pre­ciso que o enfermo se possa preparar conscientemente para o encontro definitivo com Cristo; sim, a vida é como um livro que cada ser humano escreve dia por dia; ora é necessário que ele possa subscrever a esse enredo de maneira lúcida e volun­tária, no fim dos seus dias. Na medida do possível, é para de­sejar que a pessoa humana não morra como os animais, mas possa tomar as providências finais, pôr ordem em seu curso de vida e suas relações com as demais criaturas e dizer um Sim cheio de amor ao Cristo que o convida para a plenitude da vida. Desde que estas condições sejam respeitadas, pode-se aceitar a eventual diminuição do tempo de vida ou a acelera­ção da morte física acarretada por certos analgésicos.
A propósito, levem-se em consideração as ponderações do Papa Pio XII em alocução a uma assembléia de clínicos, cirur­giões e anestesistas em 24/02/1957:
«Toda forma de eutanásia direta, isto é, a administração de narcóticos com o fim de provocar ou apressar a morte, é ilícita, porque nesse caso se pretende dispor diretamente da vida. Um dos princípios fundamentais da Moral natural e cristã é que o homem não é senhor nem dono, mas somente usufrutuário, do seu corpo e da sua existência. Ora o homem arroga-se o direito de disposição direta da vida toda vez que a quer encurtar. Na hipótese por vós encarada (hipótese lícita), trata-se unicamente de evitar ao paciente dores insuportáveis, por exemplo, em caso de câncer não suscetível de operação ou em caso de doença incurável...
O moribundo não pode permitir, e menos ainda pedir, ao mé­dico que lhe provoque o estado de inconsciência, se com isso se coloca em situação de não poder satisfazer a deveres morais graves, por exemplo, ao dever de regrar negócios importantes, de fazer o seu testamento e de se confessar... Para julgar a liceidade da narcose, é preciso também inquirir se este estado será relativamente breve (durante a noite ou por algumas horas) ou prolongado (com ou sem interrupção); será preciso considerar outrossim se o uso das faculdades voltará em certos momentos, por alguns minutos ao menos ou por algumas horas, dando ao moribundo a possibilidade de fazer o que o seu dever lhe impõe (por exemplo, reconciliar-se com Deus). Por outra parte, um médico consciencioso, embora não seja cristão, não cederá jamais às instâncias de quem desejasse, contra a vontade do moribundo, fazer-lhe perder a lucidez, para o impedir de tomar certas decisões.
Quando, não obstante as obrigações que lhe incumbem, o mo­ribundo pede a narcose e, para a usar, existem motivos sérios, um médico consciencioso não se prestará a isso sobretudo se for cristão, sem ter convidado o doente por si mesmo ou, melhor ainda, por inter­médio de outrem, a cumprir antes os seus deveres. Se o doente obsti­nado se negar a tal cumprimento e persistir no pedido de narcose, o médico poderá conceder-lha sem se tornar culpado de colaboração formal na falta cometida. . .
Se o paciente cumpriu todos os seus deveres e recebeu os últimos sacramentos, se indicações médicas claras sugerem a anestesia, se não se ultrapassa na fixação das doses a quantidade permitida, se se mediu cuidadosamente a intensidade e a duração do estado de inconsciência, e ainda se o interessado consente em tal tratamento - então nada se opõe: a anestesia é moralmente permitida» (trans­crito da «Revista Eclesiástica Brasileira» XVII [1957] p. 481 ).
5. A terapia de combate à morte
Ao lado daqueles que querem truncar a vida dolorosa e sofredora de seus irmãos enfermos, recorrendo à eutanásia di­reta, há aqueles que se esmeram por aplicar ao paciente os recursos mais modernos da medicina, prolongando a vida hu­mana por meios artificiais de grande complexidade e elevados custos. Tais foram, sem dúvida, os casos do Generalíssimo Franco, da Espanha, do Marechal Tito, da Iugoslávia, da jovem norte-americana Karen Quinlan e de outros notórios pacientes. Ora esta nova pertinácia da medicina no combate à morte tem suscitado vozes contraditórias: há quem proclame o «direito de morrer» - o que não significa o direito de dar a morte a si ou pedir a morte para si, mas o direito de morrer segundo a dignidade humana e cristã, em toda serenidade. Sabe-se, aliás, que tem havido debates públicos sobre a obrigatoriedade, em consciência, de recorrer ou não aos complexos recursos da mo­derna terapêutica.
Diante da questão ética que assim se põe, eis a resposta da consciência católica:
1) Todo ser humano tem a obrigação de cuidar da sua saúde. Médicos, enfermeiros e familiares de cuidar da sua conscienciosamente dos seus pacientes, ministrando-lhes os re­médios que lhes parecem necessários ou úteis.
2) Todavia o recurso a meios terapêuticos não obriga a consciência indefinidamente. Outrora os moralistas afirmavam que não existe o dever de empregar meios extraordinários para preservar a saúde ou debelar a doença. Por «meios extraordinários» entendiam tratamentos raros, difíceis, altamente dis­pendiosos... Eis, porém, que, com o progresso da medicina, os recursos «extraordinários» se vão tornando ordinários ou freqüentes e mais comuns, de modo que a expressão «recursos extraordinários» é inadequada; torna-se oportuno substituí-la por «meios desproporcionais», aos quais se contraporiam os «meios proporcionais». Esta nova expressão significa que há recursos médicos cuja complexidade, cujos riscos, cujo custeio, cuja possibilidade de emprego são muito mais vultosos do que as esperanças de resultados benéficos; as probabilidades de me­lhora significativa do paciente são tão exíguas que parece inútil aplicar-lhe tão rebuscados recursos médicos; a aplicação destes parece então depender mais do afã médico de não capitular pe­rante a moléstia do que do dever moral de entreter a vida hu­mana.
3) Na base de tais ponderações, sejam propostas as se­guintes normas:
a) É licito aos médicos que para tanto hajam obtido a aquiescência do paciente ou de seus responsáveis, aplicar os recursos mais esmerados da medicina moderna, mesmo que estes ainda estejam em fase de experimentação e acarretem algum risco de vida para o enfermo. Aceitando tal terapêutica, o doente poderá dar provas de generosidade posta a serviço do gênero humano.
b) É lícito interromper a aplicação de tais recursos, desde que não propiciem os resultados almejados. Tal interrupção, porém, só deverá ocorrer após consulta ao paciente (se possível) e aos respectivos familiares. Na verdade, haverá casos em que os médicos julguem que o investimento em aparato técnico e pessoal não é proporcional aos resultados previsíveis (tênues ou pouco significativos); além do quê, tal aparato poderá pa­recer constrangedor e provocador de sofrimentos que não te­nham proporção com os benefícios previstos.
c) Ninguém, em consciência, tem o dever de aplicar a si ou a outrem o recurso a uma técnica usual, mas ainda arris­cada e muito onerosa. A recusa desta não pode ser tida como um suicídio; antes, resulta da aceitação da frágil condição hu­mana e corresponde ao desejo de não mobilizar difíceis recursos sem justificativa adequada, como também do propósito de não impor encargos (financeiros e afetivos) demasiado pesados à fa­mília e à sociedade.
d) Na iminência de morte inevitável, é licito renunciar a tratamentos que só contribuiriam para diferir a morte de ma­neira precária e dolorosa. Todavia não é permitido, em consci­ência, suspender os cuidados normais ou óbvios que se prestam a todo paciente (injeções, soro, transfusões... ).
6. Conclusão
As normas contidas nesta Declaração são inspiradas pelo desejo de servir ao homem segundo o desígnio do Criador. Para o cristão, a morte não é termo final ou quebra do viver; vem a ser, antes, a passagem para a plenitude da vida. Daí a neces­sidade de que todos os homens se preparem para essa transição à luz dos valores humanos e, para os cristãos, à luz dos valo­res da fé.
Quanto aos que trabalham nas profissões da saúde, procurem não somente assistir aos pacientes com toda a sua competência técnica; mas esforcem-se outrossim por oferecer­-lhes o reconforto - ainda mais necessário - de imensa ternura e de ardente caridade. Tal serviço prestado ao ser humano é também serviço ao Senhor, como Ele mesmo disse. «Na medida em que o tiverdes feito a um desses pequeninos, a mim o tereis feito» (Mt 25, 40).
Na audiência concedida ao Eminentíssimo Sr. Cardeal Pre­feito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Papa João Paulo II aprovou esta Declaração e ordenou a publicação da mesma. Tal Declaração traz a data de 5/05/80 e as assinaturas do Car­deal Franjo Seper, Prefeito, e do arcebispo D. Jerônimo Hamer, Secretário da referida Congregação.
II. COMENTÁRIOS
Consideraremos três pontos: 1) Síntese do documento; 2) Os analgésicos; 3) Significado da Declaração.
1. Síntese do documento
Como se vê, a Declaração da Santa Sé veio esclarecer ques­tão discutida e sujeita a mal-entendidos. O seu teor pode ser expresso mediante o seguinte esquema:
A eutanásia (ou o induzir a morte por compaixão) pode ser direta ou indireta.
A eutanásia direta é o ato de infligir a morte mediante recurso ocisivo. Tal ato é sempre ilícito, porque o homem não tem o direito de dispor da sua vida nem da vida de irmão inocente. Nenhuma situação aflitiva, por mais crucial que seja, justifica a eutanásia direta.
A eutanásia indireta é a atitude de subtrair a um pa­ciente os recursos sem os quais lhe é impossível conservar a vida. Tais recursos podem ser classificados em duas catego­rias: os proporcionais à probabilidade de melhora ou recupe­ração e os desproporcionais.
Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato humano, material ou financeiro altamente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico; tal era talvez o caso de Karen Quinlan, tal o do Generalíssimo Franco, o do Marechal Tito... Ora a Santa Sé declarou que não há obrigação moral de aplicar tais recursos. Todavia restará sempre o dever de oferecer ao paciente os meios rotineiros de entreter a vida (alimentação, injeções, transfusão de sangue...); estes, em hipótese nenhuma, poderão ser suspensos, qualquer que seja o caso do paciente (admite-se, porém, que o conceito de «re­curso rotineiro» possa variar de caso para caso).
Fora desta última hipótese, ou seja, ao se tratar de re­cursos proporcionais, há obrigação, em consciência, de aplicá­-los, desde que estejam dentro do alcance das posses do pa­ciente ou dos respectivos familiares.
Como se entende, a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito pode ser diversamente apreciada; tal avaliação envolve sempre um tanto da subjetividade de quem a realiza. Será necessário, porém, que com toda a lealdade, diante de Deus, as pessoas responsáveis procurem considerar a situação e tornar o alvitre mais fiel possível aos ditames da Moral.
2. Os analgésicos
O uso de analgésicos não é vedado pela consciência cristã. Importa, porém, que não impeça por completo o paciente de dispor de suas faculdades mentais. Esta cláusula é importante, visto que o ser humano deve poder enfrentar a consumação de sua vida terrestre de maneira lúcida e consciente; possa sanar qualquer ferida que tenha infligido ou que haja sofrido; possa dizer aos seus a respectiva mensagem final (principalmente se é pai ou mãe de família, chefe de algum grupo ou criador de alguma obra); possa, enfim, subscrever de maneira humana e cristã o livro de sua vida, dizendo então a palavra conclusiva de todo o discurso anterior. Ainda que esta atitude cause algum esforço ou sacrifício ao paciente, tal sacrifício é o de um homem (e cristão) que deseja comportar-se como tal até o fim de sua peregrinação terrestre; está na linha da grandeza e magnanimi­dade que deve ter caracterizado os seus gestos no decorrer da vida presente. Claro está que compete aos familiares e amigos do paciente assistir-lhe nessa fase decisiva e suprema de seu currículo; toca-lhes, sem dúvida, participar do afã, do enfermo, de pôr digno fecho ao seu viver terrestre; em muitos casos, os bens de que mais carecem os doentes, são os do afeto e do apoio moral.
3. O significado da Declaração
A Declaração da Santa Sé retoma e atualiza princípios já vigentes na Teologia Moral. Apenas se deve notar que outrora se falava de recursos terapêuticos ordinários e extraordinários, sendo estes tidos como não obrigatórios. Houve, pois, um pro­gresso de conceituação, visto que os recursos extraordinários se vão tornando aos poucos ordinários; o binômio «proporcional» e «desproporcional» parece atender melhor à realidade da me­dicina contemporânea; não se evita, porém, a subjetividade do julgamento, que cada uma das pessoas interessadas procurará seja tão sincero e leal quanto possível.
Talvez alguns estudiosos se surpreendam pelo fato de que a Santa Sé não impõe a luta contra a morte física de maneira incondicional. Tal atitude da Igreja se deve à consciência que o cristão tem, de que a morte física não é termo final, mas, sim, transição para a plenitude da vida. Quem deixa de existir neste mundo, não deixa de viver, mas apenas muda a sua modalidade de vida; por isto não lhe toca o dever absoluto e incondicional de entreter a existência terrestre com o sacrifício de pessoas e coisas que poderiam ser úteis a outras pessoas chamadas por Deus a permanecer mais tempo na vida presen­te. O cristão que tenha nítida consciência desta verdade, não se apega indevidamente à peregrinação terrestre nem considera a morte como um desastre a ser evitado a todo preço, mas vê-a como ocasião de participar rematadamente da Páscoa do Senhor Jesus.

Nenhum comentário: