sexta-feira, 20 de junho de 2008

Consciência e moralidade: o que se faz por amor, não é pecado,ama e faze o que quiseres.

pecado começa quando se prejudicam terceiros".
Em síntese: A filosofia e a teologia hoje em dia realçam fortemente a grande importância do amor como dínamo do comportamento e da vida moral do homem. E tal valorização que leva a legitimar tudo que proceda do amor.É necessário, porem, distinguir dois tipos de amor. Existe o amor decorrente do uso da inteligência, amor que subordina instintos e tendências sensuais ao nobre ideal que o homem conceba. É este propriamente o amor humano, que o Cristianismo ainda eleva ao plano de participação do amor de Deus. - Existe outrossim o amor-apetite que é comum ao homem e aos irracionais. Tal amor, deixado a si, pode degradar o ser humano.É, pois, com vistas ao primeiro tipo de amor, e somente a este, que a Moral cristã ensina: "Ama, e faze o que quiseres".Quanto ao pecado contra o próximo, é hoje particularmente recriminado, vistas as injustiças sociais de que padece a sociedade. Todavia não é o único tipo de culpa. Existem também faltas contra Deus e contra o próprio individuo. A Deus o cristão deve adesão direta na fé, no amor, na esperança, na oração. A si deve respeito, principalmente no uso de seu corpo. Quem viola os direitos de Deus ou os de sua personalidade, indiretamente prejudica o próximo.Em suma, encerram profunda sabedoria as palavras de Saint-Exupery "Amar, entre duas pessoas, não consiste em olhar uma para a outra, mas em olharem juntas na mesma direção". O verdadeiro amor é aquele que leva duas ou mais criaturas a se auxiliarem mutuamente, a fim de que cheguem certeiramente a Deus. De tal amor se, dirá sempre: "Ama, e faze o que quiseres".
* * *
Comentário: Em nossos dias dá-se ênfase especial ao amor, seja amor conjugal, seja amor fraternal. Tornou-se mesmo axioma de grupos jovens: "Make love, not war" (Fazei o amor, não a guerra). O ódio, as guerras e as divisões têm conotação fortemente negativa na opinião pública. - A própria moral cristã em sua renovação contemporânea, procura incutir, antes do mais, o preceito do amor, pois toda a Lei de Cristo se resume em amor a Deus e ao próximo (cf. Lc 10,27s). Não dizia São João que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,8)? E São Paulo não afirmava que o amor é o vínculo da perfeição (cf. Col 3,14)? S. Agostinho (+ 430), por sua vez, ensinava: "Ama, e faze o que quiseres". A consciência destas verdades têm sugerido frases como as que estão reproduzidas no título deste artigo. Em conseqüência, põe-se mesmo a pergunta: pode-se ainda dizer que haja pecado no caso de dois jovens solteiros que, de comum acordo, resolvem dar plena expansão ao seu amor numa noite livre, sem lesar direitos alheios? Praticam tudo o que o amor lhes sugere sem cometer violência entre si nem em relação a terceiros. Visto que e o amor que inspira tal procedimento, pode-se reprovar a conduta dos dois jovens? Numerosas casos semelhantes são julgados do mesmo modo: o amor legitima tudo, mesmo aquilo que os antigos, numa compreensão mesquinha dos afetos humanos, condenavam.Tais proposições merecerão a nossa atenção nas paginas seguintes.1. Dois amores1."O que se faz por amor, não é pecado..." A ambigüidade sedutora da linguagem pede uma distinção. Reconheçam-se dois tipos de amor:a) Existe o amor propriamente humano, que é o que se segue aos atos da inteligência. Esta apreende a verdade e a aponta a vontade. Conseqüentemente, a vontade se deleita na verdade, podendo mesmo querer praticá-la com afeto. E este querer com afeto que se chama amor em sentido próprio. Sempre coloca os bens do espírito acima dos bens da carne.Um tal amor supõe o ideal, ou seja, uma meta que o homem pretende atingir para se realizar plenamente. Esse ideal atende as aspirações mais profundas da pessoa, que implicam sempre doação e generosidade, com renúncia a interesses egoísticos.No cristão, tal amor é elevado a um plano ainda superior. A inteligência guiada pela fé indica a meta mais elevada, ou o ideal supremo. A vontade e a afetividade, movidas pela caridade infusa, dirigem-se a esse ideal e a tudo que se lhe prende, com amor forte e nobre.b) Existe no ser humano outro tipo de amor, que mais propriamente deveria ser dito "apetite" ou "instinto cego"; é o amor sensual ou carnal, que visa ao prazer momentâneo, sem levar em conta a escala dos valores e os ditames da inteligência. Tal apetite muitas vezes trai o homem e o degrada, asseme­lhando-o aos animais irracionais e instintivos. Pode ser erótico, cobiçoso, egoísta, etc.Ora, quando o Cristianismo ensina que o amor é o vinculo da perfeição e que a lei de Cristo se reduz ao amor, entende o amor no primeiro sentido, pois somente este é propriamente humano e cristão. Sem desprezar afetos e sentimentos (nem o sexo), subordina-os completamente a visão de fé que caracteriza o cristão; é um amor de serviço a Deus e ao próximo, e não de serviço do individuo a si mesmo diretamente[1],2. No que se refere a S. Agostinho em particular, note-se: este mestre reduzia toda a vida moral a pratica do amor. Distinguia, porém, duas orientações possíveis para o amor (fora das quais não via terceira):- o amor do sujeito a si até o desprezo de Deus; seria a cupiditas ou cupidez;- o amor a Deus e ao próximo até a renuncia ao eu individual (caso fosse necessária para se guardar a integridade do amor generoso); seria a caridade ou o amor cristão.Te­nha-se em vista a obra do mestre: "A Cidade de Deus".Ora era a este segundo tipo de amor que S. Agostinho atribuía a legitimação de todos os nossos atos. O que se faça por inspiração de tal amor, não pode ser pecado, pois sempre dará o primado a Deus e a sua santíssima vontade; nunca poderá sugerir a prática do desmando ou do pecado.No cristão, o autêntico amor, inspirador de todos os atos bons, não a menos do que a participação no amor do próprio Deus, como diz São Paulo: "O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado" (Rom 5,5).3. Esse amor cristão parte da convicção de que o ser humano não é apenas carne e sensualidade, mas um conjunto de alma e corpo, bens espirituais e bens materiais, entre os quais é necessário estabelecer uma escala de valores. Ninguém chega a ser autêntica personalidade e filho de Deus se não domina os instintos, dizendo Não a si mesmo no momento oportuno.O amor cristão entrega-se ao próximo não por interesse mesquinho ou concupiscência desregrada, mas porque quer o bem do próximo.Estas reflexões permitem lançar um olhar claro sobre certos casos concretos de "amor". Pergunta-se, por exemplo:As concessões ao sexo numa noite libertina ou num gênero de vida que não tenha definição, tornam realmente os seus clientes mais felizes? - Pode-se dizer que não; o uso libertino do sexo vem a ser ilusão e fuga; em vez de construir personalidades, suscita seres obcecados e moralmente amorfos.Pode-se dizer que alguém quer bem a outrem pelo fato de lhe proporcionar um prazer sensual que não tenha qualidade nem significado claro? - Não; uma tal concessão não se chama amor. Amor quer dizer "ajudar o semelhante a ser mais ele mesmo, mais honrado e digno, andando de cabeça erguida".Para amar assim, genuinamente, o cristão tem que saber resistir as seduções, repelindo certos convites com vontade decidida. Essas atitudes negativas são expressões de autêntico amor, porque ajudam o próximo a se libertar das suas paixões e a se levantar do seu estado de vida indefinida.De modo geral, o homem mais ama o próximo quando lhe diz um Não oportuno do que quando lhe diz um Sim despropositado e meramente sentimental.2. Pecado e prejuízo do próximo1. Inegavelmente certas correntes de filosofia moderna ajudaram o homem contemporâneo a tomar consciência dos valores da sociedade e das dimensões sociais de sua vida. Ninguém pode viver isoladamente; ninguém se realiza a sós.Estas proposições são verídicas também no plano cristão. Contribuíram para avivar nos fiéis a consciência de suas responsabilidades perante a sociedade eclesiástica e civil. Furtar-se aos deveres para com o próximo violando a justiça ou o amor ao semelhante, eis pecados que, sem grande dificuldade, todos os cristãos reconhecem como pecados.Muitos sentem-se facilmente culpados de um pecado coletivo, ou seja, de participar mais ou menos voluntariamente no egoísmo social ou na exploração dos pobres ou ainda nos horrores da guerra. Essa sensibilidade para com os valores sociais e os deveres daí decorrentes é por certo uma vitória do pensamento cristão sobre o individualismo. Existe, porém, em nossos dias o perigo de se restringir o conceito de pecado as faltas contra a justiça e o amor ou contra o próximo. Só haveria pecado quando se ferissem direitos alheios ou quando se prejudicasse o próximo.Ora esta última afirmação é evidentemente errônea. As dimensões sociais da vida do cristão jamais deverão levá-lo a esquecer o aspecto pessoal e intransferível de seu comportamento. O cristão tem deveres para com Deus e para consigo que não afetam,diretamente as relações com o próximo e que devem ser cumpridos a fim de que não cometa pecado. A Deus o cristão deve fé, amor, obediência, culto (oração individual e comunitária, incluindo a S. Missa aos domingos) ... A si mesmo o cristão deve respeito: respeito as leis de natureza, reverencia ao corpo (que não pode ser reduzido a categoria de instrumento do prazer). A infração desses deveres para com Deus e com o próprio sujeito pode ser tão grave quanto os pecados contra a justiça; além do que, note-se que quem prejudica a si pelo pecado, por mais secreto que este seja, não pode deixar de estar prejudicando também ao próximo, pois concorre para o depauperamento de uma personalidade que faz parte da sociedade.O Cristianismo tanto é comunitário quanto é personalista. Diz muito bem o arcebispo de Tolosa, D. Jean Guyot, em documento publicado aos 23/1/1972: "Toda a tendência da Revelação cristã é uma tendência à interioridade. O paradoxo do Cristianismo consiste em que ele é simultaneamente uma comunidade e uma intimidade incomunicável" ("Documentation Catho­lique" nº 1604, 5 / III / 1972, p. 228).Vê-se, pois, que o uso livre do sexo por parte de duas pessoas que estejam de comum acordo entre si e não lesem terceiros ao fazê-lo, não deixa de ser pecado; é, sim, ofensa a Deus e às duas pessoas envolvidas na "aventura"; além do que, será indiretamente detrimento para a sociedade.2. Verdade é que se poderia conceber a seguinte réplica a tal afirmação:O conceito de desonra decorrente da liberdade sexual é convencional. Por que não se dizer que o uso do sexo inspirado pelo amor é sempre honroso, quaisquer que sejam as circunstâncias em que ocorra?A tal observação se daria a seguinte resposta: o ser humano não improvisa sua grandeza; mas ele encontra os traços de sua grandeza e nobreza impressos na sua própria natureza. Ora a natureza humana é tal que a inteligência (e a fé) devem obter a primazia de comando, subordinando a si os instintos e apetites sexuais. O uso do sexo fora do matrimônio carece de finalidade e contradiz ao planejamento harmonioso da vida dos interessados; a criança que desse consórcio nasça, há de ser uma criança sem lar constituído. Para que não venha a ser tal, faz-se necessário o uso de anticoncepcionais, que permitem o uso do sexo sem a conseqüência da prole. Ora o prazer e a satisfação sensuais justificariam tais recursos ou tais desmandos? - Razoavelmente falando, não. Somente a renúncia ao raciocínio, ou seja, à dignidade do homem, pode legitimar o libertinismo sexual.3. Talvez, porém, queira alguém observar ainda: "Nunca matei, nunca roubei, nunca cometi adultério ou coisa semelhante! Não vejo pecado em mim!"Tal pessoa, sem o saber, poderia incorrer no erro dos fariseus. O pecado não consiste apenas em atos exteriores, mas também em atos internos, mesmo que não atinjam diretamente o próximo. Mesmo sem matar ou roubar ou adulterar, pode alguém, de consciência tranqüila, afirmar que ama a Deus com todo o seu coração, todas as suas forças e ao próximo como a si mesmo? Pode essa pessoa dizer que satisfaz à exigência, proposta por Jesus, de amarmos como Ele amou (cf. Jo 15, 12) ? - Esse amor apregoado por Cristo exige severa disciplina de vida e luta do cristão <>. É em função da sua vida interior, ou seja, do seu relacionamento consigo mesmo e com Deus, que o cristão consegue amar devidamente ao próximo. Sem interioridade ou sem contato direto e explicito com Deus, dificilmente chegará o cristão a praticar o preceito do amor ao seu semelhante.3. Uma conclusãoEstas reflexões sobre o amor cristão podem encerrar-se com valiosa frase de Antoine de Saint-Exupéry, autor de "O pequeno Príncipe": "Amar, entre duas pessoas, não consiste em olhar uma para a outra, mas em olharem juntas na mesma direção".Nestas palavras encerra-se profunda filosofia. Com efeito, pode parecer óbvio, à primeira vista, que o amor consista em nos determos sobre a criatura amada, contemplando-a e procurando desfrutar tudo que ela possa dar; é o que fariam, por exemplo, esposo e esposa. - Observe-se, porém, que um tal amor vem a ser ilusório. Cedo ou tarde, a criatura se cansa de olhar para outra criatura, por mais encantadora que esta pareça a princípio. A fim de que o amor seja duradouro e construtivo, é preciso dirigi-lo para o Infinito. O verdadeiro amor, portanto, é aquele que une firmemente duas criaturas para que, juntas, auxiliando-se mutuamente, olhem para Deus e se encontrem em Deus. O marido não foi feito para se realizar plenamente na sua mulher, nem vice-versa, como também criatura alguma foi feita para se realizar adequadamente em outra criatura. Esposo e esposa são pequenos demais um para o outro porque ambos têm a capacidade do Infinito. Por isto só amamos verdadeiramente quando nos ajudamos uns aos outros a nos encaminharmos todos para o Infinito e a nos encontrarmos todos em Deus. É a respeito de um tal amor que bem se pode dizer: "Ama, e faze o que quiseres".Estêvão Bettencourt O.S.B.NOTA:[1] Está claro que quem serve a Deus e ao próximo, indiretamente serve também a si mesmo, pois constrói a sua personalidade. "É dando que se recebe, é perdoando que se chega à vida eterna" (São Francisco de Assis).
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Sábado, 16 de Junho de 2007

Consciência e moralidade: moral hoje
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 124/1970)
«Diz-se clàssicamente que o fim não justifica os meios.
Será isto verdade mesmo em nossos dias, quando os ho­mens enfrentam situações inéditas?»
Resumo da resposta: A moralidade do ato humano é aferida não somente pela finalidade desse ato (intenção do agente), mas também pelo objeto ou a matéria em torno da qual esse ato versa. Há atos cuja matéria é em si má; tais são os que contradizem às leis da natureza (não matar, não roubar, respeitar a dignidade do pró­ximo...).
Para chegar a determinado fim, o homem tem de recorrer a meios adequados; quem quer o fim, quer os meios. Donde se segue que o fim e os meios são envolvidos no dinamismo de um só querer. Por conseguinte, se alguém escolhe um meio moralmente mau para atin­gir um fim bom, cai em contradição consigo mesmo; quer o bem e o mal ao mesmo tempo; assim destrói o valor bom de sua ação. Não beneficia nem a si nem ao próximo.
Daí dizer-se que o fim bom não justifica os meios maus, nem na era da técnica, quando tantas são as seduções para justificar quais­quer meios. Sempre que alguém
Resposta: Todos os homens de bom senso foram, até os últimos tempos, unânimes em afirmar que o fim não justifica os meios ou que, em consciência, não se pode empregar qualquer recurso para atingir uma finalidade boa, por mais pura ou útil que seja. Este princípio parece tão evidente que poucos autores sentem a necessidade de o provar. Todavia há quem julgue que, diante dos problemas totalmente novos dos nossos dias, o axioma possa e deva sofrer exceções, ... exceções de emergência justificadas por necessidades extremas. - Em conseqüência, vamos abaixo analisar sucintamente a proble­mática; após o que, tentaremos responder à dúvida suscitada
1. A problemática
O mundo de hoje, com sua explosão demográfica e os problemas que ela abre, ... com os novos recursos da ciência e da técnica, tem inspirado aos homens certos comportamen­tos em que o fim reto e honesto parece justificar meios que os antigos reprovariam:
inseminação artificial para dar a cônjuges estéreis a alegria e a estabilidade de um casal fecundo;
o uso de recursos anticoncepcionais para não sobrecarregar uma genitora ou um casal já muito onerados;
a esterilização de indivíduos tarados ou enfermos, a fim de que não propaguem males sociais;
o uso da tortura para se extorquirem segredos e assim pôr a salvo a vida de milhões de homens ameaçados por terroristas;
o suicídio empreendido por um prisioneiro a fim de, no auge da dor, não vir a denunciar seus companheiros de luta ou cair na desonra;
o aborto para evitar prole defeituosa ou indesejada;
o sacrifício de vidas humanas inocentes a fim de se obterem me­lhores condições para as gerações futuras.
Em tais casos, os fins ou objetivos são sempre legítimos; os meios eram reputados iníquos. Hoje em dia, porém, per­gunta-se se tais meios não são legitimados pela perspectiva de uma finalidade boa. Os motivos para que se proponha a ques­tão podem-se reunir em três incisos:
1) a multiplicação de meios e recursos que aliviam e facilitam a luta do homem, multiplica as tentações de se usa­rem meios que, segundo os conceitos clássicos, seriam ilegíti­mos, em vista de metas legítimas. Assim, por exemplo, a fecundação artificial, outrora empreendida no gado apenas, hoje em dia pode ser com êxito efetuada também no ser humano, com «vantagens» altamente decantadas;
2) a civilização contemporânea gera uma mentalidade que é cada vez menos propensa a aceitar a Moral e as exigências da consciência. Mediante a técnica o homem moderno se acostumou a ver paulatinamente cair os obstáculos às suas conquistas; barreiras outrora insuperáveis vêm cedendo... Daí sentir ele a dificuldade de tolerar que a Moral refreie ou detenha a execução de planos ousados ou grandiosos. O «prin­cípio da eficácia» leva a não rejeitar meios censuráveis dos quais se possam esperar resultados sedutores;
3) hoje em dia acentua-se muito a «Moral da intenção». Segundo esta, tal ou tal não é bom ou mau em si mesmo; é a intenção de quem o pratica que o torna lícito ou não; a Moral deixa de ser objetiva para se tornar meramente sub­jetiva; «não se considere aquilo que alguém faz, mas a in­tenção com que o faz». Em conseqüência, matar um inocente por espírito de rancor ou vingança seria condenável; todavia matá-lo para salvar uma cidade seria louvável.
Para a Moral da intenção, os meios não precisam de jus­tificativa moral; têm função meramente técnica; são «amorais» ou moralmente neutros. Daí a ruptura, freqüente em nossos dias, entre a Moral e a técnica. A Moral (intenção, consciên­cia subjetiva) seria algo de estritamente pessoal, variável de indivíduo a indivíduo, ao passo que a técnica (a eficácia, o rendimento científico, o progresso) seria algo de objetivo ou um problema da sociedade como tal. A Moral nada teria a dizer no setor da técnica.
Eis como se coloca o problema de nossos dias: pode-se ainda sustentar que o fim não justifica os meios? ... ou que a consciência moral tem direito a emitir julgamento sobre os comportamentos que a civilização sugere (às vezes, imperiosa­mente) ao cidadão moderno?
Procuremos a resposta para a questão.
2. Bem e mal: o subjetivo e o objetivo
1. Antes do mais, note-se que dois são os elementos que tornam um ato moralmente bom ou mau, legítimo ou ilegítimo:
- o objeto desse ato ou a matéria em torno da qual versa o ato: assim ensinar ciências e civismo
a um ignorante é ato, por seu objeto, bom. O ato de dar esmola a um indi­gente é, por seu objeto, bom;
- a finalidade ou a meta que se tem em vista ou que se intenciona quando se pratica o dito ato. Esta também tem que ser boa ou reta para que o ator seja moralmente bom. Por conseguinte, quem ensina a um ignorante no intuito de se furtar a imperiosas obrigações de seu ofício ou emprego, está procedendo, mal (pois a finalidade é má). Quem dá ali­mento a um faminto, pretendendo furtar-se a lhe pagar o justo salário, procede mal.
Vê-se, pois, que, para que um ato seja moralmente bom, é preciso seja bom não somente pelo fim ou objetivo ao qual se dirige, mas também pela matéria em torno da qual versa.
2. Desenvolvendo tais idéias, pode-se dizer:
O que torna um ato moralmente bom ou mau, legítimo ou ilegítimo, não é somente a intenção de quem o pratica... Também não é simplesmente o julgamento ou a avaliação de quem age. Além destes elementos subjetivos, existe um crité­rio objetivo para se definir o agir humano. Tal critério é a matéria ou o objeto desse agir.
Ora são atos moralmente bons por sua matéria ou por seu objeto, os atos que atendem às exigências da natureza humana. Com efeito, a natureza humana impõe ao homem certas normas para que o indivíduo se realize ou se torne mais homem; burladas essas normas, o indivíduo se desfigura. Tais normas são válidas em todos os tempos (elas são ante­riores a qualquer tipo de educação ou filosofia) entre essas exigências, está a de respeitar os direitos do próximo, a de amar os semelhantes, a de não fazer a outrem o que ninguém quer seja feito a si mesmo, a de não matar um inocente.. . Todo ato que se conforme a tais imperativos, é moralmente bom; leva o homem a ser mais digno.
Ao contrário, moralmente mau por seu objeto é o ato que desrespeite as leis da natureza, ato que, em vez de levar o homem a adquirir a perfeição para a qual ele é natural­mente chamado, o desfigura e depaupera.
A título de complemento, não se poderia deixar de dizer aqui que o ser humano não «se realiza» de maneira leiga ou sem Deus. Se­guindo as normas de sua natureza, o sujeito segue as leis de Deus, Autor da natureza. Realizando-se a si mesmo, o indivíduo se torna mais próximo de Deus, mais brilhante reflexo da perfeição do Cria­dor. - Nestas páginas estamos propondo a doutrina de tal modo que possa ser aceita também por quem não queira encarar diretamente o problema de Deus.
3. Fim e meios
Acontece freqüentemente que coloquemos certos atos não porque os intencionamos como tais, mas porque os subordina­mos, como meios oportunos, a determinada finalidade - fina­lidade reconhecidamente boa.
É então que se põe a pergunta: não será lícito recorrer a qualquer meio, contanto que se tenha em vista um objetivo reto e digno?
A resposta há de ser negativa.
Por quê?
- Porque fim e meios constituem como que um só objeto do querer ou da vontade de quem age. Sim; fim e meios estão intimamente relacionados entre si, de tal modo que quem quer tal fim, deve querer tal ou tal meio[1]. É, portanto, com um único ato de minha vontade que eu quero o fim e quero os meios correspondentes. Em outros termos: o fim e os meios estão envolvidos no dinamismo de um só querer.
Ora, como já foi insinuado atrás, nem todos os meios têm em si o mesmo valor moral. Assim como há meios que con­tribuem para dignificar o homem, há outros que concorrem para o destruir ou degradar; tais são os roubos injustos, o homicídio do inocente, a tortura que desrespeita as personali­dades. Por conseguinte, se tenho uma intenção boa (a inten­ção de obter algo de bom), só posso aplicar-me a querer meios bons. Sei que o valor de tais meios não é aferido por critérios de técnica ou de rendimento econômico ou de produtividade e eficiência profissional, mas, sim, pela aptidão de tais meios a promover a grandeza e a dignidade do homem, tornando-o mais homem, mais voltado para o seu Fim Supremo (o Fim que responde às aspirações mais características do ser hu­mano), e não apenas mais eficiente no setor da indústria, do comércio, da arte ou da ciência.. .
Em conseqüência, note-se: o homem que empregue um meio mau ou indigno para atingir uma finalidade boa ou digna, cai em contradição consigo mesmo, comete uma inco­erência ou uma desdita. Eis, em última análise, por que não se justifica que alguém utilize meios em si maus para obter objetivos bons: tal sujeito diz ao mesmo tempo SIM e NÃO a si mesmo ou à dignidade humana e aos valores que ele pre­tende alcançar. Empregando um meio mau, a pessoa se di­minui ou renega quando precisamente intenciona dignificar a si mesma e ao próximo. - Na verdade, a sociedade não é beneficiada quando um de seus membros se avilta, ainda que este intencione auxiliar a sociedade.
Para ilustrar tais afirmações, pode-se recorrer ao exem­plo da tortura. O dever de salvar os compatriotas pode (e deve) aparecer a alguém como uma tarefa sagrada; tal pessoa não se poderia furtar a esse dever sem se sentir infiel a si mesma, ao próximo e a Deus. Todavia, se, para obter a sal­vação dos seus semelhantes, o sujeito lança mão da tortura (a qual, em si, é indigna ou imoral), ele se opõe a si mesmo (à sua dignidade), ao próximo (à dignidade do semelhante) e a Deus mesmo. Em conseqüência, ele não beneficia nem a si nem a outrem. Para atingir sua finalidade, tal pessoa em­prega um meio que, na verdade, a afasta da dita finalidade.
Parece oportuno sublinhar que o valor moral dos meios (como também o dos fins) é um dado que o homem não cria nem estipula, mas que ele recebe da ordem natural das coisas. Ninguém se realiza de qualquer modo ou empregando quais­quer meios; paralelamente, uma semente não dá qualquer planta, mas está subordinada às leis da sua espécie.
A propósito pode-se recomendar o artigo de V. de Couesnongle: «La fin et les moyens», em «Supplément de la Vie Spirituelle» nº 65, mai 1963, pp. 293-312.
Estêvão Betteneourt O.S.B.
____
NOTA:
[1] Um dos correspondentes de Karl Marx, o pensador alemão Ferdinand Lasalle, escreveu a Marx:
«Não mostres apenas a meta; mostra também o caminho. Pois a meta e o caminho estão de tal modo associados entre si que um muda quando o outro muda... Um caminho novo indica uma finalidade nova»
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Sexta-feira, 15 de Junho de 2007

Consciência e moralidade: tortura é valida?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 122/1970)
"Pode a tortura ser admitida como processo válido para pôr fim ao terrorismo e defender a pátria»"?
Resumo da resposta: A tortura era reconhecida e aplicada pelo antigo Direito Romano. Todavia caiu em total desuso quase no fim da Idade Antiga por influência de pensadores cristãos (inclusive o Papa Nicolau I, 858-867). O renascimento do Direito Romano, no século XII, fez que a tortura voltasse a ser aplicada oficialmente nos séculos subseqüentes. A partir do século XVI, levantaram-se vozes contrárias a tal praxe, de sorte que nos séculos XVIII/XIX ela desa­pareceu dos códigos penais. Continua, porém, a ser aplicada por certos regimes, recorrendo a processos modernos despersonalizantes, que atentam profundamente contra a dignidade humana.
A Igreja reprova a tortura como sendo atentado violento à pessoa humana, a qual tem direito a ser respeitada em seu físico e em seu psíquico. Nem mesmo em vista de coibição de crimes é lícito recorrer a tal procedimento, pois em hipótese alguma o fim justifica os meios.
---X---
Resposta: Torturar, no sentido judiciário e preciso, é sub­meter alguém a, tormentos progressivos (que se podem tornar desesperadores), a fim de extorquir-lhe uma confissão de culpa, uma denúncia ou outra declaração, tidas como úteis ao bem comum ou à extirpação de males públicos (como sejam o ban­ditismo, a guerrilha, o terrorismo. ..).
A tortura, nos últimos tempos, tem sido oficialmente con­denada no Brasil como sendo contrária aos direitos do homem. A fim de ilustrar o assunto, vamos, nas páginas que se seguem, examinar com atenção os argumentos evocados no decorrer dos séculos para defender e impugnar a tortura; finalmente proporemos o ponto de vista da consciência cristã sobre a questão.
1. Tortura: histórico
1. Constranger alguma pessoa pela violência a reconhecer ou indicar algo é modo de proceder a que os homens devem ter recorrido desde remotas épocas.
Os povos antigos procuravam apurar a verdade em maté­ria criminosa ou pelo emprego de tortura ou pelo recurso aos «juízos de Deus» ou ordálios. Os ordálios eram artifícios ou provas a que os juizes submetiam as pessoas suspeitas (faziam­-nas atravessar o fogo, atiravam-nas na água profunda, subme­tiam-nas a um duelo.. .); caso os acusados superassem ilesos tais provas, eram tidos como não culpados (o próprio Deus estaria dando testemunho da inocência dos acusados).
A tortura estava em uso nas cidades gregas pré-cristãs (séculos VII-IV a. C.) assim como no Império Romano. Era largamente aplicada a escravos, para que confirmassem as suas declarações (pois os patrões não confiavam nem na simples palavra nem no juramento dos escravos). O Direito Romano a princípio isentava da tortura os homens livres, mas já no fim da República Romana admitia-a para quase todos os cidadãos. Os cristãos do Império sofreram a tortura para desdizer à sua fé em Cristo e sacrificar aos deuses.
A tortura entrou em declínio quando os povos bárbaros invadiram a Europa. É bem possível que os germanos não conhecessem a tortura, mas apenas os ordálios ou juízos de Deus, cuja prática eles espalharam largamente pelos territó­rios europeus.
2. No século XVI o reflorescimento dos estudos do antigo Direito Romano ocasionou a restauração da tortura nos proces­sos judiciários civis da Idade Média: adotaram-na os reis
Fre­derico II da Sicília (1215-1250), Luís IX da França (1226­-1270), Afonso X de Castela, assim como as constituições de cidades da Itália, da Alemanha, da Flândria.
Quanto aos juristas ou canonistas da Igreja, seguiam a norma formulada em 1140 pelo famoso mestre Graciano «Quod confessio cruciatibus extorquenda non sit. - A confis­são não há de ser extorquida mediante tormentos» («Decretum Gratiani» e. 15, qu. 6, § Quod vero).
Todavia a partir do século XIII, estando a tortura em uso nos processos civis, os canonistas tiveram que reconhecê-la nos tribunais da Inqui­sição.
Diga-se de passagem: a Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico, mas desde o seu início funcionou sob a ação conjunta de eclesiásticos e civis; estes foram mais e mais prevalecendo na Inquisição, a ponto que esta veio a ser, a partir do século XIV, um instrumento cada vez mais habilmente manejado pelos reis e senhores civis da Europa; estes tencionavam assim executar planos de interesse pessoal ou nacional. Cf. o artigo sobre Inquisição em «P. R.» 8/1957, pp. 23-33.
Os juristas medievais estipularam certas restrições à apli­cação da tortura:
1) houvesse plena certeza de que o delito fora cometido;
2) houvesse relativa certeza em torno da pessoa culpada (relativa certeza decorrente de uma prova poderosa, mas ainda insuficiente);
3) não existisse outro meio para se adquirir plena cla­reza no caso.
Mas nem mesmo todas as pessoas que se enquadrassem nestas condições estavam sujeitas a torturas. Ficavam isentos os anciãos (após os 60 ou 70 anos), as crianças (antes dos 14 anos), as mulheres grávidas, os enfermos, os feridos e (na medida em que estivessem impossibilitados de seguir um inter­rogatório) os amentes e os surdos-mudos. - Ao juiz não era lícito mandar proceder à tortura caso não admoestasse previamente a pessoa acusada, dando-lhe tempo e meios de se defen­der. Em muitos casos não bastava a sentença de um juiz, mas exigia-se que ao menos dois juizes decretassem a aplicação da tortura. Ao juiz tocava orientar a tortura e responsabilizar-se por suas conseqüências; um médico devia acompanhar o indi­víduo torturado a fim de lhe prestar a devida assistência em casos infelizes. Os oficiais de justiça que aplicassem abusiva e exageradamente a tortura, eram sujeitos a penas, inclusive a pena de morte (caso provocassem a morte do torturado); tam­bém eram punidos os oficiais que negligenciassem dar aos acusados as garantias que as leis lhes asseguravam.
Caso o réu confessasse a sua culpa ou fizesse alguma declaração sob o efeito da tortura, era convidado a confirmar os seus dizeres diante de um tribunal, livre e distante de todo tormento, a certo intervalo de tempo (geralmente 24 horas depois). Essa confirmação posterior - e essa só - decidia a sorte do réu, pois a confissão de culpa extorquida, mas não confirmada, era tida como nula (servia apenas de indício para que se repetisse a tortura). A tortura podia ser repetida duas vezes; se nos três casos o acusado confessasse e depois recusasse confirmar, e se não houvesse indícios claros de que era, de fato, réu, o tribunal o punha em liberdade (por insuficiência de provas); apenas se lhe aplicavam doravante certas medidas de cautela, pois era pessoa suspeita.
O acusado que confessasse até o fim a sua inocência, resistindo a todos os tormentos, era considerado isento de culpa e suspeita.
3. No século XVI começaram a se ouvir vozes autori­zadas contrárias à tortura em vez de a julgarem um mal necessário, que seria preciso aceitar, apresentavam-na como expressão de barbárie, que seria mister remover. Apareceram, no século XVII, obras que propugnavam a abolição da tortura, tanto da parte de escritores católicos (Fr. von Spee, J. Schaller, A. Nicolas), como da parte de protestantes (J. Graefe, M. Bernhard); o número desses escritos foi crescendo no século XVIII, de modo a impregnar a opinião pública. Em conse­qüência, a tortura foi oficialmente eliminada dos processos judiciários da Europa ocidental entre fins do século XVIII e início do século XIX.
Todavia esse duro tratamento continua, sob títulos diver­sos, a ser praticado até nossos dias: os regimes totalitários tendem, sim, a extorquir confissões e declarações das pessoas suspeitas mediante os mais requintados recursos, que vão desde a violência física até a coação moral, a despersonalização do sujeito, a lavagem de crânio, os interrogatórios «de terceiro grau». .. As finalidades visadas pelos modernos torturadores são paralelas às dos antigos; apenas os meios de tortura são mais esmerados; além do que, hoje em dia não se reconhecem aos indivíduos torturados as garantias e os direitos que os medievais, em sua boa fé, estipulavam em favor dos acusados. Assim a tortura contemporânea pode assumir formas mais atrozes e atentatórias do que a antiga.
Passemos agora à consideração do aspecto moral da questão.
2. E a consciência ... ?
1. Na antigüidade pré-cristã, os gregos e romanos pare­cem não se ter preocupado muito com o aspecto moral da apli­cação da tortura; não abordaram o assunto senão dentro dos termos da jurisprudência.
2. Antigüidade cristã. São os pensadores cristãos os que, pela primeira vez na história, propõem uma avaliação mural de tal praxe: avaliação negativa. Assim Tertuliano († após 220) declarava indigna de um juiz cristão a aplicação de tor­mentos («De corona» 11; «De idololatria» 17); S. Agostinho († 430) denunciou a injustiça que vem a ser a aplicação de uma pena certa por um delito incerto («De civitate Dei» 19,6); o Papa Nicolau I (858-867), consultado a respeito pelos búlga­ros, reprovou a tortura, que, dizia ele, «não era admitida nem pelas leis divinas nem pelas leis humanas, pois a confissão deve ser espontânea, e não arrancada pela violência»[1]. Retomando essa fórmula, o famoso «Decreto de Graciano», fonte autori­zada da jurisprudência eclesiástica, mandava: «A confissão não deve ser extorquida, mas, antes, ser professada esponta­neamente. - Confessio non extorqueri debet, sed potius sponte profiteri».
O pensamento cristão se manifestou sempre do mesmo modo até a Alta Idade Média.
3. Idade Média. Quando no século XII a tortura, que oficialmente deixara de vigorar, foi reintroduzida pelas auto­ridades governamentais, ela foi enquadrada pelos juristas civis dentro de um sistema do qual ela dificilmente poderia ser can­celada. Os mestres cristãos então apenas puderam obter mode­ração no uso desse recurso. A literatura cristã dos séculos XIII e XIV apresenta não poucos conselhos e exortações à brandura dirigidos aos inquisidores que, conforme a praxe da época, aplicavam a tortura. A propósito ocorre interessante página de Jean Guiraud:
«É preciso dizer que a Inquisição aplicou a tortura não com a crueldade requintada que lhe atribuem os seus adversários, mas com as maiores cautelas e em casos totalmente excepcionais... Todos os manuais dos inquisidores faziam observar que a tortura só devia ser infligida em casos muito graves e quando houvesse séria probabili­dade de culpa... Para submeter alguém à tortura, era necessário que se tivesse 'meia-prova' do seu crime, por exemplo, dois indícios sérios, dois indícios veementes, como dizia a linguagem dos inquisi­dores (o depoimento de uma testemunha digna de crédito e a má fama, os maus costumes ou as tentativas de fuga do acusado). A tor­tura só era aplicada quando estavam esgotados todos os outros meios de investigação. Não ficava ao arbítrio exclusivo do inquisidor pres­crever a tortura... O Concílio de Viena em 1311 decretou que cada caso fosse submetido a uma comissão, a qual deveria sujeitar sua sentença ao bispo diocesano.
Em tais condições, a Inquisição só raramente recorreu à tortura. No sul da França, onde a Inquisição esteve tão ativa nos séculos XIII e no início do século XIV, os inquisidores usaram tão pouco a tortura que certos historiadores se surpreenderam com isto e qui­seram supor - sem fornecer a mínima prova - que o emprego da tortura era mencionado em registros especiais que hoje estão desa­parecidos... Nas 630 sentenças registradas nos arquivos de Tolosa, desde 1309 a 1323, há uma única menção de recurso à tortura... O laconismo dos documentos é, para nós, indício muito sério do ca­ráter todo excepcional do emprego da tortura na região do Lan­guedoc. Fizeram-se as mesmas constatações na Provença, na França e em outros países do Norte»
(«Inquisition», em «Dictionnaire Apolo­gétique de la Foi Catholique» II. Paris 1911, col. 873s).
Em uma palavra: os moralistas e juristas da Igreja, na Idade Média, reconheceram o uso da tortura, que a jurispru­dência civil admitia. - Isto talvez cause estranheza ao leitor; todavia deve-se dizer que dentro das circunstancias da época medieval tal atitude não causava problema de consciência nem mesmo aos santos; a tortura devia parecer algo de justificado para quem vivia dentro dos quadros de pensamento e costumes dos séculos XII-XV.
4. A partir do século XVI. Com a Renascença e o huma­nismo do século XVI, a história entra em nova fase: a cultura geral se enriquece, as ciências progridem, terras remotas no Oriente e no Ocidente são descobertas... Estes dados mudaram o cenário da época e permitiram aos homens rever certos mo­dos de pensar e viver. Assim é que doravante a literatura reli­giosa apresentou sucessivos protestos contra a tortura. Todavia ainda se fizeram ouvir vozes de moralistas (entre os quais De Lugo, † 1660, e o próprio S. Afonso Maria de Ligó­rio,
† 1787) que julgaram poder justificar a tortura em casos bem restritos. Eis como raciocinaram:
O juiz tem o direito e o dever de procurar conhecer a rea­lidade dos fatos. Dado, porém, que o juiz esgote os meios normais para chegar à posse da verdade, o bem comum da sociedade pode exigir que submeta as pessoas suspeitas de crime a meios constrangedores, como a tortura. Os tutores da ordem pública têm a incumbência de apurar a responsabili­dade dos indivíduos indigitados.
Verdade é que cada pessoa tem o direito de falar e se calar segundo seu livre arbítrio. Todavia este direito deve ceder aos interesses da sociedade, desde que esta se veja ameaçada pelo silêncio ou pelo comportamento misterioso de um dos seus membros. Os danos que resultariam para a sociedade do fato de se ignorar o autor de determinado delito, podem ser bem maiores do que os males acarretados pela violação da liberdade ou dos direitos de um indivíduo.
Contudo mesmo os moralistas que assim pensavam, esta­beleceram condições bem definidas para que seja lícito o uso da tortura. Tais seriam:
a) contra o acusado já haja indícios que constituam uma prova semiplena (confissão extrajudicial, depoimento de uma testemunha insuspeita... );
b) a pessoa acusada não seja das que gozam da imuni­dade de tortura reconhecida pelo direito natural ou pelo direito positivo;
c) estejam esgotados todos os recursos mais brandos para apurar a verdade;
d) a tortura não seja insuportável a quem a sofrerá, levadas em conta as condições de saúde e resistência física dessa pessoa;
e) dê-se ao pretenso réu a oportunidade de confirmar ou de retratar em ambiente tranqüilo a confissão extorquida.
Veja-se a propósito S. Afonso Maria de Ligório, «Theologia Mo­ralis» IV, cap. 3 a.3, n° 202, II; J. De Lugo, «De iustitia et lure», disp. XXXVII, sect. XIII, ed. Fournials, VII. Paris 1869, p. 724.
5. Em nossos dias, ainda há juristas e oficiais de polícia adeptos da tortura. Esta verificação pode ser ilustrada pelo que se lê na revista «VEJA» de 10/12/69, pp. 20-22, donde
extraímos os seguintes trechos:
«Existem, e não são poucos, os que defendem as torturas.
Waldo Bandeira Fraga, quarenta anos, delegado de policia em Niterói, ... as admite abertamente: 'Eles são muito duros. O crimi­noso é gente muito receosa de passar por dedo-duro, ter de enfrentar os amigos depois, entende? Por isso é preciso muito pau em cima deles. Acho que a polícia está certa em agir assim'.
O delegado Eldes Schenini Mesquita, 35 anos, chefe de gabi­nete do Superintendente de Serviços Policiais de Porto Alegre, que é estudante de Direito... é um destes: 'O uso de tais métodos (de tortura) deverá um dia ser abolido, quando se puder fazer, de fato, a coação psicológica através de sistemas eminentemente científicos. O que se condena, é a dosagem em excesso dessa violência' (os grifos são do próprio delegado Schenini, que, pela gravidade de suas opi­niões, preferiu dá-las por escrito) ... No fim da semana passada, num manifesto distribuído por Volkswagens nas ruas centrais do Rio, um grupo de cidadãos que se assinavam com as siglas VAR­-Palmeiras, MR-8 e PCBR criticava veladamente todos os jornais do país e o próprio ministro da Justiça pela campanha iniciada pelo governo contra as torturas.
... Roger Willaume, inspector-geral das polícias civis da França no período da guerra da Argélia, expunha detalhadamente sua posi­ção pró-torturas. Dizia num relatório: 'Os métodos de água e eletri­cidade, desde que cuidadosamente usados, produzem um choque que é mais psicológico do que físico, e não constituem, portanto, cruel­dade excessiva... Esta conclusão, que nos leva de volta a um pas­sado recente e doloroso, pode parecer repugnante. Mas, desde que o problema está em nossas mãos, nós devemos enfrentá-lo com co­ragem'.
Os argumentos dos torturadores soam racionais, lógicos. 'Em nossa opinião, há duas coisas básicas quando se considera a questão das torturas. A primeira é que nós estamos em guerra - uma guerra contra a subversão - e que essas pessoas (isto é, os torturados) são os inimigos... A outra coisa é que uma pessoa com uma ideologia não dá informação 'de presente', teria dito a Peter Kramer, cor­respondente no Rio da revista semanal de informações americana 'Newsweek', alto oficial dos serviços de inteligência brasileiros... Talvez com boa intenção democrática e também com um excessivo zelo pelas idéias com que definem democracia, eles parecem dizer: 'É melhor dar pancadas neste cidadão e obrigá-lo a confessar onde estão os outros terroristas, para evitar que eles matem pessoas ino­centes'».
Os autores cristãos, porém, não hesitam em condenar categoricamente a tortura como até a Alta Idade Média fizeram. Os argumentos em que se baseia a rejeição merecem detida atenção.
3. Tortura? - Não!
1. A aplicação da tortura vem a ser um atentado contra a pessoa humana, tanto da vitima como do carrasco; por isto um procedimento intrinsecamente ou por si mau.
Com efeito, toda pessoa humana tem direito a
a) ser respeitada ou ser tida como inviolável na alma e no corpo. Em conseqüência, tem o direito de não ser maltra­tada fisicamente (desde que não haja evidência de que merece uma pena), como tem o direito de guardar os segredos que esteja obrigada a conservar.

b) Outrossim tem o direito de manter, ou de não con­correr para vilipendiar, a sua reputação.
A Declaração dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 1948, reza no seu artigo VII:
«Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante».
Tais dizeres fazem eco ao artigo 9° da «Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão» votada pela Assembléia Constituinte Fran­cesa aos 26 de agosto de 1789:
«Todo homem se presume inocente antes de ser declarado culpa­do; mas, se a sua prisão for considerada indispensável, todo rigor excessivo na detenção da sua pessoa deverá ser severamente repri­mido pela lei».
O Código de Direito Canônico, inspirando-se neste direito, assim reza
«As pessoas indigitadas têm a obrigação de responder e confessar a verdade ao juiz que as interrogue legitimamente, a menos que se trate de falta cometida pelo próprio sujeito interrogado» (cân. 1743, § 1).
De resto, a jurisprudência eclesiástica, segundo o atual Código de Direito Canônico, não admite o uso de qualquer tipo que seja de coação, para se obter a confissão de uma pessoa suspeita.
2. Se a tortura é intrinsecamente má, ela não pode ser utilizada nem mesmo para se obterem informações que permi­tiriam salvar a vida de pessoas inocentes. O fim não justifica os meios. O que é intrinsecamente mau, fica sendo mau, quais­quer que sejam as circunstâncias em que possa ser aplicado.
3. Verifica-se, de resto, mais e mais algo de que os medi­evais já tinham consciência: a tortura pode, em não poucos ca­sos, obter toda e qualquer confissão (mesmo falha ou mentirosa) de delito sugerida pelos juizes e carrascos. Um inocente então vem a ser apresentado ao público como criminoso e punido como tal; comete-se assim a injustiça sob foros de legalidade e abre-se às autoridades porta para todo tipo de arbitrariedade. Nem se tomam em nossos dias as cautelas que (como dito atrás) os medievais estipulavam em favor do réu.
4. Nos tempos atuais tem-se usado em processos policiais a narco-análise. Esta consiste em que se ministrem ao paciente narcóticos exatamente dosados (as drogas ou o soro «da ver­dade») que colocam o indivíduo num estado intermediário entre a consciência lúcida e o sono; assim a pessoa perde o devido controle de suas palavras e de seus gestos; sofre di­minuição em sua capacidade de autocrítica e torna-se parti­cularmente sugestionável frente ao médico ou operador que pretende dirigi-la. Tal método, aplicado em processos judiciá­rios, constitui um atentado à personalidade humana talvez ainda mais grave do que a tortura. A consciência cristã o re­jeita sem hesitação.
De resto já se disse que o uso de torturas é como uma indústria de desajustados, de tal modo traumatiza psiquica­mente os pacientes:
«O processo de tortura é como uma indústria de desajustados. Cria um clima de terror que age sobre todas as pessoas, inclusive sobre aquelas que não têm envolvimento político. Acentua sintomas e idéias de perseguição. Gera apreensão, expectativa, quase que um pânico generalizado. Cria-se um clima de ansiedade que a gente per­cebe no ar. E esse clima acaba transportando-se para outras áreas não especificamente ligadas ao aspecto político, interferindo na produ­tividade e no relacionamento familiar» (palavras do médico psiquiatra Antônio Sapienza, publicadas por «VEJA» aos 10/12/69, p. 23).
5. Tenham-se em vista os dizeres do S. Padre Pio XII proferidos em um discurso aos participantes do VI Congresso de Direito Penal Internacional (3/10/1953):
«Já o primeiro passo da ação punitiva, a prisão, não pode obede­cer ao capricho, mas deve respeitar as normas jurídicas. Não se pode admitir que até o homem mais irrepreensível possa ser preso arbitrariamente e sumir-se sem mais numa prisão. Mandar alguém para um campo de concentração e conservá-lo nele sem qualquer processo re­gular, é zombar do direito.
A constituição do processo deve excluir a tortura física e psíquica e a narco-análise, primeiro por lesarem um direito natural, mesmo se o acusado é realmente culpado, e, depois, por muitíssimas vezes da­rem resultados errôneos. Não raro, de fato, levam exatamente às confissões desejadas pelo tribunal e à condenação do acusado, não por este ser culpado em verdade, mas porque a sua energia física e psíquica está esgotada e ele se encontra pronto a fazer toda espécie de declarações que desejem. ‘Antes a prisão e a morte que tal tortura física e psíquica!’ Deste estado de coisas encontramos abundantes provas nos processos espetaculares bem conhecidos, com as suas con­fissões, as suas auto-acusações e os seus pedidos de castigo inexorável.
Há 1.100 anos aproximadamente, em 866, o grande Papa Nicolau I respondia da maneira seguinte a um dos pedidos dum povo que acabava de entrar em contato com o Cristianismo:
'Se um ladrão ou salteador é apanhado e nega o que lhe imputam, afirma-se entre vós que o juiz lhe deve bater na cabeça e atravessar­-lhe os lados com pontas de ferro até ele dizer a verdade. Mas isto nem a lei divina nem a humana o admite: a confissão não deve ser forçada, mas espontânea; não deve ser extorquida, mas voluntária; afinal, se acontece que, depois de se terem infligido estas penas, nada absolutamente se descobre do que se, lhe imputava, não vos enver­gonhais, nesta altura ao menos, e não reconheceis quanto foi ímpio o vosso julgamento? Do mesmo modo, se o acusado, não podendo suportar tais torturas, confessa crime que não cometeu, dizei-me: Quem fica responsável de tal impiedade senão quem o constrangeu a semelhante confissão mentirosa? Mais ainda, todos sabem que, se alguém profere com os lábios o que não tem no espírito, não confessa; fala apenas. Renunciai, portanto, a estas coisas e amaldiçoai do fundo do coração o que, até o presente, tivestes a loucura de praticar; com efeito, que fruto tirastes então daquilo de que agora vos envergo­nhais?...'
Qual de nós não desejaria que, durante o longo intervalo decor­rido desde então, a justiça não se tivesse jamais afastado desta regra! Ser necessário hoje recordar advertência feita há 1.000 anos, é triste sinal das aberrações do procedimento judicial no século XX.
Entre as garantias da ação judicial, conta-se também a possibi­lidade, para o acusado, de se defender realmente, e não só na apa­rência. Deve-se-lhe permitir, a ele e ao seu defensor, apresentar ao tribunal tudo quanto depõe em seu favor; é inadmissível que a defesa não possa dizer senão o que agrada ao tribunal e a uma justiça parcial» (transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira» XIII [19531, pp. 979s).
As palavras de Pipo XII, sintetizando o pensamento da Igreja sobre torturas, têm em nossos dias plena atualidade.
Pequena bibliografia:
Pio XII, Discurso ao VI Congresso de Direito Penal Internacio­nal (3/10/1953), em «Revista Eclesiástica Brasileira» XIII (1953) pp. 979s.
Fiorelli-Palazzini, «Tortura», em «Enciclopedia Cattolica». Città del Vaticano XII, cols. 337-343.
B. Haering, «La Loi du Christ», vol. 3. Paris 1959, p. 685.
A. Mellor, «La torture». Paris 1949.
Fr. Helbing, «Die Tortur». Berlin 1926.
«Torturas», em «Veja» n9 66, 10/12/1969, pp. 20-27.
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NOTA:
[1] Veja-se a íntegra do texto à página 27(75)s.
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Consciência e moralidade: consciência e lei
(Revista Pergunte e responderemos, PR 112/1969)
«‘Cada um de nós será julgado por Deus de acordo com a sua consciência.
O critério para formar a nossa consciência é a Mensagem Evangélica de Libertação Total do Homem em Cristo, pela qual exprimimos a imagem de Deus.
Para exprimirmos a imagem de Deus em nós, todas as coisas, mesmo a Lei Natural e a Autoridade do Papa, servem de instrumentos’.
Que dizer a respeito?»
Resumo da resposta: A consciência moral é a faculdade que regula, de imediato, os atos humanos, tachando-os de lícitos ou ilí­citos. Por isto, sem dúvida, cada homem será julgado segundo a consciência.
Acontece, porém, que a consciência não é autônoma, mas, sim, teônoma. Compete-lhe considerar a Lei de Deus e aplicá-la à conduta do respectivo sujeito. Ora a Lei de Deus se manifesta por sinais objetivos e sensíveis, como são a lei natural e o magistério da Igreja. Dai a obrigação que a todo cristão compete, de se orientar por aquela e por este.
A lei natural é o reflexo da lei eterna de Deus impregnado na natureza humana. É imutável como a natureza humana é imutável. Apenas se pode dizer que nem sempre a humanidade esteve em con­dições de perceber tudo que a lei natural implica em seu preceito fundamental: «Faze o bem, evita o mal».
O magistério da Igreja é infalível quando se trata de definições de um Concilio Ecumênico ou do Sumo Pontífice (ao falar «ex cathedra») ou ainda quando se trata do ensinamento unânime de todos os Bispos unidos ao Sumo Pontífice. Os pronunciamentos papais que não são «ex cathedra», mas se fazem por meio de encíclicas e bulas, merecem respeito e reverência; o seu grau de obrigatoriedade se depreende das palavras mesmas do respectivo documento; às vezes o Papa intenciona dirimir uma questão controvertida; outras vezes, não quer senão indicar um roteiro para ulteriores estudos.
Dizia Jean-Jacques Rousseau no século XVIII: «Consciência! Consciência! Instinto divino! Juiz infalível do bem e do mal... » Ao que outro filósofo racionalista, Diderot, replicava que bem se sabia que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua consciência em seu favor!
---X---
Resposta: As idéias da questão acima voltam freqüen­temente à baila, principalmente quando se trata de aceitar alguma decisão do magistério da Igreja. Vamos analisá-las com serenidade, considerando sucessivamente: 1) o que é a consciência moral, 2) quais os critérios segundo os quais ela se deve formar, 3) a atitude dos cristãos frente ao magistério da Igreja.
1. Que é a consciência moral ?
A consciência moral é o julgamento íntimo pelo qual defi­nimos a moralidade de nossos atos.
Ora a moralidade é a relação dos atos humanos com o seu Fim Supremo, que é Deus. Não há Moral autêntica sem relacionamento com Deus, pois o homem é naturalmente orde­nado para Deus.
Por conseguinte, a consciência moral vem a ser o julga­mento íntimo pelo qual reconhecemos que tal ou tal ato é conforme à Lei de Deus ou é moralmente lícito; ou reconhe­cemos que é incompatível com a Lei de Deus ou moralmente ilícito. Todo homem, por mais primitivo que seja, possui cons­ciência moral.
A afirmação de que não há Moral sem Deus, é corroborada pelo próprio Jean-Paul Sartre, representante máximo do existencialismo ateu. Este autor faz questão de mostrar que é inconsistente a «Moral leiga» (ou sem Deus):
«O existencialista é muito oposto a um certo tipo de moral leiga que deseja suprimir Deus com o mínimo de inconvenientes possível. Quando em 1880 alguns professores franceses tentaram constituir uma moral leiga, disseram mais ou menos o seguinte:
‘Deus é uma hipótese inútil e pesada; suprimamo-la; mas é necessário, para que haja uma Moral, uma sociedade, um mundo policiado, ... é necessário que certos valores sejam levados a sério
e considerados como existentes de maneira absoluta; faz-se mister seja obrigatório em absoluto que sejamos honestos, não mintamos, não espanquemos nossas esposas, tenhamos filhos, etc., etc. ... Por conseguinte, vamos fazer um trabalhinho que permitirá mostrar que esses valores existem apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora Deus não exista’.
Com outras palavras - e esta é, creio, a tendência de tudo que em França se chama radicalismo - nada será mudado, se Deus não existir; encontraremos as mesmas normas de honestidade, de pro­gresso, de humanismo, e teremos feito de Deus uma hipótese ultra­passada, que morrerá tranqüilamente e por si. Ao contrário, o exis­tencialismo julga que é muito incômodo que Deus não exista, pois com Ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores num céu inteligível. Não pode haver nenhum bem absoluto, já que não há consciência infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é preciso ser honesto, que é ne­cessário não mentir, pois então precisamente nos colocamos num plano em que há somente homens. Dostoievsky escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. É este o ponto de partida do existencialismo» («L'existencialisme est-il un humanisme?», 1946, pág. 34-36).
A capacidade de julgar os atos humanos está impregnada na natureza anteriormente a qualquer deliberação da pessoa ou a qualquer convenção da sociedade. Por isto se diz que é uma voz não humana, mas superior ao homem; é a voz do Criador gravada na natureza, voz que indica constantemente ao homem o caminho de volta ao seu Princípio ou a via pela qual ele se deve dirigir para o seu Bem Supremo.
Pode-se dizer também que a consciência é o encontro de Deus e do homem. O Concílio do Vaticano II lembra que «a consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa a voz de Deus» (Const. «Gaudium et Spes» n° 16). Toda a vida moral pode ser concebida como um diálogo entre o Criador e a criatura: Deus chama o homem à conversão, e o homem lhe responde, positiva ou negativamente, mediante atitudes derivadas de sua consciência.
Todos os povos tiveram a convicção de que o homem ouve a voz do Bem no seu coração. Essa voz não pode ser a da vontade humana, pois há por vezes conflito entre a vontade humana e, esse testemunho interior, que se chama consciência.
Ovídio († 17 d. C.) dizia ser essa voz «Deus in nobis» (Deus em nós). Epicteto († 138 d. C.) a tinha como «guia supremo» nas decisões morais. Sêneca († 65 d. C.) falava de «Deus perto de ti, contigo, em ti», e acrescentava: «Em nós habita um espírito santo, que observa o bem e o mal».
O Cristianismo embora tenha o conceito de Deus trans­cendente (não identificado com o homem), admite também que é Deus quem fala a cada pessoa através da voz da cons­ciência.
Destas considerações se seguem duas conclusões impor­tantes:
1) O homem será realmente julgado segundo a sua cons­ciência, pois esta é o reflexo imediato da Lei de Deus; é em sua consciência que o homem reconhece o bem e o mal, o que deve fazer... Desobedecer à consciência, quando esta manda ou proíbe alguma coisa sem hesitação ou com segurança, é desobedecer ao próprio Deus.
2) «Sem hesitação ou com segurança... » Isto significa que a consciência está obrigada a procurar informar-se ou ter certeza a respeito da vontade de Deus. Ora Deus se manifesta por sinais objetivos, extrínsecos ao homem. Tais sinais são:
a lei natural, para todos os homens;
a Revelação cristã, para os cristãos.
Vê-se, pois, que não compete ao homem conceber as leis da Moral segundo critérios meramente pessoais; não são as conveniências nem o bom senso puramente subjetivo do indi­víduo que fazem as categorias do bem e do mal. Todo homem é teônomo (regido por Deus); ninguém é autônomo (regido por si próprio). Cada ser humano é destinado a tornar-se uma nota harmoniosa numa maravilhosa sinfonia cujo autor e re­gente é o próprio Deus. Ninguém se explica por si mesmo; ninguém tem sua razão de ser em si, mas, ao contrário, todo homem encontra no plano de Deus e no «integrar-se nesse plano» a sua justificativa e a sua grandeza. Por conseguinte, à consciência de cada indivíduo toca o dever de obedecer à vontade de Deus expressa de maneira objetiva.
Numa palavra: a consciência humana não está acima da lei natural e da Revelação Divina, mas, ao contrário, é sujeita a ambas, devendo-lhes obediência.
A respeito da «libertação total» trazida por Cristo aos homens, note-se que é tema que São Paulo explana com grande empenho (cf. Gá1 5,1). Consequentemente, deve ser entendida no sentido que o Apóstolo mesmo lhe atribui. Ora a libertação, segundo São Paulo, consiste em que o homem se emancipe do pecado e das paixões (cf. Rom 6,20-22; 7,17.25; 8,2) ; consiste também na ab-rogação da Lei de Moisés, que colocava os judeus sob o regime do temor mais do que do amor (cf. Gál 4,1-7; Rom 8,15-17). O cristão, porém, assim libertado, não deixa de ser um servo de Cristo (cf. 1 Cor 7,22s; 9,21), servo de Cristo que toma conhecimento da von­tade do Senhor através da Igreja visível e do magistério dessa Santa Igreja:
«Irmãos, permanecei firmes e conservai as tradições que de nós recebestes, tanto por palavra como por carta» (2 Tes 2,15).
«Felicito-vos, irmãos, porque em tudo vos lembrais de mim e guardais as instruções como eu vo-las transmiti» (1 Cor 11,2).
«Se, apesar disto, alguém pretender discutir, nós não temos tal costume, nem o têm as igrejas de Deus» (1 Cor 11,16).
«Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de vos não reunir­des para vossa condenação. O resto, quando aí for, eu o resolverei» (1 Cor 11, 34).
É conformando-se a Deus, manifestado autenticamente pelo mistério da Encarnação e da Igreja (pelo mistério do Corpo de Cristo), que o cristão se liberta do pecado e do velho homem, e se torna em plenitude imagem de Deus.
Diga-se agora uma palavra mais minuciosa sobre as re­lações da consciência com a lei natural e com o magistério da Igreja (órgão que exprime a Revelação Divina).
2. Consciência e lei natural
A lei natural é a expressão da vontade de Deus, expressão que o próprio Deus incutiu à natureza humana. Com efeito, todo homem possui em seu íntimo a consciência de que deve fazer o bem e evitar o mal. Deste princípio ele deduz as con­seqüências: não matar, não roubar, não violar a castidade, respeitar as leis do organismo, colocar o dever acima do pra­zer, etc.
A lei natural é sempre a mesma, imutável, pois a natu­reza humana permanece idêntica a si mesma através dos tempos, com sua inteligência, sua vontade, suas faculdades sensíveis e suas aspirações... Ela dita, portanto, ao homem sempre os mesmos princípios.
Embora a lei natural não mude, verificam-se diversos graus de compreensão da mesma através da história: os ho­mens anteriores a Cristo tinham consciência, de certo modo, infantil; percebiam menos do que o homem moderno todas as finuras do preceito fundamental: «Faze o bem, evita o mal»; por isto, praticavam atos que hoje diríamos moralmente maus, mas que outrora não eram sempre percebidos como tais.
Como exemplo, pode-se citar a observância da lei do talião: «Dente par dente, olho por olho...» Para os homens primitivos, tal fórmula já era muito exigente; e isto, a dois títulos:
- impedia que a pessoa danificada se compensasse, infligindo ao adversário dano maior do que o que recebera;
- valia para todos os componentes da tribo ou população, tanto pequeninos e humildes como chefes e maiorais; estes não ficavam isentos de sanção para as suas culpas.
Pode acontecer também (é o que se dá freqüentemente em nossos dias) que os homens violem certos preceitos da lei natural (máxime os que concernem ao sexo) com «tranqüi­lidade de alma», como se não os conhecessem. Não seria isto uma prova de que realmente não há mandamentos ditados pela natureza a todos os homens? - Não; tal «tranqüilidade» se deve geralmente a um embotamento da consciência; esta, sendo freqüentemente contraditada e sufocada pelo próprio sujeito ou pelo ambiente em que vive, deixa de se fazer ouvir; tal silêncio vem a ser produto de violência, não podendo ser levado em conta para se avaliar o que é realmente a natureza humana. Na verdade, todo homem que não sofra influência deletéria, ouve em seu íntimo as mesmas normas espontâneas da lei natural.
Por conseguinte, a lei natural fica sendo norma objetiva da moralidade, norma capaz de regrar a conduta do homem em toda e qualquer situação.
Resta agora considerar outro aspecto - ainda mais deli­cado - da questão:
3. Consciência moral e magistério da Igreja
1. A Igreja não é uma sociedade meramente humana, mas, é o Corpo Místico de Jesus Cristo. Nela Cristo está pre­sente e vivo, não somente porque seus fiéis O conhecem e amam, mas de maneira própria, dita «sacramental»; o Senhor prolonga o mistério da Encarnação, difundindo a sua vida nos homens através dos sinais visíveis de sua Igreja. É impassível separar Cristo e a Igreja que dele se deriva ininterruptamente através dos Apóstolos e da sucessão apostólica até nossos dias.
Por isto o cristão procura «sentir com a Igreja», vibrar e pulsar com Ela.
2. Cristo confiou à sua Igreja o poder e a missão de ensinar, como se depreende de várias passagens bíblicas:
«Foi-me dado todo poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações..., ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo» (Mt 28,18-20).
«Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio» (Jo 20,21).
«Recebereis a força do Espírito Santo, e sereis minhas testemu­nhas em Jerusalém, em toda a Judéia, na Samaria e até os confins da terra» (At 1, 8).
Ao magistério da Igreja Cristo quis garantir a sua assis­tência infalível, a fim de que não ensine erro algum em ma­téria de fé e costumes. É o que decorre das palavras do Senhor atrás citadas, principalmente da promessa: «Estou convosco todos os dias até o fim do mundo». A expressão «Estou con­vosco», na Bíblia Sagrada, é freqüentemente atribuída a Deus quando o Senhor confia uma tarefa importante e difícil aos homens; significa que Deus garante o sucesso da obra empre­endida. Tenham-se em vista passagens como
Ex 3,10-12: «Disse o Senhor a Moisés: 'Vai envio-te a Faraó para que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel'. Moisés disse a Deus: 'Quem sou eu para ir ter com Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito?' Deus respondeu: 'Eu estarei contigo...'»
Jz 6, 14-16: «O Senhor... disse a Gedeão: 'Vai, e, com essa força que tens, liberta Israel das mãos de Madiã. Porventura. não sou eu que te envio?' Gedeão respondeu: 'ó Senhor, com que libertarei Is­rael? Minha família é a última de Manassés e eu sou o menor da casa de meu pai'. O anjo do Senhor disse-lhe: 'Eu estarei contigo e tu derrotarás os de Madiã como se fossem um só homem'».
Jer 1, 8.19: «Disse o Senhor a Jeremias: 'Não os temas, porque estarei contigo para te livrar - oráculo do Senhor... Eles comba­terão contra ti, mas não vencerão, porque Eu estarei contigo para te proteger - oráculo do Senhor'».
Cf. também Gen 21, 22; 26, 3; 31, 35; Jo 3, 2; At 10, 38.
Note-se também a promessa, feita a Pedro, de que as forças do inferno ou do mal não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16.18). A Igreja é assim «a coluna e a base da ver­dade» (1 Tim 3,15),
Em conseqüência, Jesus não receia identificar-se com os discípulos quando exercem o seu ministério:
«Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos despreza, a Mim des­preza. Ora quem Me despreza, despreza Aquele que Me enviou» (Le 10,16).
«Quem vos recebe, a Mim recebe. E quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou» (Mt 10, 40).
Poder-se-iam multiplicar os textos bíblicos que asseguram a infalibilidade do magistério da Igreja.
3. O magistério infalível da Igreja se exerce de duas formas:
a) de maneira ordinária: é o que ocorre quando os Bispos, em união com o Romano Pontífice, ensinam uma dou­trina de fé ou de moral, intencionando propô-la como verdade ou norma obrigatória para todos os fiéis.
Quanto ao magistério ordinário do Romano Pontífice, note-se o seguinte: seus, ensinamentos, ainda que não sejam proferidos «ex cathedra» ou de maneira extraordinária, me­recem acatamento exterior e interior. Jesus rogou especial­mente por Pedro, e mandou-lhe confirmasse seus irmãos na fé (cf. Lc 22, 32). - O Papa pode manifestar-se por meio de encíclicas, (são os documentos mais solenes do magistério papal), bulas, «Motu proprio» ou outros pronunciamentos. O grau de acatamento que cada um desses documentos merece, deve-se depreender da intenção mesma do Sumo Pontífice revelada pelas palavras utilizadas no respectivo documento: às vezes, Sua Santidade tem a intenção de dirimir de maneira definitiva certas dúvidas; outras vezes, intenciona apenas pro­por à reflexão e ao estudo determinadas doutrinas.
A propósito vêm as palavras do Concílio do Vaticano II:
«Os Bispos, quando ensinam em comunhão com o Romano Pon­tífice devem ser respeitados por todos como testemunhas da verdade divina e católica. Devem os fiéis acatar uma sentença sobre a fé e a moral proferida por seu Bispo em nome de Cristo, e devem ater-se a ela com religioso obséquio do espírito. Esta religiosa submissão da vontade e da inteligência deve de modo particular ser prestada com relação ao autêntico Magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala 'ex cathedra'. E isso, de tal forma que seu magistério su­premo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e vontade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da índole dos documentos ou da freqüente proposição de uma mesma doutrina ou de sua maneira de falar» (Const. «Lumen Gentium» n.º 25).
b) de maneira extraordinária: é o que se dá por oca­sião das definições solenes emanadas de um Concílio Ecumênico ou de um pronunciamento «ex cathedra» do Bispo de Roma.
Deve-se frisar que o magistério infalível da Igreja não se limita aos casos de definições extraordinárias, pois estes são raros na história da Igreja. Se somente em tais ocasiões o magistério fosse infalível, falha teria sido a obra de Cristo.
O magistério ordinário, constante e universal dos Bispos e, em particular, do Bispo de Roma, é o órgão autêntico pelo qual Cristo continua a ensinar aos homens através dos séculos. É claro, porém, que os Bispos, ao se pronunciar, não têm sempre em mira ensinar teses definitivas e irreformáveis. A autoridade de suas proposições deve-se depreender do texto das fórmulas que utilizam; a cada qual, porém, se deve prestar o acatamento respectivo.
4. Ademais o cristão não se deve preocupar com casu­ística e minimalismo em matéria de adesão à Igreja. Importa­-lhe ser membro do Corpo Místico de Cristo não apenas pelo cumprimento de suas estritas obrigações, mas também pelo seu modo íntimo de sentir e pulsar com a Igreja; é a vida da Igreja - a qual é a vida do próprio Cristo - que o cristão procura prolongar e fecundar em seu íntimo. Em uma pala­vra: o cristão adere à Igreja não somente por vínculos jurí­dicos, mas também por uma comunhão de amor e vida; em­penha-se por assimilar a mente da Igreja, e não apenas a letra de seus pronunciamentos.
Para se ilustrar quanto são mesquinhos a casuística e o minimalismo em relação ao magistério da Igreja, pode-se citar a história do jansenismo.
Em 31 de maio de 1653, o Papa Inocencio XI condenou cinco pro­posições da obra «Augustinus» de Jansênio, a saber:
1) Há mandamentos de Deus que, por falta da graça necessária, não podem ser observados nem mesmo pelos justos;
2) O homem, na condição atual, não pode resistir à graça in­terior.
3) Mérito e demérito pressupõem somente liberdade de coação física, não liberdade de necessidade interna.
4) Os semipelagianos erraram, ensinando que a vontade humana pode ou resistir à graça ou aderir a ela.
5) É um erro semipelagiano afirmar que Cristo morreu por todos os homens.
Os jansenistas responderam a esta condenação, dizendo que o Papa tinha toda razão de condenar tais sentenças, pois eram eviden­temente heréticas. Acrescentavam, porém, que eles não as entendiam no sentido em que o Papa as entendera e condenara. Por isto, conti­nuaram a ensinar as falsas doutrinas acima.
Em sua sutileza de espírito, quiseram também distinguir entre a «quaestio iuris» e a «quaestio facti» (questão de direito e questão de fato). Diziam, pois, que a Igreja é infalível quando decide se tal ou tal doutrina em si é herética ou não; mas não é infalível quando julga se tal ou tal teólogo professa essa doutrina; neste último caso, frisavam, a Igreja não pode exigir um consentimento interno, mas apenas um silencio obsequioso.
Assim, recorrendo a cavilações, os jansenistas solapavam o ma­gistério da Igreja, embora mantivessem um respeito formal (ou vazio) ao mesmo.
O jansenismo tem sido bastante repudiado até os nossos tempos; causou grandes males à Igreja. É para desejar que a casuística e o minimalismo dos jansenistas em relação ao magistério da Igreja não revivam em nossos dias.
5. Mais: o discípulo de Cristo sabe que Deus falou e fala aos homens por meio dos homens e de sinais objetivos compreensíveis a todos. O mistério da Encarnação (ou de Deus que se faz homem para se revelar sensivelmente) domina toda a história da salvação, marcando-a profundamente tanto antes como depois de Cristo. Deus não quis que a sua palavra ficasse entregue à arbitrariedade de cada um dos respectivos ouvintes ou leitores, pois destarte se esfacelaria o depósito da Revelação.
A história ensina que a Reforma luterana, apregoando o livre exame, ou seja, a livre interpretação das Escrituras e da Palavra de Deus, se fundamentou no mais inconsistente dos princípios: se Lutero atribuiu a si mesmo o direito de interpretar a Palavra de Deus segundo o seu bom senso sub­jetivo, os discípulos de Lutero, segundo a escola mesma do mestre, arrogaram a si análogo direito: desvincularam-se de Lutero fundando novas e novas denominações religiosas; dei­xaram a Reforma de Lutero para fazer reformas da reforma.
O princípio do livre exame abre, pois, a porta para todo sub­jetivismo, além de contradizer às afirmações bíblicas que ga­rantem ao magistério da Igreja a infalível assistência do Es­pírito Santo.
Requer-se, pois, que o cristão dê adesão aos pronuncia­mentos do magistério da Igreja inspirando-se, antes do mais, em sua fé. É a fé que introduz o homem na Igreja e somente a fé o sustenta. «O justo vive da fé», diz três vezes São Paulo (Rom 1,70; Gál 3,11; Hebr 10,38). Não se pode pretender viver a vida cristã recorrendo apenas a critérios de razão e sabedoria humanas.
6. Eis algumas considerações que a propósito da auto­nomia da consciência se podem tecer nesta hora, em que tanto se valoriza o julgamento pessoal de cada indivíduo em matéria religiosa.
Para terminar, sejam aqui citadas as palavras valiosas do Cardeal Charles Journet, um dos grandes teólogos de nossos dias, que escreveu sobre o debatido assunto:
«É um contra-senso, para um filho da Igreja, opor à autoridade da encíclica a infalibilidade de sua consciência individual. Nenhuma consciência é infalível. A consciência exige ser formada; cada um de nós é responsável diante de Deus pela formação mesma de sua pró­pria consciência. 'Se a luz que está em ti, é trevas, quão espessas serão as próprias trevas?' (Mt 6,23). São Paulo, tão seguro do Evan­gelho que anunciava ao mundo, recusava-se a julgar a si próprio: 'É verdade que de nada me acusa a consciência; contudo nem por isto sou justificado; meu Juiz é o Senhor' (1 Cor 4,4)».
Journet, a seguir, cita e comenta a frase do filósofo Jean­-Jacques Rousseau († 1778)
«Consciência! Consciência! Instinto divino! Juiz infalível do bem e do mal ... »
Diante destas exclamações, Diderot, outro filósofo nacio­nalista, contemporâneo de Rousseau, observava que bem se sabia que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua consciência em seu favor!,
(Veja-se «SEDOC» n° 8, fevereiro de 1969, col. 1150).
Estes tópicos chamam a atenção para a necessidade que incumbe a todo cristão sincero, de procurar formar a sua consciência segundo as normas objetivas pelas quais Deus se comunica aos homens.; em caso contrário, pode ser vítima de ilusões. A tarefa de ouvir a Deus mediante os homens é, por vezes, molesta e árdua. É preciso lembrar, porém, que ninguém se torna grande. sem superar a si mesmo, sem aceitar coisas duras, a fim de ser coerente com a doação generosa a uma Grande Causa!
O tema «consciência» tem sido longamente estudado nos últimos anos em vista das novas teorias disseminadas pela Ética da situação. Da ampla bibliografia, podem-se recomendar:
Jean-Marie Aubert, «Loi de Dieu, Lois des hommes», em «Le Mystère Chrétien» n° 7. Desclée 1964.
Philippe Delhaye, «La Conscience Morale du Chrétien», em «Le Mystère Chrétien» n° 4. Desclée 1964.
Bernhard Haring «A Lei de Cristo». São Paulo 1960, t. I, pág. 198­-255 e t. II, pág. 78-82.
«Pergunte e Responderemos» 40/1961, pág. 160-179.
O assunto foi reavivado pelos debates em torno da encíclica «Hu­manae Vitae)». O documentário referente a tais debates se encontra colecionado em «SEDOC» n.° 8, fevereiro de 1969.
APÊNDICE
Na audiência geral de 12/11/69, o S. Padre Paulo VI pro­feriu importante alocução sobre «consciência», alocução da qual vão aqui transcritos os seguintes tópicos:
«É preciso façamos uma observação sobre a supremacia e exclu­sividade que hoje se quer atribuir à consciência na orientação do comportamento humano. Ouve-se freqüentemente repetir, como afo­rismo indiscutível, que toda a moralidade do homem deve consistir em seguir a própria consciência. Afirma-se isto para emancipar o homem tanto das exigências de uma norma extrínseca quanto da obediência a uma autoridade que queira ditar a lei à atividade livre e espontânea do homem; este (dizem) deve ser a sua própria lei, deve ser independente de qualquer intervenção em seu agir. Nada de novo diremos àqueles que vêem nesse principio a norma de sua vida moral, se lhes afirmamos que ter por guia sua própria consciência não somente é coisa boa, mas é também um dever. Quem age contra a consciência, está fora do reto caminho (cf. Rom 14, 23).
Mas é preciso, antes do mais, realçar que a consciência, em si mesma, não é arbitra do valor moral dos atos que ela sugere. A consciência é a intérprete de uma norma interior e superior; ela não cria por si essa norma. Ela é iluminada pela intuição de certos prin­cípios normativos, inatos na razão humana (cf. S. Tomás, Suma Teo­lógica I 79,12 e 13; 1111 94, 1). A consciência não é a fonte do bem e do mal; ela é a audição, a ausculta de uma voz que se chama muito adequadamente ‘a voz da consciência’; ela lembra a conformidade que uma ação deve ter com uma exigência extrínseca ao homem, a fim de que o homem seja verdadeiro e perfeito. Isto quer dizer que a consciência é a intimação subjetiva e imediata de uma lei, que nós devemos chamar natural, ainda que muitos hoje já não queiram ouvir falar de lei natural. Não é a relação com essa lei, compreendida em seu significado autêntico, que faz nascer no homem o senso dres­ponsabilidade? E, com o senso de responsabilidade, ... o senso da boa consciência e do mérito, ou do remorso e da culpa? Consciência responsabilidade são dois termos ligados um ao outro.
Em segundo lugar, devemos observar que a consciência, para ser válida norma da atividade humana deve ser reta, isto é, segura de si mesma e verídica, não incerta, não culpavelmente errônea. Infeliz­mente esta última hipótese ocorre facilmente, dada a fraqueza da razão humana quando é deixada a si mesma, quando não é educada.
A consciência precisa de ser educada. A pedagogia da consciência é necessária... A consciência não é a única voz que possa orientar a atividade humana; a sua voz se esclarece e corrobora quando a voz da lei e, portanto, a da autoridade legítima se unem à sua voz. A voz da consciência, por conseguinte, não é sempre infalível, nem objeti­vamente suprema. E isto e muito particularmente verdade no domínio da atividade sobrenatural em que a razão não basta para interpretar a voz do bem, mas deve recorrer à fé para ditar ao homem a norma da justiça desejada par Deus mediante a revelação: «O homem justo, diz São Paulo, vive da fé» (Gál 3,11). Para caminharmos em linha reta, quando andamos de noite, isto é, quando progredimos no mis­tério da vida cristã, os olhos não bastam; é necessária a lâmpada, é necessária a luz. E essa luz de Cristo não deforma, não mortifica, não contradiz a luz da nossa consciência, mas ela ilumina a nossa consciência, tornando-a apta a seguir o Cristo no caminho reto de nossa peregrinação em demanda da visão eterna.
Procuremos, pois, agir sempre com uma consciência reta e forte, iluminada pela sabedoria de Cristo».
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Quarta-feira, 13 de Junho de 2007

Consciência e moralidade: censura da arte
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 101/1968)
«Que dizer da atual controvérsia relativa à cen­sura... censura do teatro, do cinema, da televisão e da lite­ratura?
Quem tem razão: os adeptos ou os adversários da cen­sura?»
Nas páginas que se seguem, recolheremos sob quatro grandes títulos as principais objeções que se levantam contra a censura em nosso país, e procuraremos propor algumas con­siderações a propósito.
1. Paternalismo ou maioridade?
1) «O povo é de maioridade; não precisa de censores do governo. É na bilheteria que se faz a censura».
Resposta: Logo de início deve-se notar que é esta, por certo, a réplica que mais pesa em prol da campanha contra a censura. Vivemos em sociedades que rejeitam decisivamente todo e qualquer tipo de paternalismo, isto é, de ingerência de um poder forte e «bonzinho» em assuntos que poderiam ser solucionados pelos indivíduos.
Em verdade, não se deve aceitar o paternalismo na me­dida em que tire aos cidadãos a responsabilidade ou a capa­cidade de agir e julgar como pessoas maduras.
Todavia no que se refere à censura de teatro, cinema, etc., impõem-se as seguintes considerações:
É preciso, inegàvelmente, que as autoridades públicas res­peitem a liberdade de consciência dos cidadãos; reconheçam a cada um o direito de formar seu juízo pessoal a respeito das ocorrências da vida social. Se alguém quer viver viciosa ou debochadamente, as autoridades civis não têm a obrigação nem o direito de intervir na consciência dessa pessoa. Não é lícito, portanto, aos governos civis constranger seus súditos em matéria de filosofia e Religião. - Foi o que o Concilio do Vaticano II houve por bem declarar em seu documento refe­rente à Liberdade Religiosa; cf. «P. R.» 97/1968, qu. 1.
Todavia compete a todo governo civil o estrito encargo de promover o bem comum da sociedade e profligar tudo que a este, de certo modo, contradiga ou se oponha. Ora o teatro, o cinema, a televisão e a literatura são meios de comunicação que afetam profundamente a vida pública. São, para muitos e muitos cidadãos (conscientes ou inconscientes disto), ver­dadeira escola de «filosofia da vida» e de moral; quem vai ao teatro, vai para ver e ouvir durante horas a fio, colocan­do-se de antemão (talvez inconscientemente) em atitude de receptividade. Os exemplos apresentados pelos espetáculos públicos facilmente tornam-se «ideais» de vida e susci­tam nos espectadores o desejo de imitar, reproduzir... ao menos algo da conduta dos heróis da cena. Em suma, o teatro e o cinema lançam a moda, tornam-se paradigmas. Não é necessário insistir no extraordinário poder sugestivo de que desfrutam.
Por isto é que pode tocar ao governo civil a tarefa de vigiar para que os divertimentos propostos ao público não se desvirtuem, tornando-se escolas de crimes, deboche, vícios, ruptura de lares, infelicidade social, etc. - Assim como o Estado tem o direito e o dever de controlar a higiene pública ou os meios de saúde física de seus cidadãos, tem também o direito e a obrigação de se interessar pelos órgãos de publici­dade que influem, favorável ou desfavoràvelmente, sobre a saúde mental e moral da sociedade.
Essa necessidade é tanto mais compreensível quanto se sabe que hoje os divertimentos são muitas vezes intencional­mente explorados para fins comerciais. Empresários e autores menosprezam as conseqüências deletérias que de seus espetá­culos decorram, desde que prevejam apreciável lucro finan­ceiro. Conhecedor de tal situação, o Estado não exorbita de suas atribuições, quando institui a censura de peças teatrais e cinematográficas...
Em réplica a estas considerações, talvez diga alguém:
2. Bem e mal: categorias subjetivas
2) «O bem e o mal moral são categorias subjetivas; variam segundo a apreciação de cada indivíduo».
Resposta: Em Moral, existem padrões objetivos do bem e do mal, válidos para todo e qualquer homem. Estes padrões objetivos são os ditames da lei natural, que todo indivíduo ouve dentro de si, queira-o ou não, independentemente de sua cultura ou época. - Aplicando esta afirmação ao nosso caso, deveremos dizer: a natureza deu ao homem a função sexual a fim de que os seres humanos se unam em matrimônio e se reproduzam sobre a terra. Por conseguinte, toda excitação sexual que se realize fora do casamento ou sem ordenação à procriação, vem a ser um abuso que a consciência de todo homem naturalmente profliga. Esse abuso é, objetivamente falando, um mal, um mal que não pode ser proposto ao público como se fosse algo de tolerável ou simplesmente como matéria de deleite e divertimento para os espectadores.
Todavia nova objeção se faz ouvir:
3. A autonomia da arte
3) «A arte está emancipada da Moral; é um valor que deve ser cultivado autonomamente».
Resposta: Deve-se reconhecer que a arte não é por si ordenada a um fim ulterior, não é propriamente instrumento para se conseguirem objetivos de índole diversa. Não se re­quer, por conseguinte, que a arte, ao representar o belo, tenha em vista outra finalidade que não a de exibir um objeto digno da contemplação dos espectadores. É neste sentido que se entende a autonomia da arte.
Todavia note-se que a arte e a atividade artística não existem em si mesmas, mas estão sempre localizadas em deter­minado sujeito humano (artista ou artífice). Ora a atividade artística aperfeiçoa o homem apenas segundo um aspecto res­trito, isto é, na medida em que ele tem senso musical, poético, pictórico, literário, e faz vibrar esse senso de acordo com as regras da música, da poesia, da pintura, da estilística, etc. A arte torna o homem bom músico ou bom poeta...; não o faz, porém, homem bom ou perfeito. É a Moral que torna o homem bom simplesmente dito, ou bom no seu aspecto essen­cial, isto é, enquanto é um ser inteligente destinado a conhecer a Verdade Suprema e amar o Bem Infinito.
Por isto é que o exercício da arte deve estar subordinado à Moral, ou seja, às leis que norteiam a conduta do homem, de modo que seja um homem bom ou perfeito e chegue ao seu Fim Supremo ou a Deus. Todo homem normal pode e deve tender a ser um homem moralmente bom; o aperfeiçoamento moral é a tarefa mais importante de cada ser humano, tarefa sem a qual não se justificam as demais atividades do homem, nem mesmo as atividades artísticas. Donde se vê mais uma vez que a arte, como qualquer outra função humana, tem de ser dirigida pela consciência moral ou pelos ditames da lei natural de que falava a resposta à objeção n° 2 deste artigo. O artista que cultivasse a Arte como um bem absoluto, inde­pendente de qualquer outro, estaria adorando um ídolo ou muitos ídolos...
Em linguagem sucinta e precisa, pode-se exprimir a mesma doutrina nos seguintes termos:
a) Por seu objeto, a arte não está subordinada a alguma finalidade ulterior, isto é, a obra de arte por si mesma não é etapa nem instrumento para a consecução de algum bem criado;
b) Por seu sujeita, porém, a arte está subordinada à obtenção do Bem Supremo desse sujeito; este nunca age senão em demanda do Fim último. Ora o conjunto de leis que levam o homem ao seu Fim Supremo constitui a Moralidade. Por isto não é lícito à arte, em hipótese alguma, derrogar à Moralidade.
Aos fiéis católicos o Concílio do Vaticano II quis, com particular ênfase, lembrar tal doutrina:
Há um problema que se refere às relações existentes entre os direitos da arte e as normas da lei moral. Como as incessantes con­trovérsias nesta matéria não raro se originam de falsas doutrinas acerca da ética e da estética, o Concílio declara que absolutamente todos devem professar a primazia da ordem moral objetiva, por­quanto é a única que sobrepuja e coerentemente harmoniza todas as demais ordens de coisas humanas, por mais respeitáveis que sejam em dignidade, não excetuada a arte. Pois somente a ordem moral atinge o homem em toda a sua natureza, criatura racional de Deus chamada para os bens celestiais; se esta ordem moral for observada fiel e integralmente, levará o homem à plena consecução da perfeição e da felicidade, (Decreto «Inter Mirifica» sobre os Meios de Comu­nicação Social, n° 6).
Estas considerações, porém, suscitam mais uma objeção:
4. A arte controlada nunca representará a realidade!
4) «A arte, embora se destine a cultivar o belo, não pode deixar de representar a realidade humana. Ora esta é um misto de bem e mal morais. Então a arte, para não ofender
a Moral, há de se contentar com representações parciais e mutiladas da realidade, atraiçoando os acontecimentos e as personalidades que em verdade ocorrem?»
Resposta: A Moral não exige que, de maneira sistemá­tica e absoluta, o homem feche os olhos ao mal. Não; há casos em que é oportuno que os homens retos descrevam o mal como ele existe; devem, porém, fazê-lo de modo a apresentar o mal como mal ou de modo a fazer compreender que é algo a ser rejeitado e não imitado; abstenham-se, pois, de sugerir a mínima complacência no mal ou de o justificar e exaltar.
Em geral, observa-se que descrever o mal sem insinuar algum juízo sobre o mesmo equivale praticamente a incuti-lo e recomendá-lo (tal é o poder de sedução do pecado); por isto o artista não se pode eximir de censura da Moral quando ele apenas descreve os homens e os acontecimentos lascivos como eles se apresentam na sua realidade cotidiana. Desde que se trate de objetos moralmente maus, estes têm de ser (elegan­temente, se quisermos) denunciados como tais, pois dificilmente se pode crer que, para o público, a singela descrição não re­dunde em detrimento de consciência.
Em outros termos ainda, deve-se dizer que a Moral não proíbe ao artista descrever a realidade humana tal como ela é, mas veda expressá-la tal como ela não é, ou seja, como gran­deza (nos casos em que ela é ruína), como lícita e louvável (nos casos em que ela é ilícita e condenável), como justa (nos casos em que ela é injusta). Tenham-se em vista as «Confis­sões» de S. Agostinho e o «Decamerone» de Boccaccio; são obras que contêm a descrição do pecado; já, porém, que to­mam atitudes diversas perante o mal, merecem ser diversa­mente apreciadas: nas «Confissões» o vício é apresentado como objeto de arrependimento e repúdio por parte do autor (o que vem a ser construtivo), ao passo que no «Decamerone» se percebem complacência no pecado e glorificação deste (ati­tudes reprováveis).
Segue-se a propósito mais um inciso do documentário do Concílio do Vaticano II:
«A narração, a descrição e a representação do mal moral podem certamente, com o recurso inclusive dos meios de comunicação, pres­tar-se para um conhecimento e um estudo mais profundo do homem, para manifestar e exaltar a magnificência do bem e da verdade, obtendo-se, além disso mais oportunos efeitos dramáticos; contudo, para que não venham a causar dano antes que utilidade aos espíritos, obedeçam estritamente às leis morais, principalmente se se tratar de coisas que exigem a devida reverência ou que incitem com mais faci­lidade o homem, ferido pelo pecado original, a desejos perversos» (De­creto «Inter Mirifica» n° 7).
As idéias propostas nestas páginas levam a ver que não é inoportuna a obra dos censores de espetáculos de cinema, tea­tro e televisão... Este trabalho poderá ser especialmente útil nos tempos presentes, em que nem sempre se cultiva a arte pela arte ou pela beleza, mas, sim, em vista do lucro comer­cial; critérios totalmente alheios à arte e à formação do senso artístico levam não poucos produtores e artistas a explorar baixos sentimentos do povo, proporcionando a este um deleite que está longe de ser o deleite da genuína estética. Já se disse, aliás, muito sabiamente que a arte imoral deixa de ser arte.
É para desejar, porém, que os censores se deixem guiar exclusivamente pelas normas da sã Moral, e não pelos ditames de algum partido político.
A propósito da industrialização da arte e da cultura, veja-se E. Gilson, «La Société de Masse et sa Culture». Paris 1967.
APÊNDICE
Vem a propósito a entrevista concedida pelo Sr. Bispo D. José Gonçalves, DD. Secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ao «Jornal do Brasil» e publicada à pág. 7 do 1° cad. desse jornal em 21/III/68:
O Secretário Geral da Conferência dos Bispos, Dom José Gonçalves, declarou ontem que só pode aplaudir o Governo quando ‘firmemente mantém o princípio da Censura’,
argu­mentando que nem sempre o Governo deve fazer a vontade da comunidade, pois muitas vezes ‘esta se acha de tal maneira deformada ou imatura que a autoridade terá de contrariá-la em seu próprio benefício’.
Após pedir desculpas aos artistas brasileiros, Dom José disse ser da opinião de que ‘a liberdade absoluta não interessa à arte, e sim à bilheteria, mas à custa da consciência e da cultura de nossa juventude. Um artista de real valor não precisa de pornografia, nem para expansão da arte, nem para sucesso de bilheteria’.
Autoridade
Ao apoiar o Governo sobre a manutenção do principio da censura, Dom José lembrou a doutrina do Papa Pio XII, ex­pressa na encíclica ‘Miranda Prorsus’, sobre o cinema, o teatro e a televisão, na qual insiste em que ‘a vigilância do Estado não se pode considerar injusta opressão da liberdade do indivíduo, porque se exerce não na esfera da autonomia pessoal, mas sobre uma função social, como é por essência a difusão’.
Para argumentar que a autoridade não pode fazer todas as vontades do povo, lembrou o Secretário da CNBB que na decadência do grande povo romano a massa pedia somente panem et circenses (pão e circo), frisando: ‘Ninguém me vá dizer que a autoridade devia só dar pão e circo ao povo, por ser a vontade da comunidade!’
- ‘Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar o porte de armas, para não colocá-las ao alcance de malfeitores e tarados. Irá permitir essa licença aos assas­sinos de almas?
- Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar a venda de tóxicos. Será exorbitância, se impedir o envenenamento moral dos brasileiros? Que dizer de um farmacêutico que permitisse a um inexperiente penetrar em seu laboratório e provar indiscriminadamente todos os
pro­dutos químicos que ali se manipulam?' - ponderou.
Pureza
Dom José Gonçalves acha que a verdadeira arte não pre­cisa de palavrões, nem de pornografia, pois que ela se impõe por si mesma, obtendo mesmo o sucesso de bilheteria. Citou a propósito um exemplo, ‘justamente no gênero humorístico, que é o mais exposto à sedução da pornografia ou da porno­lalia. Refiro-me ao Sr. José Vasconcelos. Que Deus o livre de deixar macularem-se seus lábios limpos e de infectar-se sua sala de espetáculos, onde grandes e pequenos têm podido entrar sem constrangimento!’
Lamentou, apoiando-se em comentários de pessoas sen­satas, que ‘o nosso teatro esteja virando uma vergonha’ e lamentou que ‘artistas do valor de Fernanda Montenegro, Ca­cilda Becker e outras, que todo o mundo respeita e admira, aceitem papeis em peças licenciosas'.
A propósito do palavrão, citou o Apóstolo São Paulo, que exorta aos cristãos: ‘A impureza e toda imundície nem sejam nomeadas entre vós... nem palavras torpes, nem inconve­nientes, nem levianas’ (Ef 5,3s).
Controvérsia
Interrogado sobre as declarações do Diretor da Central Católica de Cinema, que diz admitir o palavrão no teatro, o nu no cinema, afirmou Dom José que duvida de que a imprensa tenha refletido com exatidão seu pensamento, pois sabe que ele não é contrário à censura. O que houve, talvez, foi isolar algumas frases de um contexto.
- ‘Se ele confirmasse a entrevista nos termos em que foi publicada, eu teria reparos a alguns conceitos por ele emitidos, à luz da doutrina dos Papas e do Concílio do Vaticano II, que no decreto ‘Inter Mirifica’, sobre os meios de comunicarão social, analisa justamente o problema da exposição do mal moral na arte’.
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Quarta-feira, 6 de Junho de 2007

Consciêmcia e moralidade: agir por causa de um prazer?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 070/1963)
«As pessoas que não querem adotar métodos anticoncepcionistas para limitar a prole, dizem que não é lícito agir unicamente por causa do gozo.
Então o prazer não será motivo digno de justificar uma ação humana?»
1. Não há dúvida, todo homem, ao agir, tem em vista um bem,... um bem real ou, ao menos, aparente (bem aparente, isto é, algo que ao sujeito parece ser bom, embora na verdade não o seja). Ninguém age visando o mal em si e por si, mas unicamente na medida em que ao mal se prende um bem qualquer (que vem a ser o verdadeiro motivo da ação); assim o próprio suicida, desejando a morte, deseja algo que no momento lhe parece ser um bem (deseja, sim, a morte como repouso ou cessação da luta, isto é, como mal menor do que o «mal de viver»...).
Ora os moralistas distinguem três modalidades de bens: o bem honesto, o bem deleitoso e o bem útil.
O bem honesto é o bem conforme as normas da moralidade, ou seja, conforme a Lei de Deus, a qual se manifesta no íntimo de cada homem pelos ditames da consciência.
O bem deleitoso é o objeto que satisfaz às tendências sen­suais ou intelectuais do indivíduo e, de certo modo, se destina a saciá-las.
O bem útil é o objeto que serve de meio ou instrumento para se alcançar determinado fim.
Muitas vezes, o fim intencionado é meramente temporal ou material, visado independentemente do Fim último do homem, que é Deus. Pode acontecer, porém, que o bem útil seja dirigido à obtenção do supremo Fim ou da vida eterna.
2. Feita a distinção entre bem honesto, deleitoso e útil, não resta dúvida de que o homem, agindo por causa de um bem honesto, reco­nhecido como tal, sempre age bem ou pratica uma ação moralmente boa. Não há objeção importante a fazer neste setor.
No tocante aos bens úteis, está claro que por sua natureza mesma são orientados para outro objeto ou para um fim ulterior. Essa orien­tação dá a moralidade ao uso de tais bens, fazendo que seja um uso (ou ato) moralmente mau (se o objetivo ulterior for mau) ou moral­mente bom (se o objetivo visado e o próprio meio utilizado forem bons). Também neste setor não há propriamente dúvidas; cf. «P.R.» 168/1963, qu. 3 (o fim bom não justifica meios maus).
Questão mais séria, porém, se põe quando se consideram os bens deleitosos. Estes podem ser encaminhados para um fim ulterior, como também podem não o ser; neste último caso, são visados em si mesmos e por si mesmos; a pessoa quer então o prazer por causa do prazer apenas.
Em tais circunstâncias, indaga-se: será lícito agir tendo em vista unicamente o gozo ou o prazer?
- Está claro que não será permitido agir por causa de um prazer desonesto ou pecaminoso. A dúvida se põe apenas quando se trata de um prazer honesto. Poderá tal prazer, considerado em si mesmo apenas, motivar legitimamente uma ação do homem?
A esta questão a Moral sadia responde negativamente: o deleite, visado em si apenas, não basta para justificar a atividade da pessoa.
A razão desta negativa é evidente: o prazer é algo que o Autor da natureza, Deus, anexou a certas atividades do homem a fim de as estimular e facilitar; por conseguinte, o prazer não é algo de absoluto, não pode constituir o fim ou o termo das as­pirações do homem, mas só pode ser legitimamente desejado dentro da perspectiva de uma finalidade ulterior. Quem quisesse agir unicamente por motivo de gozo, faria do meio um fim, do secundário o principal; por conseguinte, inverteria a ordem dos valores instituída pelo Criador, e assim pecaria.
O prazer sexual foi associado por Deus à função generativa a fim de que o homem seja incentivado a propagar a sua espécie; tal prazer portanto só poderá ser aceito pelas pessoas que tenham em vista a ge­ração da prole dentro do quadro normal da geração, que é o matri­mônio.
O mesmo se diga com referencia ao deleite anexo à função de comer: é estímulo para facilitar ao individuo a conservação de sua vida. Fora desta perspectiva, tal prazer já não tem sentido e não é apto a justificar a atividade (ou a ação de comer) do indivíduo.
Tais princípios explicam que o Papa Inocêncio XI aos 2 de março de 1679 tenha condenado as seguintes proposições:
«É lícito comer e beber até a saciedade, sem necessidade, por causa apenas do deleite daí decorrente, desde que com isto não se prejudique a saúde; com efeito, o apetite natural pode licitamente usufruir dos seus atos próprios» (Denzinger, Enchiridion 1158).
«Não há culpa alguma nem defeito venial, quando se pratica o ato conjugal por causa apenas do prazer» (cf. ib. 1159).
A rejeição destas duas sentenças bem confirma que o gozo por si só não pode ser motivo suficiente para que o homem exerça alguma atividade.
O prazer tem sido comparado ao sal ou ao tempero que se costuma colocar na comida a fim de que esta se torne mais apetitosa e digerível. Ora, assim como não é normal comer unicamente por motivo do sal ou do tempero, assim também não será normal (por conseguinte, será desregrado e ilícito) praticar uma ação unicamente por causa do gozo.
3. Uma advertência agora se impõe: as normas até aqui expostas não significam que alguém, ao agir, deva excluir todo desejo de prazer. Pode uma pessoa licitamente aspirar ao deleite que está anexo a determinada função da natureza, desde que considere e deseje esse deleite como fim intermediário, subor­dinado a um fim ulterior honesto. O mal só começa quando tal pessoa faz do deleite o fim ou o objetivo em última análise vi­sado pelo seu ato.
Disto se segue que alguém pode licitamente desejar um divertimento (jogo esportivo, espetáculo cinematográfico honesto, concerto musical, etc.), e dele usufruir, desde que subordine o prazer daí deri­vado ao fim respectivo, que é «recrear as forças da natureza, restaurar o ânimo, conservar a saúde, etc.». Em outros termos: a consciência cristã não se opõe a que se façam programas recreativos, contanto que se tenha em vista a razão de ser dos recreios e dos divertimentos, razão de ser que é a conservação do equilíbrio psíquico-somático das pessoas interessadas.
4. Pergunta-se ulteriormente: e que quer dizer esse «ter em vista... »? Ou com que tipo de intenção se deve desejar um bem honesto ou uma finalidade ulterior quando se deseja um recreio, um divertimento?
Respondem os moralistas que não é necessário ter intenção explícita de referir o divertimento, por exemplo, à conservação da saúde (não é preciso que a pessoa tome consciência explícita de que o seu divertimento é mero meio para atingir objetivo ulterior). Exigir uma tal advertência ou reflexão antes que a pessoa realize qualquer de seus atos seria exigir esforço muito árduo, quase impraticável nas condições habituais da vida hu­mana, e, além do mais, esforço desnecessário. - Basta que o indivíduo tenha implicitamente a intenção de conseguir o obje­tivo ulterior (ou, no exemplo dado, de conservar a saúde).
E como se sabe que existe essa intenção implícita?
- Pode-se dizer que essa intenção implícita já existe quando a pessoa modera os seus atos de acordo com a reta razão iluminada pela fé ou de acordo com as leis da natureza,
come­çando, freando e terminando os seus recreios de modo a guardar em tudo o domínio da razão sobre os sentidos e as tendências da carne. Por conseguinte, a moderação no prazer pode ser in­terpretada como indício de que a pessoa não procura unicamente o gozo, mas procura também a finalidade suprema do gozo que é o aperfeiçoamento da personalidade e a união com Deus.
É S. Afonso de Ligório (t 1787) quem escreve:
«Quando alguém se senta à mesa sem pensar na conservação de sua vida, mas unicamente no deleite da comida, não peca por proceder assim, pois essa pessoa deseja tal prazer ao menos virtualmente por causa da conservação da sua vida; é o que faz que o seu desejo de pra­zer não seja desordenado» (Theol. mor. 1. 5, tract. praeamb. W 44).
O desejo virtual (ou intenção virtual) de que fala S. Afonso, é a intenção que a pessoa concebeu outrora explicitamente e em virtude da qual (ou por influência da qual) a pessoa está realmente agindo, sem que disto tenha consciência, isto é, sem ligar o ato presente com a intenção outrora explicitada e jamais retratada.
Há bons moralistas modernos que interpretam os dizeres de S. Afonso num sentido ainda mais largo: entendem a intenção virtual acima enunciada, no sentido de intenção meramente implícita, isto é, intenção que está incluída no simples fato de que a pessoa se comporte razoavelmente ou moderadamente no ato de gozar (independentemente de qualquer intenção anteriormente concebida).
Para garantir a pureza da intenção, seja virtual (no sentido estrito), seja meramente implícita (conforme os modernos), re­comenda-se que periodicamente o cristão faça o oferecimento de seus atos a Deus e proponha tudo realizar para a glória do Cria­dor. Muito se deve desejar que tal propósito seja renovado todos os dias de manhã; contudo isto não é de preceito; não comete pecado quem não o faça com tal assiduidade.
5. A Sagrada Escritura mesma fornece fundamento para as doutrinas acima... Com efeito, afirma o Senhor Jesus: «Em verdade vos digo: no dia do juízo, os homens prestarão contas de toda palavra ociosa que tiverem proferido» (Mt 12, 36).
Ao que observa S. Jerônimo († 421): «Se as palavras ociosas são objeto de prestação de contas, quanto mais os atos ociosos não o serão!» (Brev. in Ps., Ps. 15, ed. Migne lat. t. 26, 910).
Note-se bem que «ocioso» não quer dizer «mau, intrinsecamente mau», mas apenas «destituído de finalidade» ou «desviado da genuína finalidade». Ora o genuíno Fim do homem é Deus ou a união com Deus; por conseguinte, todo ato humano tem que ser, direta ou indiretamente, encaminhado para este Objetivo, a fim de ser genuíno ou bom; caso não o seja, carece da finalidade devida, é ocioso e tornar-se-á motivo de recriminação no juízo de Deus. Nesta categoria entra o ato de gozar, desde que o gozo seja desejado por si mesmo, sem ser subordinado a outra finalidade ou ao Fim Supremo da atividade e da vida humana Deus.
6. Por último, compreende-se que, embora seja lícito agir com desejo de deleite (subordinado, sim, a uma finalidade ulterior), mais perfeito é não levar em conta (na medida do possível) o gozo ou prazer, e só voltar a atenção para os bens que se relacionam com a reta razão e a fé (em tal caso, não se considera diretamente a repercussão, agra­dável ou desagradável, que a ação empreendida possa ter na sensibili­dade da pessoa).
Este conselho de perfeição tem sido abraçado pelas almas sequio­sas... A experiência só o tem comprovado...
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Segunda-feira, 4 de Junho de 2007

Consciência e moralidade: o fim justifica os meios?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 068 1963)
«Diz-se que o fim não justifica os meios.
Será isso verdade ainda em nossos dias?
Quisera também ler algo sobre o histórico desse adágio».
Em nossa resposta, começaremos por elucidar o sentido e o valor do princípio citado. A seguir, proporemos algo do histórico da questão.
1. «O fim não justifica os meios».
Significado e valor.
A fim de facilitar a compreensão do adágio «O fim não justifica os meios», enunciaremos primeiramente algumas noções gerais referentes a atividade humana, noções gerais que talvez pareçam abstratas, mas vem a ser condição essencial para o reto entendimento do assunto. O leitor terá a paciência de acompanhar essas considerações básicas.
1. Em todo ato consciente e voluntário, o homem visa certo objeto (ou matéria) em torno do qual exerce a sua ação, por causa de determinado fim (ou objetivo), dentro de tais e tais circunstâncias.
Tenha-se em vista o caso de Pedro, que por amor a Cristo dá ge­nerosa esmola a um pobre ferido.
Em tal ato, o objeto vem a ser a esmola; é para esta que a atividade de Pedro no momento tende primariamente ou por si (o ato de Pedro define-se simplesmente como um ato de dar esmola);
o fim pelo qual Pedro assim age, é o amor a Cristo (é, sim, para afirmar e corroborar seu amor a Jesus que Pedro dá a esmola). - O fim pode variar, pois Pedro também poderia dar esmola por vaidade ou ostentação ou por medo ou por desejo de captar a simpatia de outrem...;
as circunstâncias vem a ser a índole generosa da esmola e o fato de que o pobre é um pobre ferido. - Também as circunstâncias são variáveis, pois há esmolas de pouca monta e pobres que não são feridos.
São, por conseguinte, esses três elementos (o objeto, o fim e as circunstâncias) que se devem levar em conta para avaliar se o ato humano é moralmente bom ou mau, isto é, para deter­minar a moralidade (liceidade ou iliceidade) do ato humano ou ainda... para verificar se o ato é ou não é conforme a regra suprema da conduta humana, que é a Lei de Deus.
2. Note-se agora que o objeto mesmo, do ponto de vista da mora­lidade, pode ser
bom, caso seja por si ou intrinsecamente conforme à Lei de Deus; tais são, por exemplo, os atos de amor a Deus e amor ao próximo;
mau, caso por si seja contrário á Lei de Deus; tais são os atos de odiar a Deus, matar um inocente;
indiferente, quando por si não traz relação, nem de conformidade, nem de oposição, à Lei de Deus; tenham-se em vista os atos de andar, escrever, comer... Verdade é que tais atos só são moralmente indife­rentes ou neutros quando considerados em si ou abstração feita das respectivas circunstâncias e finalidade; na prática, não há ato humano moralmente indiferente, pois as circunstâncias ou a finalidade o tor­nam bom ou mau; assim, escrever para instruir os outros é bom, es­crever para perverter o próximo é mau...
Donde se vê que há alguns males que são sempre males, males absolutos; e não se podem por motivo algum tornar atos bons ou indi­ferentes (tal é o ódio a Deus ou ao próximo). Há também males rela­tivos,... relativos por motivo de alguma circunstância contingente. Assim, o ato de tirar coisa alheia será mau, se for praticado contra a vontade do proprietário dessa coisa; poderá ser bom, se o proprietário der espontaneamente a licença necessária.
3. Será preciso observar outrossim o seguinte: o objeto, quer bom, quer mau, pode ser considerado
materialmente, ou em si mesmo, independentemente da consciência de quem age;
formalmente, ou na medida em que a respectiva bondade ou mali­cia moral é percebida pela consciência e desejada pela livre vontade de quem age.
Assim o ato de tirar coisa alheia praticado por quem não sabe que é coisa alheia, é um ato materialmente, mas não formalmente, mau. Dado, porém, que o agente saiba que a coisa pertence a outrem e a tire deliberadamente contra a vontade do proprietário, comete uma ação formalmente má.
Esta distinção nos leva a falar de pecado material (ou material­mente entendido) e pecado formal (ou formalmente entendido). No primeiro caso, o agente age mal sem conhecimento de causa ou sem desejo deliberado; no segundo caso, age com conhecimento de causa e vontade deliberada.
4. Dos três elementos que dão moralidade ao ato humano (o objeto, o fim e as circunstâncias), o principal é o objeto, e o objeto formalmente entendido, isto é, na medida em que o agente o reconhece e deseja como objeto bom ou como objeto mau. O objeto assim percebido fornece geralmente a moralidade pri­mária e essencial ao ato, fazendo que ele possa ser bom ou mau (do ponto de vista moral) independentemente do fim e das cir­cunstâncias desse ato. Por isto, a moralidade má derivada do objeto (aqui apenas esta nos interessa) é constante e imutável, ainda que se mudem as circunstâncias e o objetivo do ato; assim o ato de tirar deliberadamente um pertence alheio, quando o proprietário, usando de justo direito, não o permite, deve ser tido como ato injusto, antes mesmo que se considerem as cir­cunstâncias e o fim respectivos; e de modo nenhum se torna justo pela mudança das circunstâncias ou do fim (não se torna justo, por exemplo, nem no caso de que alguém roube para dar esmola). O ato de matar um inocente é por si um ato moral­mente mau, embora possa ser inspirado pelos sofrimentos de um doente ou de um aleijado...
É o que nos leva a afirmar que «o fim bom não justifica meios maus». Mesmo que o fim seja bom, a vontade que o de­seja mediante meios maus, deseja algo de mau; e esse desejo destrói ou corrompe a bondade moral da ação. Famoso adágio dos moralistas ensina: «Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu», isto é, «para que uma ação seja boa, é pre­ciso que todos os seus elementos integrantes (inclusive os meios) sejam bons; caso algum seja mau, já não há ação boa». É por isto também que São Paulo exclama:
«Haveríamos nós de fazer o mal para que daí proceda o bem, con­forme alguns nos acusam caluniosamente, atribuindo-nos este princí­pio?» (Rom 3,8).
Verdade é que, se alguém procede mal visando finalidade boa, o seu procedimento é menos grave do que em outros casos. A finalidade boa atenua a malícia dos meios maus utilizados por quem age. Este mostra não ter apego ao mal em si, mas só o de­sejar por causa do bem.
Tal é o caso, por exemplo, de quem rouba para aliviar a fome de um pobre.
S. Agostinho diria: «Mais grave culpa tem o indivíduo que rouba por cobiça do que aquele que furta por compaixão (para com um pobre)» (Contra mendacíum VIII ed. Migne lat. 40, 529).
S. Tomaz, por sua vez, ensina: «Quanto melhor é a intenção de quem mente, tanto menor será a sua culpa» (Suma Teológica II/II 110 2).
Essa pessoa não está propriamente aderindo ao mal, mas procuran­do um bem real; a desordem do seu procedimento consiste apenas na escolha do meio. É preciso contudo frisar bem que, embora a retidão da vontade torne o ato menos mau, ela não apaga por completo a malí­cia objetiva do mesmo. Esta última é essencial ao ato; não pode ser separada deste, ainda que só seja aceita pela vontade em vista de um fim nobre. A vontade, querendo tal meio, não pode deixar de querer simultaneamente a malícia intrínseca desse meio que ela conhece; por conseguinte, não pode estar praticando uma ação boa. - A mentira não é licita, nem mesmo quando encaminhada para uma finalidade boa; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6.
A esta altura, porém, merecem nossa atenção
2. Duas objeções
1. Há quem não aceite tais considerações, apelando para os exemplos bíblicos de Abraão (cf. Gên 12,11-19), Jacó (cf. Gen 27, 1-40), Judite (cf. Jdt 11,11-15) e das parteiras do Egito (cf. Êx 2,15-21); todos esses personagens proferiram mentiras a fim de obter uma finalidade boa.
Citam-se também o procedimento de Moisés, que por auto­ridade própria matou um egípcio (cf. Ex 2,11s), assim como a conduta de Sansão, que se suicidou para exterminar os filisteus que humilhavam Israel (Jz 16,25-30).
Como julgar tais casos?
Faz-se mister dizer: ou admitiremos que tais atos, na me­dida em que foram aprovados por Deus, não eram intrinsecamente maus (assim as aparentes mentiras não seriam mentiras propriamente ditas, mas restrições mentais; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6), ou, caso isto não se tenha dado, deveremos reconhecer que os citados personagens bíblicos, por muito beneméritos que fossem, pecaram (pecaram ao menos materialmente) não há homem algum que não esteja sujeito a falhar até o fim de sua vida, por muito santo que seja.
2. Disputam os autores modernos também sobre as pala­vras de Cristo referidas em Mt 6,22s
«Os teus olhos são a luz do teu corpo. Se teus olhos são per­feitos, todo o teu corpo será luminoso. Mas, se teus olhos forem defeituosos, todo o teu corpo estará em trevas».
Há quem julgue que Jesus, ao falar de «olhos (perfeitos ou defeituosos)» no texto acima, se referia à intenção (boa ou má) de quem age, de modo que o ensinamento do Divino Mestre seria o seguinte : «Se, ao agir, tiveres má intenção, todos os teus atos serão tenebrosos ou moralmente maus. Ao contrário, se tiveres boa intenção, tudo que fizeres será luminoso ou moralmente bom». Estaria assim justificada a tese conforme a qual o fim bom (a intenção boa) legitima os meios em si maus.
Sem dificuldade se reconhece quão precário é o recurso a tal texto evangélico: já o estilo metafórico da passagem exige que só a utilizemos com grande cautela; na verdade, à figura dos olhos, mencionada pelo Senhor, parece que seria forçado atribuir o sentido preciso de «intenção»; ela equivale, antes, a «afetos do coração humano»; foi sempre neste sentido que os exegetas a entenderam. Conseqüentemente, Jesus quer dizer que, se os afetos do homem forem puros ou isentos de cupidez e paixões, tal pessoa poderá realizar obras boas; o contrário se verificará se tiver o coração ou os afetos apaixonados e obce­cados.
Fica, pois, de pé o princípio: «O fim não justifica os meios». Só pode contradizer a este adágio quem admita que a norma suprema da moralidade ou o fim último da conduta humana são as vantagens ime­diatas e temporais do próprio sujeito ou da sociedade; em tal caso, a malícia objetiva do ato poderá parecer suficientemente compensada pela sublimidade do fim.
Há ocasiões, sem dúvida, em que os atos de enganar, mentir, roubar ou matar mais condizem com os interesses temporais do indivíduo ou do grupo do que a abstenção de tais atos; se, pois, o homem só vive para tais interesses temporais, está claro que não hesitará em lançar mão de semelhantes expedientes. A reta consciência, porém, aponta a todo indivíduo outra finalidade para a sua conduta, finalidade que ultrapassa os limites desta vida e à qual têm que ser sacrificadas todas as vantagens temporais que lhe contradigam.
O utilitarismo que depaupera e amesquinha, encontrou sua expres­são clássica nas palavras do poeta inglês Matthew Prior, o qual asse­verava que só peca quem tem a intenção de cometer o mal:
«The end must justify the means,
He only sins who ill intends.
O fim há de justificar os meios;
Só peca quem intenciona o mal».
(The works of the english poets. London 1810, t. X 155)
Resta agora percorrer rápidamente o
3. Histórico da questão
1. Pode-se dizer que a Moral cristã, desde os tempos de São Paulo (cf. o texto de Rom 3,8 citado à pág. 321 deste fascí­culo), sempre repudiou o adágio «O fim justifica os meios».
S. Agostinho († 430) exprime essa repulsa nos seguintes termos:
«Muito importa avaliar a causa, o objetivo, a intenção que movem cada um dos nossos atos. Quanto aos atos que por si mesmos são peca­minosos, não será lícito praticá-los nem mesmo sob o pretexto de que a causa é boa, nem mesmo em vista de uma finalidade honesta, nem mesmo por influência de uma boa intenção» (Contra mendacium VII 18, ed. Migne lat. 40, 528).
Este texto incute de maneira bem clara que nada absolutamente pode justificar a prática de uma ação má em si mesma.
O mesmo S. Doutor afirmava também com nitidez o seu pensa­mento a propósito de um trocadilho que, a quanto parece, ocorria entre os fiéis da sua comunidade. Ei-lo:
O texto latino do Salmo 32,17 poderia ser escrito do seguinte modo: «Mendax aequus ad salutem»; o que se traduziria por: «O mentiroso está habilitado para granjear a salvação». Assim entendido, o salmo sugeriria que a mentira pode ser oportuno meio de salvação eterna. - Ora, desejando absolutamente remover do espírito de seus fiéis uma tal conclusão, o S. Doutor chamava explicitamente a atenção para a reta grafia do citado versículo: «Mendax equus ad salutem»; o que significa: «O cavalo (com toda a sua pujança) é mentira (ou ilusão) no que se refere à salvação» (não é a força do cavalo que garante sal­vação eterna a alguém). Cf. Enarr. in Ps 36, ed. Migne lat. 36, 297.
A tais pormenores descia a solicitude de S. Agostinho visando rejeitar a idéia de que o fim justifica os meios!
São Tomaz († 1274), em seu tempo, ensinava: «Não se pode justi­ficar um ato mau, nem mesmo quando cometido com boa intenção» (opuse. III e. VI).
2. Na antigüidade cristã, somente o escritor João Cassiano († 435), acompanhado de poucos outros, ensinou a liceidade da mentira quando proferida em caso de necessidade (col. XVII 17-19, ed. Migne lat. 49, 1062-1070). Defendia tal sentença, desejando explicar os episó­dios do Antigo Testamento em que homens de Deus aparecem a mentir. - Na verdade - já o observamos atrás - não seria preciso dizer que tais varões tenham procedido bem ao mentir; também os que arden­temente procuram aproximar-se de Deus, podem incorrer em faltas.
Mais complexa é a discussão que se tem travado na época moderna a respeito da doutrina e da praxe dos Padres da Companhia de Jesus, aos quais muitos historiadores atribuem a máxima: «O fim honesto justifica o emprego de meios desonestos».
Examinemos o que a tal propósito referem os documentos da his­tória.
3. A acusação já era dirigida contra os jesuítas no séc. XVII pelo escritor calvinista Dumoulin († 1566) e pelo filó­sofo francês Blaise Pascal († 1662). Este pensador, na sua «Septième Lettre Provinciale» (Sétima Carta Provincial), atribuía aos moralistas da Companhia de Jesus a tática de «dirigir a intenção»: conforme essa praxe, os diretores de almas deve­riam orientar a intenção dos fiéis para determinados objetivos lícitos; esta orientação bastaria para tornar honesta toda e qual­quer ação, mesmo os atos até então tidos como torpes.
Assim, por exemplo, fala o «Bon Père (Bondoso Padre)», um dos personagens sutis que Pascal apresenta como arauto da tese na «Sétima Carta»:
«Quando não podemos impedir a ação, purificamos ao menos a in­tenção de quem a vai praticar; destarte corrigimos o vício do meio pela pureza do objetivo».
Observava Pascal que esse «maravilhoso método» permitia associar as máximas do Evangelho às máximas do mundo: desde que, por exemplo, alguém tivesse a «boa intenção» de salvaguar­dar a sua honra, poderia licitamente aceitar um duelo ou mesmo, por vezes, propô-lo; poderia matar por causa de um gesto de desprezo, matar às ocultas um falso acusador ou um juiz cor­rupto; o direito de legítima defesa seria assim estendido de ma­neira arbitrária e caprichosa. Encontrar-se-ia o meio de «roubar sem pecar».
Não há dúvida, Pascal, ao fazer suas recriminações, focali­zava algumas posições adotadas por casuístas de sua época; parece, porém, tê-las em parte caricaturado e exagerado a fim de censurar a Companhia de Jesus (da qual o filósofo francês, dado ao jansenismo, não era amigo). - O que tais posições possam ter de errado, há de ser reconhecido como errado; contudo será preciso não esquecer que não se tornaram posições comuns na S. Igreja nem dentro da própria Companhia de Jesus. Deve-se mesmo observar que o moralista jesuíta mais repreendido por Pascal, o Pe. Escobar y Mendoza († 1669), tido como um dos mais sutis «diretores das intenções humanas», escreveu verbal­mente na sua «Teologia Moral»:
«A honestidade de determinado fim não recai sobre um ato que, por seu objeto mesmo, seja desonesto; este ato fica sendo, em todas as hipóteses, simplesmente ilícito. Tal é o caso, por exemplo, de quem rouba para dar esmola» (Theologia Moralis. Lião 1652, 1. 3, sect. I c. 6).
Donde se vê que no séc. XVII nem mesmo Escobar, jesuíta conside­rado como um dos mais cavilosos moralistas da época, terá defendido o principio: «o fim justifica os meios».
Por todo o decorrer dos séc. XVIII e XIX as acusações à Companhia de Jesus foram renovadas, principalmente em terri­tórios de língua germânica, onde ardiam litígios entre católicos e protestantes. Da controvérsia, salientam-se os seguintes tópi­cos mais marcantes:
Em 1848, os jesuítas empreenderam missões em toda a Ale­manha. Para os desacreditar junto aos fiéis, foram então lança­dos ao público panfletos e volantes numerosos conforme os quais os jesuítas no confessionário ensinavam que o fim justifica os meios. À guisa de réplica, o Pe. Roh S.J. resolveu, em Franco­forte (Renânia), lançar um desafio a todos os interessados: mostrassem à Faculdade de Direito de Bonn ou de Heidelberg um só livro assinado por jesuíta no qual o referido princípio ou outro semelhante fosse apregoado; quem o fizesse seria pre­miado com a quantia de 1.000 florins. Tal apelo, feito em 1852, tendo ficado sem resposta eficaz desde então, foi renovado pelo mesmo Pe. Roh em 1861, em Halle (Alemanha). Após algumas tentativas de resposta, em 1868 o pastor protestante Maurer, de Bergzabern, publicou uma brochura, intitulada «Neuer Jesuitenspiegel (Novo espelho dos jesuítas)», na qual julgava fornecer definitivamente a documentação solicitada pelo repto do Pe. Roh: apontava, sim, a famigerada obra «Medulla Theologiae Moralis» do notório casuísta Busenbaum S.J. († 1668), editada pela primeira vez em Münster no ano de 1650 e sucessi­vamente reeditada. Nesta obra o ponto impugnado por Maurer era o seguinte:
Busenbaum examina o caso de alguém que, tendo sido condenado ao cárcere por sentença injusta, deseja escapar da prisão. O casuísta jesuíta julga então lícita a fuga, «a menos que o bem comum exija o contrário» ou também «exceto se a caridade exigir o contrário» (exceto, por exemplo, se a fuga acarretasse maior dano ao guarda da prisão do que o dano sofrido pelo prisioneiro no cárcere). Admitida a liceidade da fuga, Busenbaum imagina que o prisioneiro, para escapar, vai ludibriar os vigias ou dando-lhes algum soporífero ou fornecendo-lhes um mo­tivo para se ausentarem do respectivo posto; o encarcerado está dis­posto até a tentar romper as correntes que o prendem... Ora Busenbaum admite a legitimidade de tais expedientes, pois, diz ele, «quando o fim é licito, os meios também são lícitos». - Era esta a passagem que Maurer julgava poder apresentar como fundamento das acusa­ções feitas aos sutis moralistas da Companhia...
Eis, porém, que quem analisa com serenidade o tópico indicado não pode deixar de levar em conta as observações textuais de Busenbaum:
«(Reo) licet fugere ne capiatur, vel etiam a ministro aprehendente se excutere, non tamen illi vim inferre, vulnerando, percutiendo.
Licet etiam, saltem in foro conscientiae, custodes (praecisa vi et injuria) decipere, tradendo. verbi gratia, cibum et poturn ut sopiantur vel procurando ut absint; iterum vincula et carceres effringere, quia cum finis est licitus etiam media sunt licita» (lib. IV cap. 3, dub. 7. Paris 1657, pág. 495-97).
O que quer dizer:
«Ao acusado é lícito fugir para não ser preso, como também é lícito procurar desvencilhar-se do guarda que o queira prender; não é legítimo, porém, em vista disso aplicar violência ao guarda, ferindo-o ou espancando-o.
Também será lícito, ao menos no foro da consciência, enganar os guardas (sem contudo recorrer à violência e à injúria), dando-lhes, por exemplo, alimento ou bebida que os façam dormir, ou proporcionando­-lhes algum motivo para se ausentarem; também será legítimo romper correntes e grades, pois, quando o fim é lícito, também os meios o são».
Este texto significa realmente que «o fim (bom) justifica meios maus (ilegítimos)»? Não; pois os meios que Busenbaum aponta como exemplos são meios que ele, na sua consciência (com ou sem razão; esta é outra questão), tem na conta de indi­ferentes em si mesmos: um soporífero, coisa que pode ser objeto tanto de ação boa como de ação má; o artifício, que faz o funcionário ausentar-se momentâneamente da sua ocupação; a ruptura de correntes que restaura a liberdade. Quanto aos meios que Busenbaum julga ilícitos em si mesmos (as violências, os golpes e ferimentos), ele é o primeiro a rejeitá-los, como se vê acima.
Baseando-se, pois, nos dois parágrafos aqui citados e transcrevendo-os por inteiro, o Pe. Roh redigiu a sua refuta­ção a Maurer numa brochura publicada com o título (traduzido do alemão): «A velha cantiga: ‘O fim justifica os meios’, me­lhorada quanto ao texto e dotada de nova melodia». Roh aí mos­trava que, mesmo aos olhos de Busenbaum, o fim lícito não jus­tifica todos os meios; e corroborava a sua demonstração, lem­brando mais a seguinte afirmativa do controvertido moralista:
«Praeceptum naturale negativum prohibens rem intrinsece malam, non licet violare, ne quidem ob metum mortis» (Lib. I tract. 2, cap. 4, dub. 2. Paris 1657, pág. 39).
«Não será lícito violar, nem mesmo por medo da morte, um pre­ceito da lei natural negativo que proíba uma ação intrinsecamente (por si mesma) má».
Estava assim encerrada a discussão em torno de Busenbaum. Apesar das ardentes pesquisas então efetuadas, não fora possível atribuir a este moralista ou a algum de seus confrades a tutela da máxima: «O fim bom justifica meios maus».
Contudo a opinião pública e a imprensa européias estavam tão ha­bituadas a repetir a acusação proferida por Pascal que mais uma con­trovérsia havia de se acender no início do século XX.
Com efeito. Aos 31 de março de 1903, o sacerdote Dasbach, deputado no Parlamento da Prússia, lançou novo repto, ofere­cendo 2.000 (não apenas 1.000, como fizera o Pe. Roh) florins a quem lhe apresentasse um texto de moralista jesuíta que favo­recesse o incriminado adágio. Respondeu-lhe o conde Paulo de Hoensbroech (que outrora pertencera à Companhia de Jesus e à Santa Igreja Católica), publicando em 1903 mesmo um artigo na revista «Deutschland». Reconhecia que os textos de Busenbaum, assim como outros trechos de autores jesuítas até então alegados, nada provavam; asseverava outrossim que os adver­sários da Companhia, desde Pascal até 1903, só haviam explo­rado nesse debate uma documentação pouco exata e assaz enga­nadora. Hoensbroech, porém, julgava poder apresentar nomes e textos novos que evidenciariam de maneira decisiva os debo­ches da casuística jesuíta.
A controvérsia tornou-se pública e acalorada. Já que Hoensbroech, apoiando-se na documentação que lhe parecia de todo convincente, reclamava de Dasbach o pagamento dos 2.000 flo­rins prometidos em repto, o litígio foi levado ao tribunal de Tréviris; este se declarou incompetente para julgar a questão. Con­seqüentemente o caso em 1905 foi submetido à Corte de Apela­ções de Colônia; esta examinou atentamente as declarações dos casuístas da Companhia citados por Hoensbroech, e concluiu afirmando a insuficiência de tais testemunhos. Hoensbroech de­veria, por conseguinte, desistir de sua reivindicação. Ficava assim mais uma vez reconhecido que a acusação propalada con­tra os jesuítas era gratuita ou destituída de provas. Um tribunal superior do Império prussiano sancionou a conclusão do júri de Colônia, declarando em sua sentença:
«An keiner Stelle ist in den vorgelegten Jesuitenschriften bei Be­handlung dieser Frage der allgemeine Grundsatz ausgesprochen, dass jede an sich verwerfliche Handlung durch jeden guten Zweck erlaubt wird» (Koelnische Volkszeitung 3/IV/1905, n° 273).
«Em passagem alguma dos citados escritos dos jesuítas referentes a tal questão, está enunciado o princípio geral conforme o qual qual­quer ação em si ilícita se torna lícita pelo fato de ser encaminhada a uma finalidade boa qualquer».
Destarte terminava a última grande controvérsia sobre o assunto. Parece que a sentença dos juristas alemães tomou cará­ter definitivo, pois de então por diante cessaram as pesquisas de eruditos desejosos de comprovar a acusação feita aos jesuítas desde os tempos de Pascal. Apenas a opinião pública, pouco es­clarecida e rotineira, alimentada exclusivamente pelo «ouvir dizer» sem exato conhecimento de causa, poderá atualmente continuar a difundir a velha denúncia contra a Companhia de Jesus. Faz-se mister, porém, que mormente em nossos dias todo homem digno deste nome evite «ir na onda» de maneira incons­ciente.
4. Para facilitar ainda mais a tomada de posição do leitor, se­guem-se algumas passagens de moralistas jesuítas que, reprovando diretamente a norma «O fim justifica os meios», bem parecem refletir uma certa tradição ou mentalidade comum vigente na Companhia de Jesus.
Assim, por exemplo, escrevia Paulo Laymann S.J., casuísta que Pascal nas suas «Cartas Provinciais» censurava juntamente com Escobar:
«Admitamos uma ação cujo objeto é mau, ação, porém, dirigida para uma finalidade boa; seria o caso de quem roubasse para poder -dar esmola. Tal ação é simplesmente má. pois equivale a uma injustiça. O fundamento para se afirmar isto é a diferença existente entre o bem e o mal moral, diferença enunciada por S. Dionísio ao dizer: ‘O bem só se obtém pela consonância de todos os seus constituintes; o mal, ao con­trário, já existe desde que haja dissonância (defeituosidade) de um só dos respectivos elementos; o que quer dizer: a fim de que uma ação seja moralmente boa, é preciso que tanto o seu objeto como a sua fina­lidade e todas as respectivas circunstâncias sejam consentâneas com a reta razão» (Theologia Moralis I 2, 9; Douai 1640, pág. 32).
Tão clara doutrina é repetida pelo moralista Edmundo Voit S.J. logo no limiar do seu compendio de «Teologia Moral»:
«Omnis electio mali medii est mala. Ad malitiam participandam sufficit volitio obiecti quod cognoscitur esse malum» (Theologia Mora­lis. Paris 1843 I pág. XVIs).
«A escolha de um meio mau e sempre má... A fim de que um ato seja ilícito, basta que a pessoa queira um objeto que ela reconheça ser mau».
No fim do século passado, ensinava o Pe. Cathrein, que gozava de grande autoridade entre os moralistas da Companhia:
«O ato de desejar um objeto moralmente mau não se pode tornar bom por influência da finalidade extrínseca à qual seja encaminhado esse ato. Por conseguinte, quem reconhece que o roubo (a subtração de bens alheios contra a vontade do respectivo proprietário) é condená­vel, não pode licitamente querer roubar, por mais nobre que seja a finalidade intencionada; esse ato de querer será sempre moralmente mau» (Moralphilosophie I 232. Freiburg i./Br. 1891).
De resto, tal corrente doutrinária da Companhia de Jesus se pode valer da autoridade mesma do fundador dos Jesuítas, S. Inácio de Loiola († 1556). Este, na segunda semana dos seus «Exercícios Espiri­tuais», quer levar o discípulo a escolher entre os diversos meios que se lhe oferecem para prestar o seu serviço a Deus; escreve então:
«O serviço a Deus, tal é a finalidade única; a procura de um bene­fício da Igreja ou a de uma esposa são apenas meios em vista de tal fim. Por conseguinte, somente o desejo de servir a Deus, e nada fora disto, nos deve levar a adotar ou a repudiar algum desses meios... Será sempre necessário que todos os meios entre os quais desejamos fazer a nossa escolha, sejam indiferentes ou bons em si, e de modo ne­nhum maus».
Estas declarações são suficientes para dar a ver que o princípio «O fim justifica os meios» de modo nenhum pertence ao patrimônio doutrinário da Companhia de Jesus ou da S. Igreja. Pode acontecer que um ou outro teólogo se tenha expresso de maneira favorável a tal adágio; deverá ser tido, porém, como voz esporádica que não representa a atitude da Moral católica. Esta inculcará sempre: «Bonum ex integra causa; malum ex quocumque defectu. - O bem só se obtém pela con­sonância de todos os seus constituintes; o mal, ao contrário, já existe desde que haja dissonância de um só dos respectivos elementos».
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Quarta-feira, 30 de Maio de 2007

Consciência e Moralidade: que é a consciência?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 040/1961)
«Que é propriamente a consciência?
Será que diante, da mentalidade moderna ela ainda pode significar alguma coisa ? Não se deveria adaptar o clássico e rígido conceito de consciência às exigências da vida contem­porânea?»
Procurando abranger os aspectos principais do tema, trataremos da tradicional noção de consciência; confrontá-la-emos, a seguir, com o parecer dos pensadores modernos, a fim de firmar conclusões que atendam devidamente à questão proposta.
I. Que é consciência ?
1. Consciência («scientia cum...») é, òbviamente falando, o ato pelo qual se percebe ou apreende algum objeto. Esse objeto pode ser:
os afetos ou as ações como tais do próprio sujeito; sabemos então que fazemos ou estamos fazendo tal ou tal coisa. Tem-se as­sim a chamada «consciência psicológica», que não é senão a pre­sença do sujeito a si mesmo, sem referencia explícita ao Fim Su­premo da vida humana ou a alguma regra de conduta;
os modos como se relacionam nossos afetos e atos com a von­tade de Deus ou com o Fim Supremo da vida humana: «serão atos conformes à Lei de Deus? ou atos incompatíveis com as normas do Senhor?». Em outras palavras: «serão atos moralmente lícitos ou ilícitos?» (sabemos que a moralidade é a relação dos feitos hu­manos com o Fim Supremo ou com Deus). A faculdade que res­ponde a tais questões, avaliando a liceidade do procedimento huma­no, é a chamada «consciência moral». Desta é que havemos de tra­tar no presente artigo.
2. Como se vê, a consciência moral consiste num julga­mento prático proferido pela inteligência sobre a honestidade ou desonestidade de cada um dos nossos atos; é um testemu­nho que, pronunciado no íntimo de cada pessoa, distingue en­tre o bem e o mal moral e tende a levar cada qual a praticar o bem e evitar o mal. Todo homem, por mais primitivo ou rude que seja, possui uma consciência moral, como possui uma consciência psicológica.
O testemunho da consciência pode ser anterior a deter­minado ato; é então testemunho que manda ou proíbe; tem-se assim a consciência chamada «antecedente». Pode também ser posterior a tal ato; é então testemunho que aprova ou desa­prova, desculpa ou acusa; tem-se assim a chamada consciência moral «consequente» ou «posterior». Já S. Agostinho obser­vava: «Conscientiae bonae laetitia paradisus est. - A alegria de uma boa consciência é o paraíso» (ed. Migne lat. 34, 482).
Como quer que seja, esse testemunho interior (seja ante­cedente, seja subsequente) é sempre proferido diante de Deus,.. de Deus clara ou confusamente conhecido, conhe­cido, porém, como Regra Suprema da conduta humana, Regra independente da vontade das criaturas (também o ateu expe­rimenta no seu íntimo o testemunho da consciência, por muito que recuse alguma norma transcendente de conduta). Conse­qüentemente, diz-se que a consciência moral não é senão a prolongação da lei eterna ou do amor ao bem que existe em Deus desde toda a eternidade e que, à semelhança de um raio de luz, vem atingir cada ser humano a fim de o orientar na terra (cf. S. Tomaz, S. Teol. I/II 93, 2c); também se diz que a consciência é a voz de Deus no íntimo de cada indivíduo, voz que comunica a cada um as normas da vida reta.
São palavras de S. Boaventura († 1274):
«A consciência é como o arauto e o mensageiro de Deus; o que ela dita, ela não o dita por direito próprio, mas preceitua em nome de Deus, à semelhança do arauto que promulga o edito do rei; as­sim é que a consciência tem o poder de ligar» (In II Sent., dist. XXXIX a. 1, qu. 1).
3. Os moralistas distinguem da consciência moral, que é o ato de julgar a conduta do homem, a chamada sinderese (em latim «synderesis» ou «synteresis», palavra talvez devida a um lapso de copis­tas do comentário de S. Jerônimo sobre o profeta Ezequiel; terão lido erradamente o vocábulo grego «syneidesis», consciência, trans­crevendo-o para o latim como se fosse «synderesis» ou «synteresis»). A sinderese vem a ser a disposição inata que cada um tem para re­conhecer os primeiros princípios da moralidade; esses princípios são congênitos em todo indivíduo, e com evidencia inelutável se im­põem desde o uso da razão; dentre eles, o mais geral e óbvio soa «É preciso fazer o bem, e evitar o mal». A sinderese é assim o co­nhecimento que habitualmente temos das normas básicas da vida moral; tal conhecimento nas crianças é pouco desenvolvido (o pe­quenino não sabe muito claramente o que é o bem que ele deve fa­zer, nem o mal que ele deve evitar). A sinderese, porém, se vai edu­cando e enriquecendo mediante o estudo e a experiência da vida; o adulto já percebe que o bem consiste em amar não apenas os amigos, mas também os inimigos, consiste em agir não somente por estrita obrigação, mas também por generosidade e magnani­midade.
4. À luz da noção de sinderese, entende-se ainda melhor o que vem a ser a consciência moral: é o ato de julgar resul­tante de um silogismo (ou raciocínio) assim concebido:
«É preciso fazer o bem e evitar o mal------princípio básico da sinderese e de tôda a vida moral; evidente mesmo.
«Ora nas circunstâncias precisas ------------- julgamento da virtude da prudência [1]
(de lugar, tempo, etc.) em que me -------------aplicada a tal situação concreta.
acho, obedecer à autoridade constituída
é um bem, desobeder é um mal».
«Por conseguinte, aqui e agora tenho ---------ditame da consciência.
que obedecer».
Ou ainda:
«É preciso fazer o bem e evitar------------------norma básica da sinderese.
o mal».
«Ora nas circunstâncias concretas -------------julgamento da prudência.
em que me acho, beber mais vinho é
um mal (contraria às leis da natureza) ».
«Por conseguinte, na situação presente ---------ditame da consciência.
tenho que deixar de beber vinho»
Como se vê, à virtude da prudência cabe importante papel na formação do juízo da consciência; é a prudência que afirma ou nega estar tal e tal situação concreta sujeita às normas gerais indicadas pela sinderese e pela lei moral.
5. A prudência, devidamente exercida, pode levar por vezes a conclusões desconcertantes, famoso exemplo:
«É preciso fazer o bem e evitar o mal». -----------norma básica da sinderese.
«Ora restituir a determinada pessoa as -----------consequência particular do
posses (dinheiro ou outros objetos) que -----------princípio geral acima enunciado.
ela tenha confiado a outrem em
depósito, é um bem».
« Acontece, porém, que, no caso concreto ---------consideração da realidade
em que me vejo envolvido, o proprietári0----------concreta, à qual poderiam
que me confiou sua espada em depósito, -----------ser aplicados os princípios
é um doente; está a reclamar a sua arma ----------abstratos da Moral.
para matar a si ou a outrem».
«Por conseguinte, aqui e agora é preciso -----------conclusão ditada pela consciência
no devolver a espada a mil confiada ----------------prudente após o confronto dos
em depósito». -----------------------------------------princípios com a realidade.
Semelhante norma prática deveria eu deduzir, segundo S. Tomaz, S. Teol. I/II 94, 4, no caso de que o proprietário me pedisse seu dinheiro confiado em depósito a fim de o colocar a serviço dos ini­migos da pátria.
A propósito dessa variabilidade dos ditames concretos da consciência, seja lícito frisar bem: a lei moral, tal como ela existe eternamente em Deus e se reflete no íntimo de cada indivíduo, é imutável. As suas normas básicas tem que per­manecer sempre iguais, pois não são senão apelos que Deus dirige ao homem a fim de que este imite a retidão do próprio
Deus, amando o que Ele ama e praticando, do seu modo, o que o Senhor pratica. Ora em Deus não há mudança, mas estabilidade (= sinal de perfeição); por conseguinte, nos prin­cípios básicos da moralidade também não pode haver mudança. Essa imutabilidade, no homem, significa que em qualquer época ou região será preciso fazer o bem e evitar o mal, ... não matar, não roubar, socorrer o indigente, etc. Acontece, porém, que nem todos vêem com a mesma perspicácia as conseqüências desses princípios gerais; nem todos possuem a mesma clarividência para aplicar, como devem ser aplicadas, as normas universais da moralidade às situações concretas.
Essa variabilidade depende ou da educação que alguém rece­beu ou do ambiente em que vive ou - o que é mais grave - de negligencia e menosprezo para com o que diz respeito à vida moral.
No plano biológico, verifica-se que as articulações do organismo deixadas por muito tempo na inércia se vão anquilosando; os olhos conservados por muito tempo em ambiente tenebroso perdem o seu acume... Assim no plano moral a consciência cujos ditames vão sendo sistemáticamente sufocados ou contraditados, torna-se aos poucos atrofiada e cega; a contínua recusa de ouvir as normas mo­rais gera dureza de coração e incapacidade de conhecer elevados ideais.
É muito verídico o adágio: «Quem não vive como pensa, co­meça a pensar como vive». Isto se pode dar tanto nos indivíduos como nas sociedades.
Em virtude dos fatores acima assinalados, o julgamento da prudência e da consciência poderá ser falho ou mesmo errôneo, poderá também oscilar de povo para povo, de época para época ...; isto se dará, porém, em virtude das circuns­tâncias contingentes em que os homens e os povos se acha­rem. Os juízos errôneos em que a consciência de tais homens possa incorrer, serão culpados diante de Deus na medida em que provierem de negligência do sujeito na educação de sua sinderese prudência.
Assim se explica que, embora a lei natural proíba, por exemplo, o morticínio dos inocentes, certos povos o tenham praticado com toda a naturalidade; uma tribo procurava exterminar coletivamente a tribo adversária sem distinguir nesta entre culpados e inocentes. Tal prática se entende pelo fato de que as tradições e as normas de educação desses povos nem lhes sugeriam a necessidade de dis­tinguir, dentro da «massa adversária», entre inocentes e réus. Esse primitivismo moral, por sua vez, se explica ou por terem estado tais povos numa etapa infantil da moralidade, tendendo a se aperfeiçoar, ou por haverem caído em decrepitude moral; pela entrega cons­tante e acintosa ao vício terão aos poucos embotado o seu senso ético.
S. Tomaz atribuía a uma culpada cauterização da consciência o fato de que os antigos germanos, alegando favorecer a educação física da juventude, permitiam a livre depredação dos bens das po­pulações vizinhas; o S. Doutor frisa bem que tal praxe, apesar da moda vigente, ficava e fica sendo contrária à lei da natureza (cf. S. Teol. 1/II 94, 4c e J. César, De bello gallico VI 23).
Também à luz dos princípios acima, entende-se que certas tri­bos primitivas tenham cedido e cedam à poligamia, ao divórcio e à lascívia, sem o mínimo constrangimento. - Seja permitido repetir: tal «naturalidade» não significa que os princípios da moralidade se­jam meramente relativos, mas apenas que essas populações viviam e vivem (seja por infantilidade inocente, seja por decadência culpa­da) em circunstâncias tais que a consciência não via ou não vê com clareza, nos casos concretos, o que a lei moral imutável exige.
Como quer que seja, pretender hoje em dia tomar os exemplos libertinos de povos primitivos como normas de conduta significaria decrepitude moral. É o comportamento dos homens que deve ser adaptado aos ditames constantes da Moral, e não vice-versa; não se­ria lícito, portanto, pretender criar leis novas aptas a justificar os procedimentos arbitrários dos libertinos.
Acrescente-se outrossim que ninguém tem o direito de se deixar ficar voluntariamente num estado de consciência infan­til ou pouco esclarecida. Ao contrário, a dignidade humana exige que todo indivíduo procure viver plenamente como ser racional, deduzindo as últimas conseqüências dos princípios sugeridos pela sinderese. Seria indigno do homem restringir-se a boa fé, isto é, a proceder de acordo com uma consciência sincera, mas pouco ilustrada; faz-se mister que cada um, na medida do possível, se comporte de boa e verdadeira fé, isto é, seguindo uma consciência devotada com toda a sinceridade aos ditames da verdade.
O significado das noções acima será realçado mediante ligeiro confronto com algumas teses da filosofia contemporânea.
II. Mentalidade moderna e consciência moral
1. Os homens de todos os tempos reconheceram em seu íntimo uma voz misteriosa, independente da vontade do indivíduo, pois ela ressoa mesmo quando este não a deseja; tal voz sempre foi tida como eco, ora mais pálido, ora mais vivo, dos ditames de Deus.
A filosofia moderna não pode negar o fenômeno dessa voz da consciência; procura, porém, explicá-lo, reduzindo-o a outros feno­menos de psicologia. Todavia com isto o pensador contemporâneo não elucida senão modalidades ou aspectos laterais da consciência.
Vejamos o que, a partir do séc. XVII, se tem dito de mais re­levante sobre o assunto.
A orientação geral do pensamento moderno é a seguinte: os filósofos tendem a negar os valores morais, reduzindo-os ora ao que é útil, ora ao que é agradável (utilitarismo e he­donismo). Conseqüentemente, a consciência já não é tida como ditame imutável; ela vem a ser simplesmente o reconheci­mento do que é capaz de servir ou dar prazer aos homens; nesse reconhecimento nada há de absoluto, mas tudo é subje­tivo e transitório.
a) Th. Hobbes († 1679) julgava, na base desse relati­vismo, que a consciência é mero produto de educação e cos­tumes; as primitivas leis sociais terão forjado a distinção entre o bem e o mal moral.
«Esses vocábulos - bem, mal, desprezível - são sempre usados em função da pessoa que os emprega. Não existe coisa alguma, à qual tais palavras se possam aplicar de maneira cabal e absoluta; nem há alguma regra geral que distinga entre o bem e o mal, e possa ser deduzida da natureza mesma dos seres. A distinção, na verdade, provém ou do indivíduo humano (onde não há Estado) ou da pessoa que representa o Estado (onde este existe), ou ainda de um árbitro ou juiz, que os homens escolham de acordo comum, fa­zendo do seu julgamento uma regra» (Th. Hobbes, Leviathan I 6. Oxford 1947, 41).
b) Stuart Mill († 1873) desenvolveu essa tese no sentido da sua filosofia associacionista: os homens aos poucos terão associado a determinadas ações as idéias de «utilidade, louvor, preceito, prêmio», ou também as de «proibição, censura, con­denação, castigo», etc. O motivo dessa associação eram, a princípio, vantagens temporais ou o utilitarismo; com o decorrer dos tempos, porém, os povos foram esquecendo tal motivo e passaram a tachar as mencionadas ações como boas ou más em si mesmas...
c) Dentro dessa corrente de pensamento surgiram Darwin († 1882) e Spencer († 1903), que ampliaram as teses dos anteriores, à luz do evolucionismo. Segundo estes pensadores, a consciência moral não seria senão a etapa derradeira da evolução de um «sentido moral» já existente em animais in­feriores, que mostram tendências sociais e altruístas: tendo que viver em sociedade, mantendo relações cada vez mais complexas com seus semelhantes, os homens haveriam culti­vado esse «sentido moral»; a princípio, consideravam-no qual mero esteio do bem comum; depois foram atribuindo valor autônomo às ações moralmente boas. Assim a consciência moral não seria mais do que uma modalidade da adaptação do ser humano ao seu ambiente biológico; também no setor da Moral, poder-se-ia dizer figuradamente: «A necessidade terá criado o órgão».
d) Durkheim († 1917) julgava ser a consciência moral a expressão da adaptação do indivíduo ao ambiente não bio­lógico (como na teoria darwinista), mas social; seria uma espécie de compromisso entre o egoísmo de cada um e os in­teresses da coletividade, compromisso necessário para asse­gurar a vida em comunidade. As convenções sociais - artifi­ciais e variáveis como são - constituiriam o critério para se julgar se algo é moralmente lícito ou ilícito. São palavras de Durkheim:
«Não se deve dizer que determinado ato ofende a consciência comum por ser criminoso, mas, sim, que é criminoso por ofender a consciência comum. Não o reprovamos porque seja ele um crime, mas vem a ser um crime pelo fato de o reprovarmos» (citado por A. Bayet, La morale scientifique. Paris 1905, 143).
Outro representante dessa tendência, Lévy-Bruhl, assim se exprime:
«Uma das principais condições de existência de uma sociedade parece ser certa semelhança moral entre os seus membros. É ne­cessário que todos sintam a mesma repulsa diante de certos atos, a mesma reverencia diante de outros e diante de certas idéias,... que todos se vejam igualmente obrigados a agir de determinado modo em determinadas condições... A consciência moral comum é o foco onde as consciências individuais se acendem. Ela as entretém, e, ao mesmo tempo, e por elas entretida» (ob. cit. pág. 141).
Sem nos deter agora em alguma crítica, passamos a nova escola.
e) Segundo Freud († 1939), a consciência moral não é senão o controle que o «Super-Ego» exerce sobre as forças instintivas do indivíduo, impedindo que este dê livre expan­são às tendências eróticas da sua natureza, a fim de que haja certa «decência» na vida social. O «Super-Ego» ou a consciên­cia moral, por sua vez, não seria senão o reflexo da autoridade
dos pais sobre a criança, autoridade que submete artificial­mente o pequenino às «regras de jogo» na sociedade, provo­cando recalques e complexos no adulto. Conseqüentemente, o freudismo julga haver vantagem em violar por vezes a consciên­cia moral ou o jugo das «convenções decentes».
f) Por fim, na mentalidade existencialista contemporâ­nea, à qual principalmente Sartre deu expressão, dilui-se por completo a noção de consciência moral soberana. Fica a cada qual a liberdade de amoldar as categorias do bem e do mal, do lícito e do ilícito, às circunstâncias concretas, existenciais, em que se encontra; não há, portanto, valores morais perenes, mas a ética varia de acordo com o «bom senso» pessoal do sujeito interessado. Cf. «P. R.» 22/1959, qu. 1.
Como se vê, as escolas filosóficas, do séc. XVII aos nossos dias, embora sigam rumos diversos, são marcadas pela tendência comum a tornar relativos a consciência e seus ditames; não admitem fora do homem (seja indivíduo, seja sociedade) algum critério para dis­tinguir entre o bem e o mal; e do homem mesmo que fazem depen­der estas duas noções. Ora sem dificuldade se percebe que uma tal atitude leva coerentemente à extinção da ordem moral; o bem e o mal, o lícito e o ilícito vêm a ser aquilo que cada um queira; den­tro desses moldes, nem o Estado nem a sociedade podem pretender ser respeitados como autoridades a cujas leis o indivíduo se deva dobrar. Como se poderia desejar de maneira peremptória que um homem se incline ao seu semelhante ? Não são todos os homens iguais? Na verdade, se não se reconhece um fundamento transcen­dente para a ordem moral - Deus mesmo - como o concebe a dou­trina cristã, ficam sendo vãs toda a legislação humana e toda a edu­cação ética.
2. Torna-se oportuno, porém, fixar de mais perto uma ou outra das sentenças acima recenseadas.
a) A teoria darwinista e spenceriana, que reduz o fenô­meno da consciência ao plano do evolucionismo biológico, des­conhece por completo a realidade espiritual da alma humana. Esta é transcendente, não se origina por evolução biológica do corpo; por isto também deve-se-lhe reconhecer uma cons­ciência que não é mero produto de condições biológicas.
Não nos demoramos aqui em tais considerações, pois já foram objeto de estudo em «P. R.» 29/1960, qu. 1; apenas interessa lem­brar que o próprio Darwin, no fim da vida, começou a duvidar de suas teorias, já que provinham de um psiquismo que o cientista in­glês equiparava ao de um animal irracional; poderia ele dar cré­dito à sua pretensa inteligência, se esta se reduzia ao instinto do vi­vente irracional?
b) A propósito da teoria sociológica de Durkheim, de­ve-se dizer que as exigências da vida social contribuem para desenvolver ou também sufocar os ditames da consciência nos adolescentes; a teoria, porém, não explica o surto e a afir­mação renitente de postulados morais em indivíduos que a sociedade combate. Em última análise, as exigências sociais são ocasiões, mas não são causas, do despertar da consciência moral nos indivíduos; elas não criam a consciência, mas a educam ou, por vezes, a deformam, pressupondo-a em todo e qualquer caso. A criança que anda, anda também porque lhe ensinaram a andar, mas fá-lo primeiramente porque tem pernas desde que nasceu!
c) Com referencia à teoria de Freud, não se poderá negar a influencia dos genitores no controle ou na censura que o jovem exerce sobre si mesmo. Contudo será preciso fa­zer notar que, após certos limites, essa influencia provoca o que se chama «infantilismo», ou seja, uma limitação doentia da consciência pessoal, e não a explicitação normal da mesma. Não se confunda, portanto, genuíno senso moral com recal­ques psicológicos; a consciência cristã dá combate a estes.
Em conclusão: todos reconhecem que há uma só verdade e uma só ciência possível da verdade (as proposições de Física, Química ... que se ensinam no Brasil também se ensinam no Paraguai e na China); é certo, porém, que nem todos os homens conseguem apreender do mesmo modo a verdade (al­guns a mesclam com o erro); não obstante, todos aspiram a possuir a verdade, e a fazer dela o padrão do seu modo de pensar. Pois bem; façamos a aplicação deste fato ao tema que acabamos de focalizar: será lógico reconhecer que há uma só Bondade moral e uma só legislação ética natural (pois a Bondade é correlativa à Verdade); não há dúvida, nem todas as consciências a apreendem do mesmo modo (algumas lhe mescam o erro); contudo essa, legislação moral una e uni­versal há de ser tomada como critério soberano para se ava­liar os costumes dos indivíduos e da sociedade. Sejam, por conseguinte, removidos o relativismo ético e a Pendência mór­bida a acomodar as leis morais às modas da sociedade, em vez de se fazer a adaptação dos costumes às normas que sem­pre regeram a moralidade, incentivando nobreza e magnani­midade.
De resto, o relativismo ético que vem mais e mais dominando a filosofia dos últimos séculos não é senão a conseqüência do relativismo metafísico ou do descaso dos pensadores modernos para com tudo que tenha índole de absoluto e transcendente. Esse des­caso, por sua vez, é indicio de cansaço da mente e decrepitude da filosofia. Parece, pois, chegada a hora de reagir e de se reerguerem tanto os ânimos como as consciências!
___
NOTA:
[1] Não se entenda aqui «prudência» na acepção, muito co­mum, de virtude tímida, quase covarde, mas sim, na de virtude que leva em conta devida (sem apreço demasiado nem menosprezo) tudo que deve ser considerado para que o ato humano seja conforme à vontade de Deus.
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Consciência e Moralidade: os diversos tipos de consciência
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 040/1961)
I. Os diversos tipos de consciência
Como se compreende, há mais de um ponto de vista a partir do qual se distinguem modalidades de consciência. Ei-los no esque­ma abaixo:
Consciência:
1) do ponto de vista da con­formida­dade com a lei mo­ral
a) c. verídica ou reta
b) c. errô­nea
invencilvemente er­ronea
vencivelmente er­rônea
(escrupulosa perplexa laxa cauterizada farisaica)
2) Do ponto de vista do grau de as­sentimento
a) c. certa ou firme
b) c. provável
c) c. duvidosa ou he­sitante
3) do ponto de vista da obrigação de­corrente para o sujeito
a) c. imperativa
b) c. proibitiva
c) c. meramente con­selheira
d) c. permissiva
Faz-se mister dizer agora uma palavra sôbre as principais mo­dalidades recenseadas.
1) Do ponto de vista da conformidade com a lei moral
a) Sôbre a consciência verídica ou reta, pouco ou nada há que observar: é o ditame que se apoia em princípios mo­rais autênticos, declarando lícito ou ilícito o que realmente é tal.
b) A consciência errônea é a que parte de falsos prin­cípios morais tidos como genuínos, ou parte de genuínos prin­cípios falsamente aplicados ao caso. Em qualquer das duas hipóteses, declara-se lícito ou ilícito aquilo que de fato não é tal. Os erros de tal consciência devem-se à ignorância ou a defeito de aplicação. Se estas causas podem ser debeladas, tem-se uma consciência vencivelmente errônea (muitas vêzes culpada); dado que não possam ser removidas, a consciência é dita invencivelmente errônea (é inculpada).
Mais precisamente: a consciência invencivelmente errônea é aquela que labuta em ignorância sem que todavia haja faltado dili­gência por parte do respectivo sujeito para conhecer a verdade. Um tal estado de alma não sendo culposo, os erros procedentes de tal consciência não são tidos como pecados formais.
A consciência vencivelmente errônea é a que se ressente de igno­rância que o sujeito pode remover e que ele muitas vezes não re­move ou por negligência ou pelo desejo afetado de não saber para não ser estimulado a mudar de vida. Nestes casos, é claro que o erro vem a ser culposo.
A consciência errônea (com ou sem culpa do respectivo sujeito) subdivide-se, de acôrdo com a situação psicológica da pessoa, em: escrupulosa, perplexa, laxa, cauterizada e fa­risaica.
A consciência escrupulosa é a que, por motivos de pouca monta, julga ou receia que tal ou tal ação seja pecaminosa, quando de fato não é tal. O escrupuloso vive em angústia quase incessante, pois em tudo vê graves deveres e perigos. Muitas vêzes é vítima de estado de alma doentio ou de sistema nervoso abalado.
Merece especial atenção o chamado «escrúpulo de compensação»: costuma versar sôbre um ou outro preceito apenas, cujos porme­nores a pessoa quer observar com o máximo rigor, enquanto é ex­tremamente liberal no tocante às outras normas da moral (em par­ticular, no que se refere ao amor do próximo e à prática da oração). O escrúpulo de compensação é uma espécie de fuga ou auto-ilusão; tem que ser desmascarado e, a seguir, combatido mediante volta enérgica ao cumprimento dos deveres primordiais negligenciados pela fuga.
Não nos detemos aqui sôbre o tratamento dos escrupulosos, pois este assunto deverá ser objeto de questão à parte no próximo núme­ro de «P. R.».
Da consciência escrupulosa distinga-se a consciência delicada, consciência que, movida por vivo amor de Deus, tem o olho aberto até para as mais leves ocasiões de pecado, procurando zelosamente afastar-se de todas.
A consciência perplexa é aquela que, posta diante de um dilema (agir ou não agir ?... agir deste ou daquele modo ?), julga haver pecado em qualquer dos alvitres; sinceramente não vê como evitar a culpa.
Em tais casos, se a decisão pode ser adiada, seja prote­lada; entrementes, a pessoa irá pedir as luzes de um conse­lheiro prudente para resolver a situação. Caso não seja possí­vel contemporizar, o interessado optará pelo que julgar ser «o pecado menor», comprovando assim a sua boa intenção. É claro que quem age numa situação dessas, em verdade não comete pecado algum, pois, para que haja pecado, é necessária plena liberdade de escolha entre o bem e o mal - coisa que a pessoa perplexa julga não ter.
A consciência laxa ou relaxada é a que, sem motivos su­ficientes ou com leviandade, julga não incorrer em pecado ou incorrer em falta leve, quando na realidade comete falta grave. Resulta de tibieza no serviço de Deus, tibieza que há de ser vencida mediante os recursos insinuados em Apc 3,16-20: exame de consciência, penitência, zelo na prática das boas obras, aceitação generosa das provações salutares que a Pro­vidência Divina envia.
A consciência cauterizada representa um grau ainda mais evoluído de frouxidão; embotada pelo hábito inveterado de pecar, já quase não percebe a iliceidade das suas faltas.
A consciência farisaica é a que sem dificuldade aprova atos gravemente ilícitos, ao passo que exagera a hediondez de feitos de menor importância (cf. Mt 23,24).
2) Do ponto de vista do grau de assentimento
a) Diz-se que alguém tem a consciência certa quando, sem temor prudente de errar, julga com firmeza e segurança ser tal ou tal ação lícita ou ilícita.
Note-se bem: a consciência certa difere da verídica ou reta, pelo fato de que, embora isenta do temor de errar, pode não estar de acôrdo com a verdade ou com as normas objetivas da Moral; a cons­ciência verídica, ao contrário, além de gozar de firmeza subjetiva, goza de plena concórdia com a verdade ou com as leis objetivas da verdade. Pode haver, por exemplo consciência certa (firme, segu­ra), mas não verídica, em quem julgue com toda a boa fé ser a men­tira lícita em tal e tal caso (as normas objetivas da Moral repudiam a mentira em todo e qualquer caso; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6).
b) A consciência provável é aquela que, embora tema errar, julga ser lícita ou ilícita uma determinada ação, basean­do-se para isto em razões não desprezíveis, isto é, ou em raciocínio concatenado ou em testemunhos de autoridade.
c) A consciência duvidosa deixa seu juízo suspenso ou, caso o formule, não vê por que não aceitar o alvitre oposto.
3) Do ponto de vista da obrigatoriedade
A consciência vem a ser imperativa, proibitiva, meramente conselheira ou permissiva, desde que preceitue, vede, acon­selhe ou apenas faculte determinada ação.
Diante de todos êsses possíveis estados de alma, torna-se agora oportuno averiguar
II. Os deveres do homem em relação à sua consciência
A matéria pode-se compendiar sem dificuldade dentro das qua­tro seguintes regras:
1) Toda e qualquer pessoa tem a obrigação de empregar os meios oportunos para possuir uma consciência verídica ou reta.
Compreende-se bem o «porque» desta proposição. A cons­ciência julga os atos humanos à luz de Deus e da salvação eterna; trata, portanto, de assunto de importância capital. Em conseqüência, a ordem reta das coisas exige da parte do homem todo o zelo a fim de que os pronunciamentos da sua consciên­cia sejam adequados e orientem a pessoa pelos caminhos de­vido:.. Negligência na formação da consciência vem a ser ne­gligência ou menosprezo do Bem Supremo. Ora tal negligên­cia, caso seja voluntária, é culposa, constituindo uma injúria não sòmente a Deus, mas também à própria dignidade humana.
Em verdade, qual aplicação mais nobre para a sua inteligência poderia o homem conceber do que a de procurar reconhecer os trâ­mites que levam ao Bem Supremo? Qual pesquisa teria objeto mais importante? Qualquer outra ocupação só dignificaria o homem de­pois de esclarecida essa questão capital.
Caso alguém, por negligência, proceda em desacôrdo com as normas objetivas da Moral, contentando-se com um julga­mento superficial e inadequado, torna-se culpado do erro assim cometido. Está claro, porém, que o Senhor não obriga nin­guém a esfôrço sobrehumano na formação da sua consciência ou na procura das normas objetivas da Moral. As exigências de Deus visam erguer e alegrar o homem; nunca o devem abater ou desanimar. Deus sumamente transcendente é tam­bém sumamente paterno e compreensivo da fraqueza humana.
Os meios principais para formar uma consciência verídica são:­
a) diligência para chegar ao devido conhecimento das leis mo­rais. Não se requer a máxima diligência que se possa imaginar, mas­ a que esteja ao alcance de cada um;
b) a procura do conselho de pessoas prudentes e comprovadas nos caminhos de Deus;
c) oração perseverante;
d) o afastamento dos obstáculos respectivos, como seriam pai­xões e maus hábitos voluntários, os quais sempre obcecam a cons­ciência.
2) Todo homem está obrigado a observar estritamente os preceitos e as proibições de sua consciência, dado que esta a) seja verídica ou b) seja invencivelmente errônea.
Note-se bem que na formulação acima não se trata de permis­sões nem de conselhos dados pela consciência, pois em tais casos não há obrigação de seguir o respectivo alvitre.
A necessidade de obedecer às ordens ou proibições da consciência verídica evidencia-se fàcilmente. Com efeito, a consciência verídica é a que faz a aplicação fiel da lei à situa­ção precisa -em que a pessoa se acha; ela vem a ser, portanto, a expressão exata da lei moral em tal caso concreto. Por isto o ditame de tal consciência obriga tanto quanto a própria lei justa.
Quanto à obrigação de seguir a consciência invencívelmente errônea, ela se depreende do seguinte racioncínio:
a qualificação moral (boa ou má) de uma ação deduz-se do objeto dessa ação: objeto bom constitui ação boa, objeto mau constitui ação má..., deduz-se, porém, do objeto não como ele é em si, mas como ele é apresentado (ou como ele é percebido) pela cons­ciência de quem está agindo. Assim o julgamento da cons­ciência é que vem a ser a norma imediata da moralidade.
Por conseguinte, caso a consciência julgue ser tal ação obrigatória e tal outra proibida (julgue talvez erradamente, mas sem culpa sua), há obrigação estrita de seguir, porque no caso o ditame da consciência é o ditame da moralidade. Quem quisesse agir contra tal ditame, proferido nessa boa fé, estaria querendo algo que aos olhos do sujeito seria mau; querer, porém, o mal como mal é pecado.
Eis algumas aplicações desta norma: quem, de boa fé plena ou sem a mínima culpa própria, julga ter que mentir para salvar seu amigo, deve mentir; mentindo, não cometerá pecado formal. Se, ao contrário. deixar de mentir, cometerá pecado formal, porque estará contradizendo a sua consciência (embora esta erre de boa fé). - O católico que, em ignorância invencível ou não-culpada, julgue ser o dia N. dia santo de guarda (embora não o seja), tem obrigação de assistir à S. Missa nesse dia; não o fazendo, peca, porque está des­prezando a lei moral que ele julga existir no caso.
Breve reflexão ainda se impõe: como acaba de ser dito, o êrro não-culpado ou «de boa fé» não impede que a conduta do respectivo sujeito possa ser moralmente boa; contudo o erro não é o ideal, de sorte que ninguém pode desejar «dei­xar-se ficar» nêle; terá que aspirar sempre à plenitude da luz; em caso contrário, o êrro deixaria de ser «erro de boa fé» e já não usufruiria dos privilégios da boa fé; tornar-se-ia erro culpado.
A guisa de ilustração, citamos o seguinte testemunho de J. H. Cardeal Newman, que assim se referia à consciência invencivelmen­te errônea
«Sempre considerei a obediência à consciência moral, mesmo er­rônea, como sendo o melhor caminho para chegarmos à luz» (Apo­logia pro vita sua e. 5).
Uma tal obediência corrobora a vontade no amor do bem. Ora o amor do bem dispõe a inteligência a reconhecer, por conaturalidade ou afinidade, o Bem em sua plenitude ou tal como Ele é na ver­dade. Assim o erro, numa pessoa de boa fé, tende a se limitar e a se extinguir a si mesmo, cedendo à verdade.
3) Não é licito seguir a consciência vencívelmente errô­nea: contudo também não é licito agir contra tal consciência. Por conseguinte, antes da ação, torna-se necessário dissipar o erro de consciência.
Em uma palavra: quem age com consciência vencívelmente errônea, nunca se isenta de culpa, quer obedeça, quer contradiga à sua consciência.
Para compreender esta proposição, faz-se mister frisar o sentido preciso que aqui tem a expressão «consciência vencívelmente errônea»: significa a consciência que sabemos estar insuficientemente informada e que podemos retificar, caso o queiramos. Manter a consciência em tal estado implica em negligência ou descaso da pessoa na procura da verdade e do bem; implica portanto num estado de desordem moral. E agir de acordo com os julgamentos errôneos que se originam dessa negligência e desordem, eqüivale a reafirmar negligência e desordem culposas; eqüivale, por conseguinte, a uma culpa.
Observe-se que a norma acima veda não somente obedecer à consciência vencívelmente errônea, mas também contradizer-lhe... Este outro membro da proposição embora pareça desconcertante, também se entende sem dificuldade: a pessoa que resolva sumária­mente contradizer à sua consciência (que ela sabe estar vencível­mente no erro) e não procure devidamente esclarecer-se, deixa-se ficar voluntariamente na falsidade, aceita a negligência em relação ao último Fim, e expõe-se ao perigo de cometer mais uma ação errada. Ora nisso tudo há culpa grave.
Por conseguinte, para quem está no erro professado por descaso ou má fé. só há um alvitre reto: dissipar quanto antes esse erro, a fim de poder agir esclarecidamente. Dado que não possa procurar esclarecer-se, abstenha-se de agir no caso. E, se não lhe é possível deixar de agir, faça o que parecer mais seguro.
Está claro, porém, que não peca a pessoa que, embora aja com consciência vencívelmente errônea, de modo nenhum se expõe ao perigo de pecar (p. ex., dando uma esmola ao seu alcance).
4) Somente a consciência certa (não a hesitante nem a provável) pode ser tomada como reta norma dos costumes.
Em outros termos: Nunca é lícito agir com consciência duvidosa ou com a consciência a hesitar entre razões positivas opostas umas às outras.
1. Compreende-se bem tal norma. A dignidade humana exige que todo homem, ao agir, aja de acordo com as leis objetivas do respectivo agir: o pintor, ao pintar, deve proce­der segundo as leis da arte da pintura; o cantor, ao cantar, ... segundo as leis do canto; o médico, ao atender aos doentes, ... segundo as normas da medicina; e todo homem, pelo fato mesmo de ser homem,... sempre conforme as regras da Moral, que tornam o homem bom na sua acepção mais cabal, ou seja, enquanto é ser racional. Ora, para conseguir esta proximidade do ideal, requer-se que o indivíduo use de dili­gencia a fim de reconhecer quais são as normas objetivas que o devem reger (no caso que nos interessa:... quais são as normas da moralidade); requer-se mesmo que use de tanta diligência quanta for necessária para gerar a certeza (ao me­nos subjetiva) de haver encontrado a trilha devida. Enquanto não tem certeza, a pessoa se acha naturalmente em dúvida e fica sujeita ao perigo de violar as leis morais. Agindo, não obstante, com dúvidas voluntariamente entretidas, tal pessoa aceita o risco de infringir a Moral e de pecar - o que já é culposo.
Note-se que o esforço para apreender as normas objetivas da moralidade pode ficar em parte frustrado (consciência certa ou fir­me não é necessáriamente consciência verídica, como já observamos à pág. 171). Em todo caso, tendendo à veracidade objetiva, pes­soa deve chegar ao menos à certeza subjetiva; o seu esforço lhe me­recerá ao menos a vantagem de ficar sabendo por que faz o que faz, ... vantagem de dominar a situação, em vez de se deixar mór­bidamente dominar por motivos menos razoáveis.
2. A certeza que se requer ao se falar de consciência «certa», não é certeza metafísica nem certeza física, mas certeza moral.
Por «certeza metafísica» entende-se a que se deriva de conceitos essenciais e imutáveis; é certeza que jamais pode sofrer contradi­ção; está envolvida, por exemplo, nas proposições: «Deus é uno; um círculo não pode ser quadrado; o todo é maior que qualquer das partes...».
Por «certeza física» compreende-se a que se baseia no curso na­tural das coisas; será firme, a menos que se dê algum portento na natureza. Assim é fisicamente certo que «cedo ou tarde todo ho­mem há de morrer»..
Por «certeza moral» entende-se a certeza que exclui toda dúvi­da razoável ou todo motivo sério de duvidar. Assim posso ter por moralmente certo que João, amigo bem conhecido, não mentirá; ... que a mãezinha não dará veneno a seu filhinho, etc.
Conforme os autores, basta a certeza moral para que a cons­ciência se torne reta norma de vida. Também esta posição se entende sem dificuldade ao se tratar de atos humanos, livres e con­tingentes, é muitas vezes impossível conseguir certeza absoluta (me­tafísica) ou mesmo certeza física; é preciso contentar-se com cer­teza moral, e, como observam os mestres... certeza moral que, em­bora se apoie em sólidos argumentos, não pode (por inculpada ca­rência de luzes) excluir um leve receio de erro. - Já que ninguém está obrigado ao impossível, é somente este tipo largo de certeza que se requer a fim de que haja retidão de consciência.
Pergunta-se agora: não haverá meios que possibilitem à cons­ciência duvidosa chegar à certeza moral ?
III. Os princípios reflexos
Para ajudar a consciência hesitante a conseguir a certeza necessária, os moralistas indicam algumas vias, que, a guisa de complemento, vão aqui sumariamente enunciadas. Agru­pam-se sob dois grandes títulos:
a) vias diretas, tais como o estudo mais aprofundado da situação, a consulta de bons livros ou de pessoas sábias e prudentes;
b) vias indiretas ou princípios reflexos. Os autores enu­meram normas gerais que de algum modo projetam luz sôbre as diversas situações concretas, contribuindo para solucioná­-las. Tais normas se reduzem todas à seguinte regra, que, inegávelmente, exprime grande sabedoria:
«In dubio standum est pro quo stat praesumptio.»
Ou seja: nos casos de dúvida, deve-se optar pelo alvitre mais recomendado pela praxe comum ou pelo direito vigente. Em outros termos: as anomalias e aberrações que possam ocorrer no desenrolar dos acontecimentos, devem ser prova­das, não serão simplesmente pressupostas; o juízo da cons­ciência, portanto, não se baseará sobre exceções que, embora sejam possíveis, seriam gratuitamente supostas. Conseqüen­temente, levem-se em conta as seguintes regras particulares:
Delictum non praesumitur, sed probari debet.
Um delito não é coisa que sem mais se presuma ter acontecido, mas é algo cuja existência deve ser demonstrada.
In dubio favendum est reo.
Na dúvida, é preciso poupar o acusado, até que se prove o seu delito, pois de antemão não se pode supor seja alguém criminoso.
In dubio melior est conditio possidentis.
Na dúvida, quem possui algum objeto não pode ser despojado do mesmo antes que se prove não ser ele o legítimo possessor.
In dubio praesumptio stat pro superiore.
Na dúvida em que o superior (o legislador) é posto em causa, supõe-se tenha ele razão, pois é de se admitir haja sido feito Supe­rior por possuir particular idoneidade.
In dubio standum est pro valore actus.
ou: In dubio omne fartum praesumitur recto factuni.
Na dúvida, o que foi feito deve ser considerado solidamente fei­to; falhas e vicios hão de ser devidamente evidenciados.
Factum in dubio non praesumitur, sed probari debet.
Na dúvida da ocorrência de algum fato, não se proceda como se tivesse ocorrido, mas primeiramente prove-se que ocorreu.
In dubio iudicandunk est ex ordinarie contingentibus.
Ou: Ex communiter contingentibus prudens fit praesumptio.
Daquilo que comumente costuma acontecer, pode-se tentar con­cluir com prudência o que no caso presente terá acontecida.
Alguns moralistas acrescentariam a seguinte regra, que outros, mais acertadamente, não aceitam:
Lex dubia non obligat.
A lei duvidosa não obriga. [1].
Como se compreende, tal norma é apta a provocar árduas con­trovérsias (a dificuldade está em avaliar quando é que a lei se tor­na duvidosa e como se pode averiguar que ela é tal). Todos os au­tores, porém, concordam em reconhecer que o princípio controvertido não tem aplicação nos quatro casos seguintes:
- na administração dos sacramentos. A validade dos sacra­mentos é de importância capital para o culto divino e o bem das al­mas. Dai não ser lícito utilizar matéria ou forma que de algum modo possam tornar duvidosos os seus efeitos; por conseguinte, todas as cautelas razoáveis hão de ser observadas nesse setor, evitando-se uma casuística demasiado sutil a respeito do que seria e não seria estritamente de obrigação;
- na procura dos meios necessários à salvação eterna. É pre­ciso que todos façam o que for humanamente possível para viver e morrer na graça de Deus. Portanto a ninguém é lícito expor-se, sem motivo imperioso, a perigo próximo de pecar gravemente, apoian­do-se apenas na presunção de que «talvez não caia» (certas opiniões, por exemplo, concernentes à castidade são aceitáveis em teoria, mas na prática vêm a ser, para muitos, gravemente perigosas; não será lícito, pois, segui-las sem discernimento ponderado). Alguém que não possua clareza em questão de fé, não tem o direito de se basear em probabilidades, dispensando-se de procurar zelosamente a ver­dade e a via da salvação.
- em perigo de grave dano (espiritual ou temporal) para o próximo ou para a sociedade. Principalmente o escândalo há de ser evitado; em vista disto, pode acontecer que alguém deva observar uma lei da qual provavelmente estaria dispensado (cf. 1 Cor 8 13; Rom 14). Os direitos certos do próximo exigem respeito; em conseqüência, não é lícito a um juiz proferir sentença de acordo com alguma opinião meramente provável sem levar em conta opiniões contrárias mais prováveis (cf. Denzinger 1152); quando duas par­tes litigantes parecem ter cada qual em seu favor razões igualmente prováveis, o árbitro lhes deve sugerir a repartição dos direitos ou a aceitação de acordo amigável;
- em perigo de vida do próximo. O médico, portanto, tem a obrigação de empregar os tratamentos e remédios mais seguros; in­corre em falta se, sem imperiosa necessidade, lançar mão de ingre­dientes duvidosos. Ninguém tem o direito de beber uma poção da qual suspeite seja gravemente venenosa. O caçador não pode atirar, caso não saiba exatamente se o objeto visado é homem ou animal de caça.
Após a apresentação destas diversas regras, que forne­cem valiosa contribuição para solucionar casos perplexos, no se poderá deixar de lembrar, à guisa de conclusão, que o cristão deve, acima de tudo, tender a se configurar generosamente ao seu Exemplar - o Cristo Jesus - sem se perder em casuís­tica mesquinha; o seu propósito não será propriamente o de defender os seus direitos e as suas liberdades perante a lei moral, mas antes o de chegar o mais perto possível do ideal que o Cristo Jesus apontou a seus discípulos e que ressoa de maneira grandiosa no sermão sobre a montanha (Mt 5-7)!
____
NOTA:
[1] Tal proposição se pode desdobrar na seguinte:
«É lícito seguir uma opinião realmente provável em si mesma, ainda que haja outras opiniões mais prováveis ou seguras sobre o mesmo assunto».
Esta regra de Moral é aceitável, contanto que se lhe façam as quatro restrições que no texto vão enunciadas.
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Terça-feira, 27 de Março de 2007

Consciência e moralidade: roubar em extrema necessidade
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 278/1985)Em síntese: São Tomás de Aquino e os moralistas católicos ensinam que, em caso de extrema necessidade, isto é, diante do perigo iminente de morte, é lícito a um indigente apropriar-se de bens alheios na medida em que estes lhe sejam indispensáveis para salvar a sua vida (ou a vida do próximo). Note-se que a grave necessidade não basta para justificar tal pro­cedimento, mas requer-se a extrema... Requer-se também que o indigente, ao retirar bens do próximo para não morrer, não retire mais do que o necessário nem acarrete para o proprietário iminente perigo de morte...
Tais princípios de Moral, lembrados pela Campanha da Fraternidade/85, não deveriam servir para estimular roubos e assaltos. A Campanha da Frater­nidade foi instituída para fomentar entendimento e benevolência mútua entre os homens, filhos do mesmo Pai celeste, e não para incitar uns contra os outros.
***
A Campanha da Fraternidade 1985 adotará por tema «Pão para quem tem fome». Nos comentários a tal slogan, lê-se que é lícito «tirar coisas dos outros» em casos especiais, sem que isto se constitua em furto ou roubo. Esta afirmação é apoiada em dizeres de S. Tomás de Aquino († 1274), grande doutor da Igreja. Ora a temática assim formulada tem sus­citado dúvidas e ansiedades. Pergunta-se: que disse propria­mente S. Tomás de Aquino? Como definir os limites do lícito e do ilícito no «tirar as coisas dos outros»?
É precisamente a tais questões que dedicaremos as pági­nas seguintes. Deve-se notar que tal temática era mais estu­dada pelos autores antigos do que pelos contemporâneos. Na explanação subseqüente, valer-nos-emos da obra de Dominicus Prümmer O.P., um dos melhores moralistas da primeira metade do século XX. Em seu «Manuale Theologiae Moralis secundum principia S. Thomae Aquinatis», ed. nona, tomo II, Friburgi Brisgoviae 1940, pp. 82-84, o autor propõe conside­rações que podem ser tidas como típicas da doutrina comum nessa matéria.
UM PRINCÍPIO
«Em caso de extrema penúria é lícito retirar dos bens alheios a quantia suficiente para que o indigente se livre de tal penúria».
Assim pensam os moralistas católicos em geral, como tam­bém os Códigos Civis de vários países.
1. A fundamentação da tese é a seguinte:
Deus concedeu a terra a todos os homens para que a habi­tem e se sirvam dos seus bens. Ora todo homem inocente tem o direito natural de viver; e, como só pode viver se utiliza os bens da terra, torna-se-lhe lícito, em caso extremo, apropriar-se dos bens que lhe sejam necessários para escapar da morte e garantir a sua sobrevivência. Em tais circunstâncias, o indi­gente não está roubando ou não está injustamente retirando a propriedade alheia. - Esta proposição não nega o direito à propriedade particular, pois tem em mira apenas os casos extremos.
2. O princípio assim enunciado requer algumas explica­ções:
a) Somente os casos de extrema necessidade, não os de grave ou grande penúria, justificam o «retirar bens alheios».
E que se entende por extrema necessidade? - Os autores não são unânimes a respeito: geralmente apontam «próximo perigo de morte» ou também «próximo perigo de perder um membro importante do respectivo corpo». O motivo de res­tringir a liceidade aos casos de extrema penúria é óbvio: os moralistas e legisladores querem evitar furtos e assaltos
indis­criminados, que violariam o princípio da propriedade particular e a paz da sociedade. Donde se segue que aos mendigos, como geralmente ocorrem nas ruas das grandes cidades, não é lícito retirar bens alheios sem licença do respectivo proprietário. O Papa Inocencio XI condenou a seguinte proposição de autores laxistas: «É lícito roubar não só em extrema necessidade, mas também em grave penúria» (Denzinger-Scliónmetzer, Enquirídio n° 2136 [1186]).
S. Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica II/II, qu. 66, art. 7, interroga: «Se é lícito furtar por necessidade». E res­ponde
«Se a necessidade for de tal modo evidente e imperiosa que seja indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance - por exemplo, quando corremos perigo iminente de morte e não é possível salvarmo-nos de outro modo - então podemos licitamente satisfazer à nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-nos delas manifesta ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a natureza de furto ou rapina».
O S. Doutor acrescenta que não somente em caso de ex­trema necessidade do sujeito, mas também em extrema indi­gência do próximo, é lícito a alguém retirar os bens alheios suficientes para que não morra: assim a mãe que não tenha alimento para seu filho posto na iminência de morrer de fome, pode apropriar-se do alheio na medida do necessário para sal­var da morte o seu filho: «Em caso de semelhante necessi­dade, também podemos apoderar-nos da coisa alheia para socor­rermos ao próximo assim necessitado» (ib. ad 3).
b) Não é lícito retirar mais do que o necessário para que a pessoa indigente se salve da morte ou salve o seu próximo.
Por conseguinte, se, para escapar da morte, baste a alguém tomar de empréstimo um bem alheio, não lhe é lícito apro­priar-se desse bem. Uma vez passada a extrema necessidade, é preciso restituir o bem alheio, caso ainda exista. Caso não mais exista [1], os moralistas julgam que não há estrita obriga­ção de restituir o equivalente ou de ressarcir o proprietário (ainda que o indigente tenha condições de o fazer).
c) Mesmo em extrema necessidade não é lícito tirar bens alheios, se o proprietário cair também ele em extrema neces­sidade em decorrência de tal gesto.
Esta proposição se explica pelo princípio «melhor é a con­dição de quem está de posse» (melior est conditio possidentis). Donde se segue que, se duas pessoas sofrem naufrágio, mas uma só (mais fraca e inexperiente) possui um salva-vidas, não é lícito à outra pessoa arrebatar-lhe o salva-vidas, pois isto colocaria o próximo em extremo perigo.
REFLEXÃO FINAL.
Verifica-se que o princípio firmado por S. Tomás de Aquino e adotado pelos moralistas em geral tem fundamento lógico e plausível. Para corroborar esta observação, podem-se citar os Códigos de Direito Civil que formulam o mesmo princípio, reconhecendo o «furto famélico» [1].
É preciso, porém, que o fato de se trazer à tona tal norma da Moral e do Direito não se torne ocasião de maior número de furtos e assaltos em nossa sociedade. Não sirva de justifi­cativa para que pivetes, «trombadinhas» e outros tipos de ladrões recrudesçam na prática do mal, recorrendo falsamente ao principio de S. Tomás evocado pela CNBB. A Campanha da Fraternidade, por seu nome mesmo, tenciona avivar os sen­timentos de fraternidade entre todos os homens, fomentando o perdão mútuo e a reconciliação; jamais poderá servir para incitar uns contra os outros ou para estimular o furor das ondas de assalto.
____
NOTA:
[1] O que geralmente ocorre, pois se trata, na maioria dos casos, de retirar alimentos para matar a fome.
[2] A palavra "furto" aí ocorre impropriamente. Trata-se de um roubo materialmente falando, não, porém, em sentido formal ou estrito da palavra. Com efeito, tal "furto" não é algo de injusto, não fere a justiça; por isto não é roubo propriamente dito.
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Consciência e moralidade: censura: a favor ou não?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 196/1976)
Em síntese: A censura de livros, filmes, peças de teatro e novelas de televisão está em foco.
Na verdade, assim como o Estado é incumbido de promover a boa escola e a sadia alimentação dos cidadãos, controlando o sistema educacional e os postos de produção e venda de gêneros, assim também o Estado deve interessar-se por essa forma de escolarização, hoje em dia tão divulgada, que são os meios de comunicação social; ao Governo compete zelar para que tais meios contribuam para formar autenticamente e não para deformar a opinião pública.
O bem e o mal não são categorias meramente subjetivas, mas decorrem da natureza do próprio homem, que tem suas leis morais naturais. Seguir essas leis naturais é condição de humanização e engrandecimento da criatura humana. Em conseqüência, um artista que se desumaniza em nome da arte, já não é autêntico cultor da arte. Uma arte imoral já não é arte. Conforme os antigos gregos, o belo e o bem estão inseparavelmente associados entre si, de modo que quem produz um belo mau ou degradante, simplesmente não produz o belo.
É a estas conclusões que estão voltando pensadores e legisladores contemporâneos (aduzidos no corpo deste artigo), ao lado de outros que estimulam a pornografia; como quer que seja, esta parece ter atingido um ponto de saturação tal que o bom senso a repudia em nome da maturidade de pensamento. - A verificação destes fatos abona o controle que a censura, praticada sem partidarismo, possa exercer em favor do bem comum da nossa sociedade.
***
Comentário: De vez em quando volta à baila o tema «censura». Trata-se do controle exercido pelo Governo sobre livros, revistas, filmes, novelas, peças de teatro, etc. No Brasil existe o Decreto-lei 1.077 de 26 de janeiro de 1970, que impõe a censura e que tem sido alvo de comentários da parte dos interessados, tanto do mundo dos artistas como da imprensa.
Abaixo analisaremos a discussão que se vem travando em torno do assunto. Frisamos bem que não virão ao caso as modalidades de realização da censura no Brasil, mas apenas o fato mesmo da censura: deve ou não haver censura de livros e obras de arte por parte do Estado?
Fica também assim dito que não discutiremos a censura da índole política, ou seja, o banimento de livros e escritos que contrariem a ordem pública. Deve-se admitir que todo Governo possa dispor dos meios necessários para exercer seus planos em favor do povo que ele governa.
O assunto «censura da arte» já foi abordado em PR 101/1968 PP. 216-223. Voltamos ao mesmo nestas paginas, procurando abordá-lo sob os aspectos novos que nos últimos anos se têm apresentado.
Examinemos os principais argumentos que recentemente têm sido levantados contra a censura.
1. Indevida intrusão
Tem-se dito:
"Os escritores e empresários devem ser livres para apresentar ao público os artigos e os enredos que julguem oportunos. Os cidadãos, por sua vez, hão de escolher por si as leituras e os divertimentos que lhes aprazem, sem intervenção do Estado nesse setor".
Em resposta, observa-se:
Os livros e os espetáculos (sejam de cinema, sejam de teatro, sejam de televisão) constituem hoje em dia poderosa fonte não só de informação, mas também de formação ou deformação. São verdadeiras escolas para o grande publico. Seu poder de influência é tanto mais eficaz quanto mais dissimulada ou sorrateira é a sua ação. Diante de alguém que fala, o ouvinte que não concorda, mais facilmente se insurge e protesta do que diante de um livro ou um espetáculo: este vai penetrando subliminarmente no íntimo do seu cliente, enquanto o leitor ou espectador julga que esta repudiando o livro ou o espetáculo, subconscientemente esta sendo mais e mais marcado pelo enredo destes; vai sendo transformado sem que o sinta; um belo dia está «convertido»... talvez sem que o saiba plenamente e sem que alguém possa dizer que o converteu (o que é importante para o «convertido»).
Os livros e os espetáculos «ensinam» não de maneira teórica, mas em termos concretos, apresentando modelos de vida ou padrões «atualizados» e empolgantes. Tais padrões exercem influência especialmente no público modesto e inculto; todavia também nas classes mais doutas da sociedade podem ter enorme repercussão, visto que todo ser humano é atingível pelas modernas técnicas da sugestão e da propaganda, mesmo que não o queira; a moderna Psicologia reconhece, com numerosos dados experimentais, o poder enorme dos meios de comunicação social e dos recursos da propaganda para formar ou deformar a opinião pública e os costumes sociais.
Ora o Estado, ao qual incumbe o dever de promover a ordem pública e os retos costumes da sociedade, não pode deixar de se interessar por certos setores nos quais se decidem com especial razão a prosperidade ou a desgraça da sociedade. Entre esses setores estão certamente a escola, a alimentação e os méis de comunicação social. Assim como ao Governo compete acompanhar a rede de escolas no país, indicando-lhes normas que garantam a educação e a instrução dos cidadãos, compete-lhe também acompanhar essa outra escola que são os livros e os espetáculos. Estes (especialmente os espetáculos) não são meros passa-tempos ou divertimentos, mas, sim, fatores de saúde ou de morbidez mental e moral. E, assim como o Estado tem o dever de zelar pela saúde pública, controlando os produtos alimentícios, os remédios e outros artigos de consumo, assim também lhe toca a grave incumbência de defender e fomentar a saúde mental e moral dos cidadãos, que certamente está intimamente relacionada com os meios de comunicação social.
Como se compreende, toda função de controle de atividades alheias é por si mesma, pouco simpática. Além disto, pode ser exercida segundo critérios arbitrários, suscitando talvez injustiças e prejuízos que molestem certas pessoas. - Não seria lícito negligenciar estas eventualidades. Todavia elas recaem sobre o modo como a censura é exercida e não tornam inválido o princípio de que o Estado há de velar pelo bem comum mental e moral da sociedade ameaçada pêlos enredos de livros, filmes, novelas...
Esse dever do Governo é tanto mais compreensível quanto mais se sabe que hoje os divertimentos são muitas vezes intencionalmente explorados para fins comerciais, pornográficos e ideológicos. Empresários e autores menosprezam as conseqüências deletérias que de seus espetáculos decorram, desde que prevejam apreciável lucro financeiro. A muitos produtores é tão somente o IBOPE que importa, mesmo que tenham de pôr em xeque valores morais do público, como a fidelidade, a veracidade, o casamento bem construído, a dignidade humana, valores dos quais muitas vezes dependem a saúde psíquica e física dos cidadãos e o bem comum da sociedade. Por isto é que toca ao Governo civil a tarefa de vigiar para que os divertimentos propostos ao público não se tornem escolas de crimes, vícios, deboche, ruptura de lares, infelicidade social, etc.
De modo especial, e independentemente da censura do Governo, compete aos pais de família interessar-se pelo tipo de espetáculos a que seus filhos assistem na televisão. Dizem os peritos que todos os dias doze milhões de crianças brasileiras, entre dois e onze anos de idade, permanecem cerca de três horas e meia diante da televisão. Aos doze anos, cada uma atinge 13.000 horas na frente do vídeo. Nessa idade e em tão curta vida, terão visto 100.000 casos violentos. - Ora, segundo a maioria dos psicólogos e educadores, os programas violentos preparam indivíduos de impulsos agressivos.
Convém, pois, que pai e mãe acompanhem seus filhos junto à televisão, ajudando-os a distinguirem o bem do mal, o heróico do grotesco, o produtivo do parasita. Completem as informações e os conceitos, simplifiquem o complicado, mostrem em tom liso e amigo onde possam estar os verdadeiros valores de um programa.
Mais: bons psicólogos e sociólogos acham que o atrativo da criança pela televisão se deve, de certo modo, a carência de afeto e segurança; vivendo conflitos emocionais, afetivos e sociais, a criança se refugia junto à televisão, a fim de fugir a alguma relação social não satisfatória. Donde se vê a necessidade de que pai e mãe ofereçam à criança os valores do autêntico amor e da compreensão que ela em vão vai procurar na televisão.
Eis, porém, que se pode replicar:
2. Quem define o bem e o mal?
Objeta-se:
“O bem e o mal são categorias subjetivas, de modo que não há pontos de referencia objetivos e universais para determinar se um enredo é moralmente sadio ou não. Se alguém julga que não há mal algum em exibir ou ver enredos lascivos e sensuais, ninguém tem o direito de lho impedir".
- Deve-se responder que, na verdade, existem, sim, padrões objetivos do bem e do mal, válidos para todo e qualquer ser humano. Estes padrões objetivos são os ditames da lei natural que todo indivíduo ouve dentro de si, queira-o ou não, independentemente de sua cultura ou época. Assim a consciência moral incute a todo homem o princípio: «Pratica o bem, evita o mal»; este princípio se vai desdobrando, aos poucos, em outros, como «Não matar», «Não roubar», «Não proferir mentira», «Não ser falso», «Atender ao próximo necessitado», etc. No tocante à pornografia, é preciso dizer- a natureza deu ao homem a função sexual a fim de que os seres humanos se unam em matrimônio e se reproduzam sobre a terra. Por conseguinte, toda excitação sexual que se realize fora do matrimonio ou por mero prazer destituído de sua finalidade natural, vem a ser um abuso que a consciência de todo homem bem formada reconhece. Esse abuso é, objetivamente talando, um mal, mal que não pode ser proposto ao público como se fosse algo de tolerável ou simplesmente como matéria de deleite e divertimento para leitores e espectadores.
Todavia continua-se a objetar:
3. Autonomia da arte
Diz-se:
"A arte está emancipada da Moral; é um valor a ser cultivado autonomamente".
- Em resposta, é mister reconhecer que a arte não é por si dirigida a um fim ulterior; ela não é meio para se conseguirem objetivos que não sejam a própria criação artística Por conseguinte, não se requer que a arte, ao representar o belo, tenha em vista outra finalidade que não a de exibir um objeto digno da contemplação dos espectadores. É neste sentido que se entende a autonomia da arte. Contudo não se deve esquecer que a arte e a atividade artística não existem em si mesmas, mas estão sempre localizadas em determinado sujeito (artista ou artífice). Ora a atividade artística aperfeiçoa o homem apenas segundo um aspecto restrito, isto é, na medida em que ele tem senso musical, poético, literário... A arte torna o homem bom músico ou bom poeta...; não o faz, porém, homem bom ou perfeito. É a Moral que torna o homem bom simplesmente dito, ou bom no seu aspecto essencial, isto é, enquanto é um ser inteligente destinado a conhecer a Verdade Suprema e amar o Bem Infinito.
Por isto é que o exercício da arte deve estar subordinado à Moral, ou seja, às leis que norteiam a conduta do homem, de modo que seja um homem bom ou perfeito e chegue ao seu Fim Supremo ou a Deus. O aperfeiçoamento moral é a tarefa sem a qual não se justificam as demais atividades do homem, nem mesmo as atividades artísticas. Donde se vê uma vez mais que a arte, como qualquer outra função humana, tem de ser dirigida pela consciência moral. O artista que cultivasse a arte como um bem absoluto, independente de qualquer outro, estaria adorando um ídolo ou muitos ídolos.
Em linguagem sucinta, assim se pode exprimir a mesma verdade: a) Por seu objeto, a arte não está subordinada a alguma finalidade ulterior; ela por si não é instrumento para a consecução de algum bem criado; b) Por seu sujeito, porém, a arte está subordinada à obtenção do Bem Supremo desse sujeito; este nunca age senão em demanda do Fim último. Ora o conjunto de leis que levam o homem ao seu Fim Supremo constitui a moralidade. Por isto não é lícito à arte derrogar à moralidade.
Aos fiéis católicos o Concílio do Vaticano II quis, com particular ênfase, lembrar tal doutrina:
"Há um problema que se refere às relações existentes entre os direitos da arte e as normas da lei moral. Como as incessantes controvérsias nesta matéria não raro se originam de falsas doutrinas acerca da ética e da estética, o Concílio declara que absolutamente todos devem professar a primazia da ordem moral objetiva, porquanto é a única que sobrepuja e coerentemente harmoniza todas as demais ordens de coisas humanas, por mais respeitáveis que sejam em dignidade, não excetuada a arte. Pois somente a ordem moral atinge o homem em toda a sua natureza, criatura racional de Deus chamada para os bens celestiais; se esta ordem moral for observada fiel e integralmente, levará o homem à plena consecução da perfeição e da felicidade" (Decreto "Inter Mirífica" sobre os Meios de Comunicação Social, n° 6).
Continua, porém, o objetante:
4. Arte controlada é alheia à realidade
"A arte, embora se destine a cultivar o belo, não pode deixar de representar a realidade humana. Ora esta é um misto de bem e mal morais. Então a arte, para não ofender a Moral, há de se contentar com representações parciais e mutiladas da realidade, atraiçoando os acontecimentos e as personalidades que em verdade ocorrem?"
- Em resposta, observe-se: a Moral não exige que, de maneira peremptória, o homem feche os olhos ao mal. Não; há casos em que é oportuno que os homens retos descrevam o mal como ele existe; devem, porém, fazê-lo de modo a apresentar o mal como mal ou de modo a fazer compreender que é algo a ser rejeitado e não imitado; abstenham-se, pois, de sugerir a mínima complacência no mal ou de o justificar e exaltar.
Em geral, observa-se que descrever o mal sem insinuar algum juízo sobre o mesmo equivale praticamente a incuti-lo e recomendá-lo (tal é o poder de sedução do pecado); por isto o artista não se pode eximir de censura da Moral quando ele apenas descreve os homens e os acontecimentos lascivos como eles se apresentam na sua realidade cotidiana. Desde que se trate de objetos moralmente maus, estes têm de ser (elegantemente, se quisermos) denunciados como tais, pois dificilmente se pode crer que, para o público, a singela descrição não redunde em detrimento de consciência.
Em outros termos ainda, deve-se dizer que a Moral não proíbe ao artista descrever a realidade humana tal como ela é, mas veda expressá-la tal como ela não é, ou seja, como grandeza (nos casos em que ela é ruína), como lícita e louvável (nos casos em que ela é ilícita e condenável), como justa (nos casos em que ela é injusta). Tenham-se em vista as «Confissões» de S. Agostinho e o «Decamerone» de Boccaccio; são obras que contêm a descrição do pecado; já, porém, que tomam atitudes diversas perante o mal, merecem ser diversamente apreciadas: nas «Confissões» o vício é apresentado como objeto de arrependimento e repúdio por parte do autor (o que vem a ser construtivo), ao passo que no «Decamerone» se percebem complacência no pecado e glorificação deste (atitudes reprováveis).
Segue-se a propósito mais um inciso do documentário do Concílio do Vaticano II:
"A narração, a descrição e a representação do mal moral podem certamente, com o recurso inclusive dos meios de comunicação, prestar-se para um conhecimento e um estudo mais profundo do homem, para manifestar e exaltar a magnificência do bem e da verdade, obtendo-se, além disso mais oportunos efeitos dramáticos; contudo, para que não venham a causar dano antes que utilidade aos espíritos, obedeçam estritamente às leis morais, principalmente se se tratar de coisas que exigem a devida reverência ou que incitem com mais facilidade o homem, ferido pelo pecado original, a desejos perversos" ("Inter. Mirífica", n° 7).
As idéias propostas nestas páginas levam a ver que não é inoportuna a obra dos censores de espetáculos de cinema, teatro e televisão... Este trabalho poderá ser especialmente útil nos tempos presentes, em que nem sempre se cultiva a arte pela arte ou pela beleza, mas, sim, em vista do lucro comercial; critérios totalmente alheios à arte e à formação do senso artístico levam não poucos produtores e artistas a explorar baixos sentimentos do povo, proporcionando a este um deleite que está longe de ser o deleite da genuína estética. Já se disse, aliás, muito sabiamente que a arte imoral deixa de ser arte.
É para desejar, porém, que os censores se deixem guiar exclusivamente pelas normas da sã Moral, e não pelos ditames de algum partido político.
Apresentaremos, a seguir, alguns dados e documentos que exprimem a situação da pornografia no estrangeiro e no Brasil.
5. França e Dinamarca
No mês de outubro de 1975 a Assembléia Legislativa Nacional da França ia debater um projeto de lei que abolia a censura prévia de todos os filmes destinados a adultos. Então o Ofício Católico Francês do Cinema publicou aos 18 de setembro de 1975 uma Declaração precedida de apresentação do Cardeal François Marty, arcebispo de Paris.
l. Eis o texto do eminente prelado:
“A Assembléia Nacional está para examinar nos próximos tempos um projeto de lei relativo ao cinema.
O Ofício Católico Francês do Cinema, tendo tomado conhecimento desse projeto, julga-se obrigado a chamar a atenção do legislador para as ameaças que um liberalismo mal entendido faria pesar sobre a liberdade: liberdade dos espectadores, dos artistas, de todos aqueles para quem o cinema não é mera fonte de lucro, mas é arte.
Apresento esse texto à reflexão de todos aqueles que exercem uma função de responsabilidade na vida da Igreja. Chamarão a atenção de suas comunidades para o real perigo que a exploração da violência e da pornografia acarreta para a coletividade. Alguns críticos, mesmo dos mais tolerantes, vão tomando consciência disto.
O risco que corremos, já não é o da frustração, mas o da alienação. Com efeito, ninguém pode, a menos que seja hipócrita, tachar de inofensivo o espetáculo da pessoa humana ultrajada, degradada até o âmago mesmo dos gestos de amor.
Os cristãos não podem aceitar passivamente que alguns indivíduos confisquem, para seu proveito exclusivo, a liberdade de expressão, a fim de se enriquecerem mediante o detrimento da coletividade e o desprezo da dignidade humana.
(a) Card. François Marty"
2. Segue-se o texto do Ofício Católico Francês do Cinema:
"O Ofício Católico Francês do Cinema tomou conhecimento do projeto de lei relativo ao cinema que deve ser submetido à Assembléia Nacional em outubro (1975). Esse projeto prevê, de modo especial, a supressão total da censura prévia para todos os filmes apresentados aos adultos.
Frente a esse projeto de lei,
1. O Ofício Católico Francês do Cinema se interrogou sobre o liberalismo do texto.
O público adulto que vai ao cinema, deve ser livre em suas opções. Isto é normal. E a censura praticamente já desapareceu para todos os filmes franceses.
Mas a liberdade de escolha do espectador não é salvaguardada quando os filmes de violência ou de sexo invadem o ano inteiro três quartos dos nossos cinemas.
A liberdade, para o autor, de realizar filmes não pornográficos não é salvaguardada se esses filmes já não têm possibilidade de ser projetados para um grande público e ser assim comercializados.
A liberdade dos atores não é salvaguardada, se estes são reduzidos ao desemprego por não aceitarem essa forma de prostituição que são os filmes pornográficos hoje em dia realizados.
A liberdade de todos estará salvaguardada, se, como se pode recear, a atual evolução das coisas na França chegar nos próximos anos à destruição da indústria e, por conseguinte, da arte cinematográfica ?
2. O Ofício Católico Francês do Cinema acentua a responsabilidade dos espectadores.
O público há de ser devidamente informado não só a respeito do tipo de filme que ele vai ver, mas também a propósito das conseqüências gerais das suas escolhas. Os espectadores devem saber principalmente que se arriscam a contribuir para 'favorecer uma produção que se entrega exclusivamente aos atrativos enganosos da representação da violência e da licenciosidade', conforme os termos mesmos do projeto de lei. Fazemos apelo ao senso de responsabilidade que deve animar jornalistas e críticos de cinema.
Os espectadores também devem estar conscientes de que a repetida frequentação de filmes pornográficos é um sinal de imaturidade ou de desequilíbrio ou de perversão no tocante à realidade maravilhosa do amor humano
3. O Ofício Católico Francês do Cinema alerta o legislador.
As conseqüências de um liberalismo total terão sido suficientemente ponderadas pelo legislador? A quem é que se poderá dar a crer que a liberdade concedida aos cineastas pornográficos é um encorajamento à arte?... Ou um progresso da nossa sociedade? Ou uma libertação frente aos tabus?
Tocará sempre aos poderes públicos tomar as medidas que se impuserem para que o cinema não se torne, entra as mãos de aproveitadores irresponsáveis, um instrumento de excitação à violência mortífera. ao fruto e ao deboche.
A proteção da dignidade humana e dos seus direitos fundamentais não só deve ser afirmada de novo com palavras pelo legislador, mas há de ser garantida por fatos".
Estes dois documentos dão a ver que o reconhecimento do importante papel da censura (se bem exercida) não é «privilégio» de povos subdesenvolvidos, mas é expressão da consciência de homens cultos a representar grande parte da nação francesa (e - poderíamos acrescentar - ... também de outras nações).
De resto, notícias de novembro de 1975 informam que os filmes pornográficos na França vão sendo combatidos não só por autoridades legislativas, mas também pelo próprio público.
Com efeito. O deputado degaullista Jean Foyer propôs um projeto de lei «que taxa as fitas proibidas para menores de dezoito anos em 50% sobre o valor de sua produção e mais um imposto sobre o que renderem nas bilheterias» («Jornal do Brasil» 6/XI/75, cad. B, p. 8).
Continua a notícia de jornal:
"Nos debates na Assembléia, os que apóiam o projeto Foyer, como o também degaullista Jacques Marette - autor de projeto sobre o mesmo assunto na área da televisão - dizem que 'combater a pornografia é uma questão de defesa da sociedade'. Jack Palite, do Partido Comunista, argumenta: 'A pornografia é um produto do sistema', enquanto o conservador Èugène Claudius Petit afirma que "o governo deve ter a coragem de proibi-la' e outro degaullista, Robert-André Vivien, sustenta que 'é preciso endurecer nessa matéria'".
Doutro lado, o próprio público parece estar enfastiado pelos filmes pornográficos, como refere ainda a mesma crônica de jornal:
"Na última semana de outubro (1975), o filme pornô em melhor situação na lista das maiores bilheterias — Furtes Pornô — estava classificado em oitavo lugar. Entre os dias 8 e 14 de outubro, 45 filmes atraíram 15 milhões 563 mil 309 espectadores. Apenas 2 milhões 486 mil 711 foram ver filmes pornográficos. Em todo o mês, só 16% do público foi aos cinemas ver pornografia".
3. Aliás, na Dinamarca, pátria das exposições pornográficas, também se registra um declínio da onda malsã, como noticia o «O Globo» aos 25/X/75, p. 4:
"Pornô em baixa — Em Copenhague, Janos Lengyel constata a morte melancólica e definitiva do 'sex-boom'. As lojas vivem às moscas. No setor, apenas uma novidade: por medida de economia, as "pornô-shops" funcionam agora na base do 'sirva-se você mesmo', como nos supermercados. E nos 'live-shows' pornográficos as casas custam a reunir um número razoável de clientes".
Estes dados não podem deixar de projetar luz sobre o problema da censura de livros, cinema, teatro e televisão, como ele se coloca entre nós.
6. No Brasil
No Brasil (como, aliás, no mundo inteiro) têm aplicação os princípios estabelecidos sob os títulos 1-4 deste artigo: visto que os meios de comunicação social constituem inegável escola de informação e formação (ou deformação) do público, tanto de baixo como de elevado nível cultural, às autoridades cabe zelar para que não sejam utilizados no sentido da deturpação e degradação dos costumes; este perigo é particularmente ameaçador nos nossos tempos pelo fato de que são os critérios de IBOPE e lucro financeiro que inspiram a maioria dos autores e produtores dos meios de comunicação social. Os nossos jornais têm registrado a espantadora proliferação de obras obscenas em todo o território nacional: jornais, revistas de diversos níveis, filmes, peças de teatro e novelas de índole debochada se multiplicam, de modo a criar cada vez mais uma mentalidade de relativismo ético e de permissividade na sociedade brasileira. - Apenas se deve estudar a modalidade de se realizar a censura entre nós, a fim de que esta se guie tão somente por critérios de moral e de preservação do bem comum, excluindo paixões, preconceitos, partidarismo, antipatia ou simpatias...
A título de ilustração, transcrevemos aqui parte do texto da Portaria do Ministro da Justiça, Sr. Armando Falcão, publicada aos 24/X/75 sobre a emissão de telenovelas em todo o país:
"Considerando que a chamada telenovela representa técnica aprimorada de comunicação social e forma peculiar de grande penetração popular, desenvolvendo importante influência de caráter cultural, podendo, por isso, de um lado, ser valioso instrumento de educação e, de outro, constituir-se em meio eficaz de deturpação dos valores éticos da sociedade;
Considerando que devem ser evitados temas que transmitam apelos inconvenientes para espectador de menor idade;
Considerando que é de 1946 a vigente legislação básica da censura de diversões e espetáculos públicos, anterior, portanto, ao advento da televisão no Brasil;
Considerando que se vem mostrando necessário, desde logo, disciplinar adequadamente a programação das telenovelas, estabelecendo critérios gerais e uniformes, enquanto prosseguem os estudos visando à atualização e consolidação daquela legislação básica ;
Considerando que a respeito foram ouvidos, além de outros órgãos governamentais interessados no problema, representantes do Ministério da Educação e Cultura, Ministério das Comunicações, Departamento de Policia Federal e Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert);
Resolve :
Artigo 1° - a censura de telenovelas abrangerá sempre o texto integral e a gravação de todos os capítulos.
Artigo 3° - será vedada a divulgação, pela emissora, de publicidade de telenovela antes da liberação do texto.
Parágrafo único — a divulgação publicitária de telenovela, quando apresentar trechos, cenas ou imagens da transmissão como objeto de propaganda, estará sujeita à mesma classificação etária estabelecida para o espetáculo.
Artigo 4° — o DPF, na classificação etária de telenovelas, deverá considerar os níveis de compreensão e as exigências psicológicas normais dos diversos grupos etários, de modo a não induzir menores de idade à confusão de valores.
Artigo 5° — a telenovela deverá preservar os princípios morais e culturais da sociedade brasileira, respeitando as tradições e os valores da nossa civilização.
Artigo 6° — será negada a liberação de telenovela quando a mensagem ou temática configurar:
a) propaganda de subversão da ordem, apresentando cenas de terrorismo ou guerrilha, ou ainda de revolta com características técnicas de guerra revolucionária, com descrição de ações político-subversivas ou de resistência a medidas de preservação da ordem;
b) preconceitos de religião, de raça ou de classe;
c) exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes;
d) desrespeito à lei, à autoridade pública, à disciplina escolar e à harmonia conjugal e familiar;
e) exploração ou agravamento de antagonismos ou tensões sociais;
f) manifestações de uso de entorpecentes ou drogas afins, bem como o uso imoderado de bebidas alcoólicas;
g) cenas capazes de provocar reações de pânico ou horror, caracterizadas ou não por forte suspense;
h) exploração do sexo ou vício, violência carnal ou exacerbação de erotismo;
i) motivação que possa perturbar, confundir ou abalar padrões morais ou sociais consagrados no país".
Em última instância, interessa ainda acrescentar que, independentemente da censura exercida (bem ou mal) pelos agentes do Governo, cada ser humano (principalmente o cristão) deve ter a consciência suficientemente apurada e esclarecida para discernir a autêntica arte da falsa arte. Convém recordar que o Bem e o Belo são inseparáveis um do outro (conforme diziam os antigos gregos) de tal modo que o «belo mau» ou o «belo baixo, degradante» já, não é belo. O belo eleva a mente do leitor e do espectador, tornando-o mais homem, mais voltado para os valores da inteligência e da dignidade, menos instintivo e bestial.
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