sexta-feira, 20 de junho de 2008

Consciência e moralidade: censura da arte

Que dizer da atual controvérsia relativa à cen­sura... censura do teatro, do cinema, da televisão e da lite­ratura?
Quem tem razão: os adeptos ou os adversários da cen­sura?»
Nas páginas que se seguem, recolheremos sob quatro grandes títulos as principais objeções que se levantam contra a censura em nosso país, e procuraremos propor algumas con­siderações a propósito.
1. Paternalismo ou maioridade?
1) «O povo é de maioridade; não precisa de censores do governo. É na bilheteria que se faz a censura».
Resposta: Logo de início deve-se notar que é esta, por certo, a réplica que mais pesa em prol da campanha contra a censura. Vivemos em sociedades que rejeitam decisivamente todo e qualquer tipo de paternalismo, isto é, de ingerência de um poder forte e «bonzinho» em assuntos que poderiam ser solucionados pelos indivíduos.
Em verdade, não se deve aceitar o paternalismo na me­dida em que tire aos cidadãos a responsabilidade ou a capa­cidade de agir e julgar como pessoas maduras.
Todavia no que se refere à censura de teatro, cinema, etc., impõem-se as seguintes considerações:
É preciso, inegàvelmente, que as autoridades públicas res­peitem a liberdade de consciência dos cidadãos; reconheçam a cada um o direito de formar seu juízo pessoal a respeito das ocorrências da vida social. Se alguém quer viver viciosa ou debochadamente, as autoridades civis não têm a obrigação nem o direito de intervir na consciência dessa pessoa. Não é lícito, portanto, aos governos civis constranger seus súditos em matéria de filosofia e Religião. - Foi o que o Concilio do Vaticano II houve por bem declarar em seu documento refe­rente à Liberdade Religiosa; cf. «P. R.» 97/1968, qu. 1.
Todavia compete a todo governo civil o estrito encargo de promover o bem comum da sociedade e profligar tudo que a este, de certo modo, contradiga ou se oponha. Ora o teatro, o cinema, a televisão e a literatura são meios de comunicação que afetam profundamente a vida pública. São, para muitos e muitos cidadãos (conscientes ou inconscientes disto), ver­dadeira escola de «filosofia da vida» e de moral; quem vai ao teatro, vai para ver e ouvir durante horas a fio, colocan­do-se de antemão (talvez inconscientemente) em atitude de receptividade. Os exemplos apresentados pelos espetáculos públicos facilmente tornam-se «ideais» de vida e susci­tam nos espectadores o desejo de imitar, reproduzir... ao menos algo da conduta dos heróis da cena. Em suma, o teatro e o cinema lançam a moda, tornam-se paradigmas. Não é necessário insistir no extraordinário poder sugestivo de que desfrutam.
Por isto é que pode tocar ao governo civil a tarefa de vigiar para que os divertimentos propostos ao público não se desvirtuem, tornando-se escolas de crimes, deboche, vícios, ruptura de lares, infelicidade social, etc. - Assim como o Estado tem o direito e o dever de controlar a higiene pública ou os meios de saúde física de seus cidadãos, tem também o direito e a obrigação de se interessar pelos órgãos de publici­dade que influem, favorável ou desfavoràvelmente, sobre a saúde mental e moral da sociedade.
Essa necessidade é tanto mais compreensível quanto se sabe que hoje os divertimentos são muitas vezes intencional­mente explorados para fins comerciais. Empresários e autores menosprezam as conseqüências deletérias que de seus espetá­culos decorram, desde que prevejam apreciável lucro finan­ceiro. Conhecedor de tal situação, o Estado não exorbita de suas atribuições, quando institui a censura de peças teatrais e cinematográficas...
Em réplica a estas considerações, talvez diga alguém:
2. Bem e mal: categorias subjetivas
2) «O bem e o mal moral são categorias subjetivas; variam segundo a apreciação de cada indivíduo».
Resposta: Em Moral, existem padrões objetivos do bem e do mal, válidos para todo e qualquer homem. Estes padrões objetivos são os ditames da lei natural, que todo indivíduo ouve dentro de si, queira-o ou não, independentemente de sua cultura ou época. - Aplicando esta afirmação ao nosso caso, deveremos dizer: a natureza deu ao homem a função sexual a fim de que os seres humanos se unam em matrimônio e se reproduzam sobre a terra. Por conseguinte, toda excitação sexual que se realize fora do casamento ou sem ordenação à procriação, vem a ser um abuso que a consciência de todo homem naturalmente profliga. Esse abuso é, objetivamente falando, um mal, um mal que não pode ser proposto ao público como se fosse algo de tolerável ou simplesmente como matéria de deleite e divertimento para os espectadores.
Todavia nova objeção se faz ouvir:
3. A autonomia da arte
3) «A arte está emancipada da Moral; é um valor que deve ser cultivado autonomamente».
Resposta: Deve-se reconhecer que a arte não é por si ordenada a um fim ulterior, não é propriamente instrumento para se conseguirem objetivos de índole diversa. Não se re­quer, por conseguinte, que a arte, ao representar o belo, tenha em vista outra finalidade que não a de exibir um objeto digno da contemplação dos espectadores. É neste sentido que se entende a autonomia da arte.
Todavia note-se que a arte e a atividade artística não existem em si mesmas, mas estão sempre localizadas em deter­minado sujeito humano (artista ou artífice). Ora a atividade artística aperfeiçoa o homem apenas segundo um aspecto res­trito, isto é, na medida em que ele tem senso musical, poético, pictórico, literário, e faz vibrar esse senso de acordo com as regras da música, da poesia, da pintura, da estilística, etc. A arte torna o homem bom músico ou bom poeta...; não o faz, porém, homem bom ou perfeito. É a Moral que torna o homem bom simplesmente dito, ou bom no seu aspecto essen­cial, isto é, enquanto é um ser inteligente destinado a conhecer a Verdade Suprema e amar o Bem Infinito.
Por isto é que o exercício da arte deve estar subordinado à Moral, ou seja, às leis que norteiam a conduta do homem, de modo que seja um homem bom ou perfeito e chegue ao seu Fim Supremo ou a Deus. Todo homem normal pode e deve tender a ser um homem moralmente bom; o aperfeiçoamento moral é a tarefa mais importante de cada ser humano, tarefa sem a qual não se justificam as demais atividades do homem, nem mesmo as atividades artísticas. Donde se vê mais uma vez que a arte, como qualquer outra função humana, tem de ser dirigida pela consciência moral ou pelos ditames da lei natural de que falava a resposta à objeção n° 2 deste artigo. O artista que cultivasse a Arte como um bem absoluto, inde­pendente de qualquer outro, estaria adorando um ídolo ou muitos ídolos...
Em linguagem sucinta e precisa, pode-se exprimir a mesma doutrina nos seguintes termos:
a) Por seu objeto, a arte não está subordinada a alguma finalidade ulterior, isto é, a obra de arte por si mesma não é etapa nem instrumento para a consecução de algum bem criado;
b) Por seu sujeita, porém, a arte está subordinada à obtenção do Bem Supremo desse sujeito; este nunca age senão em demanda do Fim último. Ora o conjunto de leis que levam o homem ao seu Fim Supremo constitui a Moralidade. Por isto não é lícito à arte, em hipótese alguma, derrogar à Moralidade.
Aos fiéis católicos o Concílio do Vaticano II quis, com particular ênfase, lembrar tal doutrina:
Há um problema que se refere às relações existentes entre os direitos da arte e as normas da lei moral. Como as incessantes con­trovérsias nesta matéria não raro se originam de falsas doutrinas acerca da ética e da estética, o Concílio declara que absolutamente todos devem professar a primazia da ordem moral objetiva, por­quanto é a única que sobrepuja e coerentemente harmoniza todas as demais ordens de coisas humanas, por mais respeitáveis que sejam em dignidade, não excetuada a arte. Pois somente a ordem moral atinge o homem em toda a sua natureza, criatura racional de Deus chamada para os bens celestiais; se esta ordem moral for observada fiel e integralmente, levará o homem à plena consecução da perfeição e da felicidade, (Decreto «Inter Mirifica» sobre os Meios de Comu­nicação Social, n° 6).
Estas considerações, porém, suscitam mais uma objeção:
4. A arte controlada nunca representará a realidade!
4) «A arte, embora se destine a cultivar o belo, não pode deixar de representar a realidade humana. Ora esta é um misto de bem e mal morais. Então a arte, para não ofender
a Moral, há de se contentar com representações parciais e mutiladas da realidade, atraiçoando os acontecimentos e as personalidades que em verdade ocorrem?»
Resposta: A Moral não exige que, de maneira sistemá­tica e absoluta, o homem feche os olhos ao mal. Não; há casos em que é oportuno que os homens retos descrevam o mal como ele existe; devem, porém, fazê-lo de modo a apresentar o mal como mal ou de modo a fazer compreender que é algo a ser rejeitado e não imitado; abstenham-se, pois, de sugerir a mínima complacência no mal ou de o justificar e exaltar.
Em geral, observa-se que descrever o mal sem insinuar algum juízo sobre o mesmo equivale praticamente a incuti-lo e recomendá-lo (tal é o poder de sedução do pecado); por isto o artista não se pode eximir de censura da Moral quando ele apenas descreve os homens e os acontecimentos lascivos como eles se apresentam na sua realidade cotidiana. Desde que se trate de objetos moralmente maus, estes têm de ser (elegan­temente, se quisermos) denunciados como tais, pois dificilmente se pode crer que, para o público, a singela descrição não re­dunde em detrimento de consciência.
Em outros termos ainda, deve-se dizer que a Moral não proíbe ao artista descrever a realidade humana tal como ela é, mas veda expressá-la tal como ela não é, ou seja, como gran­deza (nos casos em que ela é ruína), como lícita e louvável (nos casos em que ela é ilícita e condenável), como justa (nos casos em que ela é injusta). Tenham-se em vista as «Confis­sões» de S. Agostinho e o «Decamerone» de Boccaccio; são obras que contêm a descrição do pecado; já, porém, que to­mam atitudes diversas perante o mal, merecem ser diversa­mente apreciadas: nas «Confissões» o vício é apresentado como objeto de arrependimento e repúdio por parte do autor (o que vem a ser construtivo), ao passo que no «Decamerone» se percebem complacência no pecado e glorificação deste (ati­tudes reprováveis).
Segue-se a propósito mais um inciso do documentário do Concílio do Vaticano II:
«A narração, a descrição e a representação do mal moral podem certamente, com o recurso inclusive dos meios de comunicação, pres­tar-se para um conhecimento e um estudo mais profundo do homem, para manifestar e exaltar a magnificência do bem e da verdade, obtendo-se, além disso mais oportunos efeitos dramáticos; contudo, para que não venham a causar dano antes que utilidade aos espíritos, obedeçam estritamente às leis morais, principalmente se se tratar de coisas que exigem a devida reverência ou que incitem com mais faci­lidade o homem, ferido pelo pecado original, a desejos perversos» (De­creto «Inter Mirifica» n° 7).
As idéias propostas nestas páginas levam a ver que não é inoportuna a obra dos censores de espetáculos de cinema, tea­tro e televisão... Este trabalho poderá ser especialmente útil nos tempos presentes, em que nem sempre se cultiva a arte pela arte ou pela beleza, mas, sim, em vista do lucro comer­cial; critérios totalmente alheios à arte e à formação do senso artístico levam não poucos produtores e artistas a explorar baixos sentimentos do povo, proporcionando a este um deleite que está longe de ser o deleite da genuína estética. Já se disse, aliás, muito sabiamente que a arte imoral deixa de ser arte.
É para desejar, porém, que os censores se deixem guiar exclusivamente pelas normas da sã Moral, e não pelos ditames de algum partido político.
A propósito da industrialização da arte e da cultura, veja-se E. Gilson, «La Société de Masse et sa Culture». Paris 1967.
APÊNDICE
Vem a propósito a entrevista concedida pelo Sr. Bispo D. José Gonçalves, DD. Secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ao «Jornal do Brasil» e publicada à pág. 7 do 1° cad. desse jornal em 21/III/68:
O Secretário Geral da Conferência dos Bispos, Dom José Gonçalves, declarou ontem que só pode aplaudir o Governo quando ‘firmemente mantém o princípio da Censura’,
argu­mentando que nem sempre o Governo deve fazer a vontade da comunidade, pois muitas vezes ‘esta se acha de tal maneira deformada ou imatura que a autoridade terá de contrariá-la em seu próprio benefício’.
Após pedir desculpas aos artistas brasileiros, Dom José disse ser da opinião de que ‘a liberdade absoluta não interessa à arte, e sim à bilheteria, mas à custa da consciência e da cultura de nossa juventude. Um artista de real valor não precisa de pornografia, nem para expansão da arte, nem para sucesso de bilheteria’.
Autoridade
Ao apoiar o Governo sobre a manutenção do principio da censura, Dom José lembrou a doutrina do Papa Pio XII, ex­pressa na encíclica ‘Miranda Prorsus’, sobre o cinema, o teatro e a televisão, na qual insiste em que ‘a vigilância do Estado não se pode considerar injusta opressão da liberdade do indivíduo, porque se exerce não na esfera da autonomia pessoal, mas sobre uma função social, como é por essência a difusão’.
Para argumentar que a autoridade não pode fazer todas as vontades do povo, lembrou o Secretário da CNBB que na decadência do grande povo romano a massa pedia somente panem et circenses (pão e circo), frisando: ‘Ninguém me vá dizer que a autoridade devia só dar pão e circo ao povo, por ser a vontade da comunidade!’
- ‘Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar o porte de armas, para não colocá-las ao alcance de malfeitores e tarados. Irá permitir essa licença aos assas­sinos de almas?
- Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar a venda de tóxicos. Será exorbitância, se impedir o envenenamento moral dos brasileiros? Que dizer de um farmacêutico que permitisse a um inexperiente penetrar em seu laboratório e provar indiscriminadamente todos os
pro­dutos químicos que ali se manipulam?' - ponderou.
Pureza
Dom José Gonçalves acha que a verdadeira arte não pre­cisa de palavrões, nem de pornografia, pois que ela se impõe por si mesma, obtendo mesmo o sucesso de bilheteria. Citou a propósito um exemplo, ‘justamente no gênero humorístico, que é o mais exposto à sedução da pornografia ou da porno­lalia. Refiro-me ao Sr. José Vasconcelos. Que Deus o livre de deixar macularem-se seus lábios limpos e de infectar-se sua sala de espetáculos, onde grandes e pequenos têm podido entrar sem constrangimento!’
Lamentou, apoiando-se em comentários de pessoas sen­satas, que ‘o nosso teatro esteja virando uma vergonha’ e lamentou que ‘artistas do valor de Fernanda Montenegro, Ca­cilda Becker e outras, que todo o mundo respeita e admira, aceitem papeis em peças licenciosas'.
A propósito do palavrão, citou o Apóstolo São Paulo, que exorta aos cristãos: ‘A impureza e toda imundície nem sejam nomeadas entre vós... nem palavras torpes, nem inconve­nientes, nem levianas’ (Ef 5,3s).
Controvérsia
Interrogado sobre as declarações do Diretor da Central Católica de Cinema, que diz admitir o palavrão no teatro, o nu no cinema, afirmou Dom José que duvida de que a imprensa tenha refletido com exatidão seu pensamento, pois sabe que ele não é contrário à censura. O que houve, talvez, foi isolar algumas frases de um contexto.
- ‘Se ele confirmasse a entrevista nos termos em que foi publicada, eu teria reparos a alguns conceitos por ele emitidos, à luz da doutrina dos Papas e do Concílio do Vaticano II, que no decreto ‘Inter Mirifica’, sobre os meios de comunicarão social, analisa justamente o problema da exposição do mal moral na arte’.
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Quarta-feira, 6 de Junho de 2007

Consciêmcia e moralidade: agir por causa de um prazer?
(Revista Pergunte e Responderemos, PR 070/1963)
«As pessoas que não querem adotar métodos anticoncepcionistas para limitar a prole, dizem que não é lícito agir unicamente por causa do gozo.
Então o prazer não será motivo digno de justificar uma ação humana?»
1. Não há dúvida, todo homem, ao agir, tem em vista um bem,... um bem real ou, ao menos, aparente (bem aparente, isto é, algo que ao sujeito parece ser bom, embora na verdade não o seja). Ninguém age visando o mal em si e por si, mas unicamente na medida em que ao mal se prende um bem qualquer (que vem a ser o verdadeiro motivo da ação); assim o próprio suicida, desejando a morte, deseja algo que no momento lhe parece ser um bem (deseja, sim, a morte como repouso ou cessação da luta, isto é, como mal menor do que o «mal de viver»...).
Ora os moralistas distinguem três modalidades de bens: o bem honesto, o bem deleitoso e o bem útil.
O bem honesto é o bem conforme as normas da moralidade, ou seja, conforme a Lei de Deus, a qual se manifesta no íntimo de cada homem pelos ditames da consciência.
O bem deleitoso é o objeto que satisfaz às tendências sen­suais ou intelectuais do indivíduo e, de certo modo, se destina a saciá-las.
O bem útil é o objeto que serve de meio ou instrumento para se alcançar determinado fim.
Muitas vezes, o fim intencionado é meramente temporal ou material, visado independentemente do Fim último do homem, que é Deus. Pode acontecer, porém, que o bem útil seja dirigido à obtenção do supremo Fim ou da vida eterna.
2. Feita a distinção entre bem honesto, deleitoso e útil, não resta dúvida de que o homem, agindo por causa de um bem honesto, reco­nhecido como tal, sempre age bem ou pratica uma ação moralmente boa. Não há objeção importante a fazer neste setor.
No tocante aos bens úteis, está claro que por sua natureza mesma são orientados para outro objeto ou para um fim ulterior. Essa orien­tação dá a moralidade ao uso de tais bens, fazendo que seja um uso (ou ato) moralmente mau (se o objetivo ulterior for mau) ou moral­mente bom (se o objetivo visado e o próprio meio utilizado forem bons). Também neste setor não há propriamente dúvidas; cf. «P.R.» 168/1963, qu. 3 (o fim bom não justifica meios maus).
Questão mais séria, porém, se põe quando se consideram os bens deleitosos. Estes podem ser encaminhados para um fim ulterior, como também podem não o ser; neste último caso, são visados em si mesmos e por si mesmos; a pessoa quer então o prazer por causa do prazer apenas.
Em tais circunstâncias, indaga-se: será lícito agir tendo em vista unicamente o gozo ou o prazer?
- Está claro que não será permitido agir por causa de um prazer desonesto ou pecaminoso. A dúvida se põe apenas quando se trata de um prazer honesto. Poderá tal prazer, considerado em si mesmo apenas, motivar legitimamente uma ação do homem?
A esta questão a Moral sadia responde negativamente: o deleite, visado em si apenas, não basta para justificar a atividade da pessoa.
A razão desta negativa é evidente: o prazer é algo que o Autor da natureza, Deus, anexou a certas atividades do homem a fim de as estimular e facilitar; por conseguinte, o prazer não é algo de absoluto, não pode constituir o fim ou o termo das as­pirações do homem, mas só pode ser legitimamente desejado dentro da perspectiva de uma finalidade ulterior. Quem quisesse agir unicamente por motivo de gozo, faria do meio um fim, do secundário o principal; por conseguinte, inverteria a ordem dos valores instituída pelo Criador, e assim pecaria.
O prazer sexual foi associado por Deus à função generativa a fim de que o homem seja incentivado a propagar a sua espécie; tal prazer portanto só poderá ser aceito pelas pessoas que tenham em vista a ge­ração da prole dentro do quadro normal da geração, que é o matri­mônio.
O mesmo se diga com referencia ao deleite anexo à função de comer: é estímulo para facilitar ao individuo a conservação de sua vida. Fora desta perspectiva, tal prazer já não tem sentido e não é apto a justificar a atividade (ou a ação de comer) do indivíduo.
Tais princípios explicam que o Papa Inocêncio XI aos 2 de março de 1679 tenha condenado as seguintes proposições:
«É lícito comer e beber até a saciedade, sem necessidade, por causa apenas do deleite daí decorrente, desde que com isto não se prejudique a saúde; com efeito, o apetite natural pode licitamente usufruir dos seus atos próprios» (Denzinger, Enchiridion 1158).
«Não há culpa alguma nem defeito venial, quando se pratica o ato conjugal por causa apenas do prazer» (cf. ib. 1159).
A rejeição destas duas sentenças bem confirma que o gozo por si só não pode ser motivo suficiente para que o homem exerça alguma atividade.
O prazer tem sido comparado ao sal ou ao tempero que se costuma colocar na comida a fim de que esta se torne mais apetitosa e digerível. Ora, assim como não é normal comer unicamente por motivo do sal ou do tempero, assim também não será normal (por conseguinte, será desregrado e ilícito) praticar uma ação unicamente por causa do gozo.
3. Uma advertência agora se impõe: as normas até aqui expostas não significam que alguém, ao agir, deva excluir todo desejo de prazer. Pode uma pessoa licitamente aspirar ao deleite que está anexo a determinada função da natureza, desde que considere e deseje esse deleite como fim intermediário, subor­dinado a um fim ulterior honesto. O mal só começa quando tal pessoa faz do deleite o fim ou o objetivo em última análise vi­sado pelo seu ato.
Disto se segue que alguém pode licitamente desejar um divertimento (jogo esportivo, espetáculo cinematográfico honesto, concerto musical, etc.), e dele usufruir, desde que subordine o prazer daí deri­vado ao fim respectivo, que é «recrear as forças da natureza, restaurar o ânimo, conservar a saúde, etc.». Em outros termos: a consciência cristã não se opõe a que se façam programas recreativos, contanto que se tenha em vista a razão de ser dos recreios e dos divertimentos, razão de ser que é a conservação do equilíbrio psíquico-somático das pessoas interessadas.
4. Pergunta-se ulteriormente: e que quer dizer esse «ter em vista... »? Ou com que tipo de intenção se deve desejar um bem honesto ou uma finalidade ulterior quando se deseja um recreio, um divertimento?
Respondem os moralistas que não é necessário ter intenção explícita de referir o divertimento, por exemplo, à conservação da saúde (não é preciso que a pessoa tome consciência explícita de que o seu divertimento é mero meio para atingir objetivo ulterior). Exigir uma tal advertência ou reflexão antes que a pessoa realize qualquer de seus atos seria exigir esforço muito árduo, quase impraticável nas condições habituais da vida hu­mana, e, além do mais, esforço desnecessário. - Basta que o indivíduo tenha implicitamente a intenção de conseguir o obje­tivo ulterior (ou, no exemplo dado, de conservar a saúde).
E como se sabe que existe essa intenção implícita?
- Pode-se dizer que essa intenção implícita já existe quando a pessoa modera os seus atos de acordo com a reta razão iluminada pela fé ou de acordo com as leis da natureza,
come­çando, freando e terminando os seus recreios de modo a guardar em tudo o domínio da razão sobre os sentidos e as tendências da carne. Por conseguinte, a moderação no prazer pode ser in­terpretada como indício de que a pessoa não procura unicamente o gozo, mas procura também a finalidade suprema do gozo que é o aperfeiçoamento da personalidade e a união com Deus.
É S. Afonso de Ligório (t 1787) quem escreve:
«Quando alguém se senta à mesa sem pensar na conservação de sua vida, mas unicamente no deleite da comida, não peca por proceder assim, pois essa pessoa deseja tal prazer ao menos virtualmente por causa da conservação da sua vida; é o que faz que o seu desejo de pra­zer não seja desordenado» (Theol. mor. 1. 5, tract. praeamb. W 44).
O desejo virtual (ou intenção virtual) de que fala S. Afonso, é a intenção que a pessoa concebeu outrora explicitamente e em virtude da qual (ou por influência da qual) a pessoa está realmente agindo, sem que disto tenha consciência, isto é, sem ligar o ato presente com a intenção outrora explicitada e jamais retratada.
Há bons moralistas modernos que interpretam os dizeres de S. Afonso num sentido ainda mais largo: entendem a intenção virtual acima enunciada, no sentido de intenção meramente implícita, isto é, intenção que está incluída no simples fato de que a pessoa se comporte razoavelmente ou moderadamente no ato de gozar (independentemente de qualquer intenção anteriormente concebida).
Para garantir a pureza da intenção, seja virtual (no sentido estrito), seja meramente implícita (conforme os modernos), re­comenda-se que periodicamente o cristão faça o oferecimento de seus atos a Deus e proponha tudo realizar para a glória do Cria­dor. Muito se deve desejar que tal propósito seja renovado todos os dias de manhã; contudo isto não é de preceito; não comete pecado quem não o faça com tal assiduidade.
5. A Sagrada Escritura mesma fornece fundamento para as doutrinas acima... Com efeito, afirma o Senhor Jesus: «Em verdade vos digo: no dia do juízo, os homens prestarão contas de toda palavra ociosa que tiverem proferido» (Mt 12, 36).
Ao que observa S. Jerônimo († 421): «Se as palavras ociosas são objeto de prestação de contas, quanto mais os atos ociosos não o serão!» (Brev. in Ps., Ps. 15, ed. Migne lat. t. 26, 910).
Note-se bem que «ocioso» não quer dizer «mau, intrinsecamente mau», mas apenas «destituído de finalidade» ou «desviado da genuína finalidade». Ora o genuíno Fim do homem é Deus ou a união com Deus; por conseguinte, todo ato humano tem que ser, direta ou indiretamente, encaminhado para este Objetivo, a fim de ser genuíno ou bom; caso não o seja, carece da finalidade devida, é ocioso e tornar-se-á motivo de recriminação no juízo de Deus. Nesta categoria entra o ato de gozar, desde que o gozo seja desejado por si mesmo, sem ser subordinado a outra finalidade ou ao Fim Supremo da atividade e da vida humana Deus.
6. Por último, compreende-se que, embora seja lícito agir com desejo de deleite (subordinado, sim, a uma finalidade ulterior), mais perfeito é não levar em conta (na medida do possível) o gozo ou prazer, e só voltar a atenção para os bens que se relacionam com a reta razão e a fé (em tal caso, não se considera diretamente a repercussão, agra­dável ou desagradável, que a ação empreendida possa ter na sensibili­dade da pessoa).
Este conselho de perfeição tem sido abraçado pelas almas sequio­sas... A experiência só o tem comprovado...

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